A Coordenação Estadual da Associação Nacional de Juristas Evangélicos em São Paulo, no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor aos órgãos e entidades públicas e à sociedade brasileira sua posição a respeito da emenda, de autoria da Deputada Janaina Paschoal, ao Projeto de Lei nº 491/2019, que tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) e trata sobre a instituição do Programa Estadual de TransCidadania.
I – DA SÍNTESE DOS FATOS
Foi protocolado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 491 de 2019, que Institui o Programa Estadual TransCidadania. Ele “tem a finalidade de garantir o direito dos residentes transgêneros da República a uma vida livre de discriminação e estigmatização” (art. 1º, §3º, do PL n. 491/19), pois considera que o “direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade de acordo com sua própria identidade de gênero, independentemente da sua [sic] biológico, genético, anatômico, morfológico, hormonal, cessão ou outro sexo” (art. 1º, §1º, do PL n. 491/19).
Neste sentido, a iniciativa abrange, dentre outras providências, que “A Rede Estadual de Saúde deverá ofertar, nos equipamentos estaduais a serem referenciados, a terapia hormonal, no âmbito do Processo Transexualizador” (art. 5º, caput, do PL n. 491/19)[1], sem qualquer limitação etária ou mesmo os protocolos médicos e psicológicos, para a participação em tal procedimento.
Destarte, no curso do processo legislativo regular, a Deputada Janaína Paschoal (PSL) propôs emenda acrescentando os seguintes parágrafos ao artigo 5º, do Projeto de Lei nº 491, de 2019:
“Artigo 5º – (…)
§1° – Fica vedada a menores de 18 anos a terapia hormonal de que trata este artigo, seja na rede estadual de saúde, seja na rede privada de saúde.
§2° – Fica vedada a menores de 21 anos a cirurgia de redesignação sexual, seja na rede estadual de saúde, seja na rede privada de saúde.
A parlamentar justifica a proposta de emenda por considerar “que, dentre as vulnerabilidades, aquela que se revela mais merecedora de atenção é a da criança e do adolescente, haja vista a condição especial de desenvolvimento, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria Constituição Federal.”.
Neste sentido, a Deputada entende que deve haver cautela para evitar que a aplicação hormonal “não seja precocemente imposta e incentivada a crianças e adolescentes”, pois “embora seja possível, já vem sendo questionada nos países em que tem lugar, justamente por não permitir a esses meninos e meninas sequer vivenciar os efeitos dos hormônios inerentes ao seu próprio sexo biológico”.
Portanto, a alteração indicada na Emenda ao PL acompanha as disposições da Portaria nº 2.803 de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde, que regula o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS): estabelece a idade mínima de 18 anos, para tratamentos de terapia medicamentosa hormonal, e 21 anos para os procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual.
Ainda como justificativa, indica que esta limitação ganha reforço, “em especial por já haver estudos, no exterior, a evidenciar os males irreversíveis das intervenções de redesignação sexual, inclusive as hormonais, em crianças e adolescentes”[2].
Após a Emenda n. 1, de autoria da Deputada Janaína Paschoal, também foi publicada a Emenda n. 2, de outra autoria, cujo objetivo é regularizar a fonte de custeio do procedimento hormonal suprareferido e instituir requisitos médicos e psicológicos mínimos. Seguindo-se o processo legislativo, entretanto, o parecer do relator do PL na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, teve voto favorável à redação original do texto e contrário às alterações apresentadas.
II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
De acordo com a Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero (Word Professional Association for Transgender Health, WPATH), para realizar um efetivo apoio às pessoas transgêneros e que não se identificam com o sexo biológico, outros tratamentos devem ser administrados antes de uma intervenção hormonal[3].
Acontece que há procedimentos e critérios para realização da terapia hormonal, não bastando apenas a presença da disforia de gênero, mas também da capacidade de tomar uma decisão com pleno conhecimento para consentir com o tratamento, em conformidade com a análise de problemas de saúde físico e mental pretéritos.
No Brasil, a maioridade aos 18 (dezoito) anos é o critério objetivo para a plena capacidade de todos os atos da vida civil (art. 5º, do Código Civil), pressupondo-se, portanto, que os menores não estariam habilitados e suficientemente conscientes para alcançar tal nível decisório.
Ademais, a mesma associação dispõe em sua cartilha a comprovação de efeitos irreversíveis e colaterais dos hormônios administrados, tais como doença tromboembólica venosa, cálculos biliares, enzimas hepáticas elevadas, aumento de peso, hipertrigliceridemia, doença cardiovascular, hipertensão, dentre outros quando utilizados hormônios feminilizantes; e policitemia, alopesia, hiperlipdemia, desestabilização de transtornos psiquiátricos, doença cardiovascular, entre outros efeitos, quando administrados hormônios masculinizantes.
Há, ainda, outros fatores de risco na administração hormonal potencializados pela idade precoce do paciente, o que torna o procedimento indicado no art. 5º, do PL nº 491/2019 bem mais complexo. Desta forma, urge a alteração da sua redação, ainda mais considerando que, para qualquer procedimento médico em menores, seria necessário uma autorização pelo responsável legal e, em alguns casos, por via judicial.
O texto constitucional do artigo 227 é claro quanto ao dever de proteção especial em favor da criança e do adolescente, pela família, sociedade e Estado. Vide in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão
Comentando este dispositivo, os professores Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore e Rogério Santos Cunha[4] fazem uma divisão dos papeis:
“(…) a família se responsabilize pela manutenção da integridade física e psíquica, a sociedade pela convivência coletiva harmônica, e o Estado pelo constante incentivo à criação de políticas públicas. Trata-se de uma responsabilidade que, para ser realizada, necessita de uma integração, de um conjunto devidamente articulado de políticas públicas. Essa competência difusa, que responsabiliza uma diversidade de agentes pela promoção da política de atendimento à criança e ao adolescente, tem por objetivo ampliar o próprio alcance da proteção dos direitos infanto juvenis”.
Em consonância a isto, também está o art. 6º, da Lei nº 8.069/ 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) que representa doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente. Esta assegura o seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, com as consequentes cominações legais para quaisquer indivíduos que afrontem os direitos tutelados para os menores. Senão vejamos in verbis:
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Não fossem tais razões jurídicas suficientes, o tratamento hormonal para crianças classificadas como transgêneras não é apenas polêmico, mas não há consenso entre os pesquisadores e há quem diga que ele não tem suporte científico[5]. Ora, se o princípio da precaução – “a garantia contra os riscos potenciais que, de acordo com o estado atual do conhecimento, não podem ser ainda identificados”[6] – é amplamente utilizado na relação com o Desenvolvimento Sustentável, evitando danos irreversíveis, por que não ter o mesmo cuidado com as crianças? Sim e, na verdade, deve haver um cuidado ainda maior. Certamente que devem ser feitos investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento na área de saúde, mas, enquanto tais resultados não forem conclusivos, não deve ser permitida, muito menos chancelada pelo Estado, a aplicação de tais procedimentos.
Por conseguinte, caso sejam rejeitadas as alterações propostas na Emenda nº 1, ao PL nº 491/2019, certamente o texto original não gozará de constitucionalidade, pois está em dissonância ao dispositivos referidos e a qualquer princípio norteador do cuidado infanto-juvenil, pois o Estado estará servindo como ferramenta de insegurança em desfavor dos menores, diminuindo o alcance dos seus direitos.
III – DA CONCLUSÃO
Pelo exposto, a ANAJURE se posiciona publicamente em apoio a Emenda proposta pela Deputada Janaina Paschoal, ao Projeto de Lei nº 491/2019, que tramita na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP), pugnando que as alterações sejam acatadas, para preservar o melhor interesse do menor e que possam realizar suas escolhas quando forem maiores de idade, tal como determina a legislação nacional.
Ato contínuo, a ANAJURE se compromete a levar a iniciativa de proteção integral infanto-juvenil, nas questões relacionadas ao processo transexualizador, ao âmbito federal, mediante Projeto de Lei encampado por parlamentares apoiadores no Congresso Nacional, a fim de evitar incursões precoces e irreversíveis, especialmente no que tange ao tratamento hormonal.
Por fim, a ANAJURE conclama a todos quantos tiverem ciência de iniciativas que afrontem os direitos à dignidade da pessoa humana, a saúde e ao desenvolvimento físico e mental das crianças e adolescentes que façam denúncias por meios dos canais apropriados, a fim de que as autoridades públicas possam tomar as providências cabíveis.
Brasília, 30 de agosto de 2019
Sindy Nobre
Coordenadora Estadual da ANAJURE em São Paulo
Uziel Santana
Presidente do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE
[1] Segundo o texto do próprio Projeto de Lei (art. 5º, caput), “O Processo Transexualizador compreende um conjunto de estratégias de atenção à saúde implicadas no processo de transformação dos caracteres sexuais pelos quais passam indivíduos transexuais em determinado momento de suas vidas. Não se trata, portanto, do estabelecimento de diretrizes para a atenção integral no sentido estrito, mas daquelas ações necessárias à garantia do direito à saúde circunscritas à passagem para a vivência social no gênero em desacordo com o sexo de nascimento”.
[2] Disponível em <https://www.acpeds.org/the-collegespeaks/position-statements/gender-dysphoria-in-children>. Acesso em 19/04/19
[3] Normas de atenção à saúde de pessoas trans e com variabilidade de gênero – Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero, 7ª edição, 2012
[4] ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paula Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 74.
[5] https://www.acidigital.com/noticias/tratamento-hormonal-para-criancas-transgenero-nao-tem-suporte-cientifico-revela-estudo-48225
[6] O Princípio 15 – Princípio da Precaução – da Declaração do Rio/92 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável foi proposto na Conferência no Rio de Janeiro, em junho de 1992.