CASO 30 – Matozinhos/MG – Liberdade Religiosa

O que aconteceu: Fiscal municipal de tributos orientou a interrupção de reunião administrativa em templo, realizada por 06 pessoas, para evitar aglomeração e proliferação da COVID-19, fixando multa com a lavratura de auto de infração (que, como se observará, foi posteriormente anulado após questionamentos).

Onde: Município de Matozinhos, em Minas Gerais.

Quando: 28 de junho de 2020.

Documentos: Decreto Municipal n. 3.338, de 6 de abril de 2020, Lei Municipal n. 1.598, de 7 de novembro de 2000 (Código Municipal de Posturas), Lei Complementar n. 036, de 29 de janeiro de 2013 (Código Municipal de Saúde), Decreto Municipal n. 3.323, de 20 de março 2020, Decreto Municipal n. 3.366, de 16 de junho 2020 e Auto de infração.

Parecer da ANAJURE: Conforme narra o Auto de Infração lavrado, um fiscal de tributos da Secretaria Municipal de Fazenda da Prefeitura Municipal de Matozinhos foi acionado mediante denúncia para efetuar diligência de fiscalização no dia 28 de maio de 2020 em igreja evangélica por suposta aglomeração de pessoas no templo. Afirma o fiscal haver encontrado no local reunião de aproximadamente 10 (dez) pessoas, em resposta a qual lavrou o auto infracional, cominando multa no valor R$ 2.047,23. De outro lado, os envolvidos apontam que havia na reunião 06 (seis) pessoas, sendo que esta visava à operacionalização das transmissões virtuais dos serviços religiosos, de modo a evitar aglomerações e colaborar no combate à pandemia

Diante dos relatos extraídos do Auto de Infração e dos envolvidos, algumas considerações jurídicas são necessárias.

No contexto da COVID-19, temos visto a implementação de uma série de medidas restritivas, sendo necessário, no entanto, manter o núcleo essencial dos direitos fundamentais. De fato, conforme temos orientado, é preciso tomar as precauções necessárias na utilização do espaço do templo, de modo a evitar aglomerações que possam contribuir para a proliferação do vírus. Todavia, esta não é a circunstância do presente caso, no qual um número reduzido se reuniu em espaço amplo de modo a apoiar os esforços das autoridades e possibilitar a prática religiosa dos fiéis.

Desse modo, é desproporcional a imposição de multa administrativa a uma pequena reunião de 06 a 10 pessoas em templo religioso. A proibição indiscriminada de reuniões no espaço de culto é desarrazoada, atentando de modo desmedido contra a liberdade religiosa e de culto (art. 5º, VI, CF/88). É atingida também a laicidade estatal, visto que, nos termos do art. 19, inciso I, da Constituição Federal, injustificadamente embaraça o funcionamento de igrejas e cultos religiosos.

O auto infracional da Secretaria Municipal de Tributos indicou como fundamento o artigo 63, parágrafo único, da Lei Municipal n. 1.598, e o Decreto Municipal n. 3.338, apontado sem definição do dispositivo apropriado. O primeiro vagamente versa:

Art. 63. A Prefeitura, tendo em vista zelar pelo bem-estar público, coibirá, observadas as legislações federal e estadual próprias, o abuso do exercício dos direitos individuais quanto ao uso da propriedade particular, e dos locais, serviços e equipamentos públicos.
Parágrafo único. Incluem-se basicamente como matérias passíveis de controle das autoridades municipais as seguintes:
I – prática de banhos e esportes náuticos em rios, riachos, córregos ou lagoas, observada a classificação do curso d’água e as normas e padrões para qualidade da água definidas pelo Conselho Estadual de Política Ambiental – COPAM do Estado de Minas Gerais;
II – manutenção da moralidade e ordem em estabelecimentos;
III – pichamento ou inscrição indelével em edificações ou qualquer outra superfície;
IV – produção de ruídos e sons capazes de prejudicar a saúde e o sossego públicos observados os limites aprovados pelo COPAM e as normas da Associação – Brasileira de Normas técnicas – ABNT;
V – toda e qualquer forma de atividade considerada prejudicial à saúde, à segurança e ao sossego público, a critério da autoridade municipal.

Quanto ao Decreto Municipal n. 3.338, resta indefinição acerca de qual dispositivo deste regeria o ato. Conquanto tal fundamentação genérica seja em si inaceitável ao exercício do poder de polícia administrativo, cabe a análise do referido diploma normativo de modo a buscar se este proibiria a referida reunião.  Ao tempo do ato, o Decreto dispunha em seus dois primeiros artigos as seguintes hipóteses de suspensão ou limitação de atividades:

Art. 1º – Ficam suspensos, ainda, por tempo indeterminado, os serviços, atividades, estabelecimentos ou empreendimentos, públicos ou privados, com circulação ou potencial aglomeração de pessoas, em especial:
I – Eventos públicos e privados de qualquer natureza, incluindo os governamentais, esportivos, culturais, artísticos, políticos e religiosos de todos os cultos, em locais fechados ou abertos;

Art. 2º – Os estabelecimentos comerciais e de serviços que não tiverem suas atividades suspensas pelo artigo 1º deste Decreto, deverão funcionar somente no período compreendido de 09:00 às 17:00 horas, adotando sistemas de escalas, revezamento de turnos e alterações de jornadas para reduzir fluxos, contato e aglomeração de trabalhadores, devendo, ainda, implementar medidas de prevenção ao contágio pelo COVID-19, em especial: (…)

A partir de uma interpretação técnica dos dispositivos do Decreto n. 3.338, evidencia-se que a determinação de suspensão por tempo indeterminado no artigo primeiro visa eventos religiosos com circulação ou potencial aglomeração de pessoas. A adoção de medidas para evitar a formação de aglomerações está em consonância com as orientações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. A mera circulação de pessoas, contudo, não deve ser coibida, sob pena de se inviabilizar qualquer espécie de atividade.

A genérica menção à suspensão de atividades com circulação de pessoas abre margem para ações desproporcionais, como o uso do poder de polícia para coibir pequenas reuniões eclesiásticas privadas, mesmo quando não há qualquer aglomeração, como no presente caso. De igual modo, sobressai no Decreto 3.338 a ausência de prazo para a suspensão dos eventos religiosos. A supressão de direitos fundamentais por tempo indeterminado constitui medida demasiadamente gravosa contra as garantias constitucionais. Deste modo, tal medida deve sempre respeitar a limitação da temporalidade, visando a manutenção das liberdades individuais e públicas e da segurança jurídica.

Quanto ao artigo 2º do supracitado Decreto, que impõe limitações parciais, é visível não ter este como objeto reuniões de organizações religiosas, visto não serem estabelecimento de natureza comercial ou de serviços.

O entendimento exposto está de acordo com a própria legislação do Município de Matozinhos, que através do artigo 4º, inciso X, do Decreto Municipal n. 3.323, 20 de março de 2020, incluiu no rol de atividades essenciais a serem mantidas as “atividades religiosas de qualquer natureza obedecidas as determinações do Ministério da Saúde”.

Deste modo, evidencia-se também no caso em tela clara falha do servidor municipal que realizou a autuação. Sendo fiscal de tributos ligado à Secretaria Municipal de Fazenda, não possui ele legitimidade para a realização de fiscalização de natureza sanitária; a qual, de acordo com o Código de Saúde do Município de Matozinhos (Lei Complementar n. 036, de 2013), é competência exclusiva dos fiscais sanitários municipais ligados à Secretaria Municipal de Saúde. Ainda, não fez o agente autuante constar de modo visível no documento seu nome e matrícula, bem como motivou o ato administrativo de forma genérica.

Cabe ainda observar a exceção colocada pelo próprio Decreto n. 3.338 apontado, que em seu artigo 1º, parágrafo primeiro, determina:

Parágrafo Primeiro. A suspensão de que trata o caput não se aplica às atividades de operacionalização interna dos serviços, atividades, estabelecimentos ou empreendimentos, desde que respeitadas as regras sanitárias e de distanciamento adequado entre os funcionários, sendo vedado o acesso do público ao seu interior.

Conforme narrado, a reunião dentro do edifício religioso visava à operacionalização das transmissões virtuais e – frise-se mais uma vez – não ocasionou qualquer aglomeração. Tal fato, no entanto, foi ignorado pelo ato fiscalizador, constituindo ainda outra irregularidade pela falha de tipificação.

Mais tarde, ao ser comunicada do caráter irregular e desproporcional da autuação, agiu corretamente a Prefeitura Municipal de Matozinhos ao anular o auto de infração contra a igreja, demonstrando assim seu apreço pelas liberdades fundamentais, bem como pela legalidade e razoabilidade, princípios da administração pública.

Ainda sobre o contexto existente na cidade mineira, vale mencionar o Decreto n. 3.366, de 16 de junho 2020, que regulamenta e limita o exercício de diversas atividades no contexto de pandemia, incluindo as religiosas. Apesar de, em regra, não caber ao Poder público intervir na realização das atividades religiosas, é certo que o contexto da pandemia trouxe limitações em virtude da imperativa necessidade de preservação da saúde pública. Porém, as restrições, não podem ser injustificadamente mais gravosas para as organizações religiosas.

Neste Decreto n. 3.366, vê-se que a permissão para ocupação máxima de 50% da capacidade de restaurantes e academias de ginástica, enquanto a capacidade limite autorizada para as igrejas é de apenas 30% (art. 2º, IV). Requer-se de igrejas a triagem pela medição temperatura corporal através do uso de termômetro digital (art. 2º, II), enquanto o mesmo não é condição imposta para o acesso a lanchonetes e restaurantes. Ainda, suspende-se a realização de qualquer atividade que envolva crianças (art. 28, parágrafo único), enquanto para restaurantes e lanchonetes proíbe-se somente espaços fechados de uso infantil, como playgrounds (art. 30, IX). Não se questiona a adoção de medidas preventivas no tocante aos estabelecimentos religiosos, essas, contudo, devem ser guiadas, também, pelo princípio da isonomia.

Ainda, é relevante mencionar que os parâmetros de distanciamento estabelecidos pelo Decreto n. 3.366 são consideravelmente mais rígidos do que os recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Enquanto o Município de Matozinhos exige a manutenção de 2 metros entre pessoas (art. 2º, IV), a Organização Mundial de Saúde vem recomendando a distância mínima de 1 metro entre os fiéis presentes na cerimônia religiosa[1].

Pelo exposto, através de ofício ao Município de Matozinhos, a ANAJURE:

  • Parabenizará a justa anulação do auto infracional n. 0044-2020/SMF;
  • Recomendará a correção das imprecisões do Decreto n. 3.338/2020, do Município de Matozinhos, de modo a instituir prazos determinados para as gravosas medidas de suspensão e excluir expressões que restringem direitos de forma excessivamente genérica, como o trecho que se refere à suspensão da “circulação de pessoas”;
  • Solicitará a adoção de critérios equânimes para a limitação da capacidade máxima dos templos religiosos, possibilitando a ocupação de até 50%, conforme permitido às academias de ginástica e restaurantes;
  • Proporá a adequação do parâmetro de distanciamento mínimo nos templos religiosos à recomendação da Organização Mundial da Saúde, isto é, 1 metro entre os fiéis;
  • Requererá o emprego de parâmetros equitativos às demais atividades, de modo a retirar das organizações religiosas a vedação às atividades infantis.

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[1] https://www.who.int/publications/i/item/practical-considerations-and-recommendations-for-religious-leaders-and-faith-based-communities-in-the-context-of-covid-19

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