O que aconteceu: Decisão judicial suspendeu Decreto Municipal que permitia a realização de atividades religiosas coletivas.
Onde: Município de Goiânia-GO.
Quando: 12 de março de 2021.
Documentos: Decreto Municipal nº 1.601, de 22 de fevereiro de 2021, Decreto Municipal n. 1.757, de 7 de março de 2021 e Decreto Municipal n. 1.897, de 13 de março de 2021.
Parecer da ANAJURE
Em 7 de março, o Município de Goiânia disponibilizou o Decreto n. 1.757/2021, no qual foram estabelecidas novas medidas restritivas com vistas ao combate à pandemia de COVID-19, com vigência até o dia 15 de março. Dentre as diversas alterações estabelecidas pelo Decreto n. 1.757/2021 estava a permissão para a realização de cultos religiosos nos seguintes termos:
Art. 10, § 3º. Para efeitos deste artigo consideram-se atividades essenciais, exclusivamente, aquelas realizadas:
(…)
XXXVI – em organizações religiosas para atendimentos individualizados previamente agendados, ficando permitida a realização de missas, cultos e reuniões similares mediante o atendimento aos seguintes protocolos:
a) horário de funcionamento limitado entre 7 horas e 21 horas;
b) comparecimento de pessoas limitado a 10% (dez por cento) do total de assentos, com o distanciamento mínimo de 2 (dois) metros entre frequentadores e colaboradores, uso obrigatório de máscaras, distribuição de álcool em gel e aferição de temperatura de todos os indivíduos;
c) intervalo mínimo de 3 (três) horas entre as missas, cultos e reuniões similares para realizar a limpeza e desinfecção das superfícies dos ambientes;
d) o disposto na Nota Técnica nº 003/2021 emitida pela Secretaria Municipal de Saúde;
Como se pode depreender do dispositivo, a permissão para realização de cultos religiosos foi fruto do reconhecimento de seu caráter essencial pela autoridade municipal. Contudo, tal autorização não se deu de modo irrestrito; ao contrário, foram estabelecidas gravosas restrições, como a limitação da ocupação a 10% (dez por cento) dos assentos, bem como delimitação do horário de funcionamento e outras medidas preventivas.
Em 10 de março de 2021, não contente com os novos termos, o Ministério Público do Estado de Goiás ajuizou a Ação Civil Pública n. 5117067-81.2021.08.09.0051 perante a 2ª Vara de Fazenda Pública Municipal da Comarca de Goiânia. Nesta, em face da ausência de prévia fundamentação científica, a atual gravidade da crise epidemiológica e as restrições colocadas aos demais setores, o parquet requereu a reversão do texto legal aos termos originários do Decreto Municipal nº 1.601, onde eram permitidos tão somente os atendimentos individualizados previamente agendados.
Em 12 de março, em sede de decisão liminar, o juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia concedeu a tutela de urgência requerida pelo Ministério Público, suspendendo os efeitos de referidos dispositivos do Decreto Municipal n. 1.757/2021.
Em atendimento à determinação judicial, a Prefeitura de Goiânia fez publicar, em 13 de março de 2021, o Decreto Municipal n. 1.897, que estendeu o período de restrições até o dia 29 de março e removeu a permissão à realização de cerimônias religiosas presenciais, dispondo nos seguintes termos:
Art. 10, § 3º. Para efeitos deste artigo consideram-se atividades essenciais, exclusivamente, aquelas realizadas:
(…)
XXXVI – em organizações religiosas para atendimentos individualizados previamente agendados, ficando vedada a realização de missas, cultos, celebrações e reuniões coletivas similares, salvo no caso de celebrações para público não-presencial, por meio de transmissão por mídias sociais ou televisivas;
Neste ponto, importa realçar as disposições constitucionais que resguardam o funcionamento das instituições religiosas. Nos termos do art. 5º, inciso VI, CRFB/88, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. No âmbito internacional, a proteção à liberdade religiosa é conferida por diplomas como a Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 18), o Pacto dos Direitos Civis e Políticos (art. 18) e o Pacto de San José da Costa Rica (art. 12).
Cumpre recordar que a liberdade de religião não se encerra na liberdade de crença e na prática privada de preceitos religiosos, mas possui uma dimensão pública, externalizando-se na liberdade de culto através da realização de cerimônias e reuniões religiosas em templos, espaços públicos e privados sob a proteção do Estado. Decerto, conforme estabelecido no Pacto de San José da Costa Rica e amplamente reconhecido na jurisprudência pátria, é possível a imposição de restrições legais temporárias ao exercício destas liberdades públicas em prol da garantia da segurança, ordem e saúde públicas. Contudo, tais restrições devem ser proporcionais e razoáveis, de modo que não constituam uma indevida suspensão ao exercício destas liberdades por período indeterminado de tempo. Nessa linha, fazemos menção às recomendações da Organização Mundial de Saúde para a realização de cerimônias pelas organizações religiosas, a partir das quais se orienta a priorização de reuniões com menor número de pessoas, abstenção de toques entre as pessoas, manutenção de, pelo menos, 1 m de distância entre os presentes, dentre outras[1].
Desse modo, em vista da proeminência do direito à liberdade religiosa e da possibilidade fática de realização de cultos e missas com a observância das medidas preventivas demandadas pela situação emergencial, sustentamos ser devida a manutenção das cerimônias religiosas presenciais, com ocupação máxima, no atual contexto, de até 30% da área dos templos, e obediência às demais cautelas necessárias. Contudo, frente à completa suspensão vigente, mesmo as restritivas disposições estabelecidas pelo superado Decreto n. 1.757/2021, que permitiam a realização de cultos com até 10% da capacidade dos templos, são mais adequadas, visto que buscavam ainda harmonizar a garantia da liberdade de culto com as medidas emergenciais de combate à pandemia.
Pelo exposto, a ANAJURE comunica que requererá sua intervenção na Ação Civil Pública n. 5117067-81.2021.08.09.0051 na condição de Amicus Curiae, bem como oficiará o Município de Goiânia, apresentando sua posição favorável à realização de atividades religiosas com ocupação máxima de até 30% da área dos templos e a observância das demais medidas preventivas, como a manutenção de distanciamento social, o uso de máscara, dentre outras.
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[1] https://www.who.int/teams/risk-communication/faith-based-organizations-and-faith-leaders