ANAJURE emite Nota Pública sobre a orientação do Governo brasileiro sobre o uso do termo "Gênero"

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O Conselho Diretivo Nacional – CDN da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor, aos órgãos e entidades públicas, à sociedade brasileira, à comunidade internacional, em especial à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA), sua posição sobre a orientação do Itamaraty sobre o termo gênero.  

 

I. SÍNTESE FÁTICA

Nos últimos dias, diversos portais de notícias veicularam a informação de que o Itamaraty emitiu orientação aos seus diplomatas de que, em negociações e foros multilaterais, a palavra “gênero” deve ser utilizada em consonância com a visão adotada pelo governo brasileiro, segundo a qual o termo se refere ao sexo biológico: feminino e masculino[1].

A instrução gerou reações diversas, havendo grupos que se insurgiram por visualizar na posição governamental um ataque à teoria de gênero e aos direitos humanos em geral. A referida teoria, em linhas gerais, defende que a sexualidade é uma construção social, onde a pessoa humana escolhe o que deseja ser, inclusive assegurando tal direito de escolha desde a infância. Desse modo, o homem e a mulher não diferem pelo sexo, mas pelo gênero, e este não possui base biológica, sendo apenas uma construção socialmente imposta ao ser humano, através da família, da educação e da sociedade. “Homem” e “mulher”, portanto, seriam apenas papéis sociais flexíveis, que cada um representaria como e quando quisesse, independentemente do que a biologia determine como genética masculinas e femininas. 

Ao contrário do que costumamos pensar e observar, ipso facto, da realidade, segundo a teoria de gênero, as pessoas não nascem homens ou mulheres, mas são elas próprias condicionadas a identificarem-se como homens, como mulheres, ou como um ou mais dos diversos gêneros que podem ser criados pelo indivíduo ou pela sociedade. Deveria ser considerado normal passar de um gênero a outro e o ser humano deveria ser educado, portanto, para ser capaz de fazê-lo com facilidade, libertando-se da prisão em que o antiquado conceito de sexo o havia colocado.

I.I. Política externa e gênero

Em que pese a grande repercussão do presente caso, manifestações governamentais acerca de gênero, no âmbito da política externa, não são uma novidade no contexto brasileiro.

Resenhas de Política Exterior do Brasil evidenciam isso. No documento referente ao primeiro semestre de 2015[2], por exemplo, destaca-se a realização da I Conferência sobre Questões de Gênero na Imigração Brasileira, evento promovido pelo Ministério das Relações Exteriores e que realçava, dentre outros tópicos, pontos relacionados à comunidade LGBT.

A Resenha do segundo semestre de 2013[3] traz o teor de discurso proferido pelo Ministro das Relações Exteriores, na época, Antônio de Aguiar Patriota, no qual se salientava o compromisso do governo brasileiro com a pauta da identidade de gênero, tendo o país, em 2008, apresentado, junto com outras nações, a “Declaração sobre Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero” ao plenário da Assembleia Geral da ONU. O ministro ainda rememorou que, em 2010, o Brasil e outros 12 países copatrocinaram o “Painel de alto nível sobre o fim da violência e das sanções penais com base em orientação sexual e identidade de gênero”. Patriota ainda mencionou a participação ativa do país na negociação da aprovação da resolução 17/19, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, intitulada “Human rights, sexual orientation and gender identity”.

Há algum tempo, portanto, é evidente a existência de posicionamento do governo brasileiro a respeito das questões de gênero na política externa. Assim, o Itamaraty ao emanar instrução acerca do assunto não foge da lógica adotada nos últimos anos, que é a do posicionamento frente a matéria. O sentimento de dissonância, contudo, advém do teor da manifestação. Ao se referir ao gênero em referência ao sexo biológico, o governo rompe com a linha adotada nos últimos anos, mas o faz sob ótica acertada, como veremos adiante.

I.II Posição governamental

O governo brasileiro instruiu diplomatas do país a utilizar o termo gênero em referência apenas ao sexo biológico, orientando, também, a pedir a retirada do vocábulo de textos de documentos internacionais submetidos à análise dos representantes, incluindo resoluções da ONU.

A posição governamental, embora venha sendo equiparada à postura de países que assassinam homossexuais, como veremos adiante, na verdade, tem encontrado espaço em outros países da América Latina, seja em meio a manifestações populares contrárias à teoria de gênero, seja em âmbito governamental. No Peru, por exemplo, mobilizações da sociedade influenciaram a decisão da Suprema Corte de Justiça em decisão que retirou o enfoque à igualdade de gênero do currículo escolar. No Equador, a resistência à perspectiva progressista de sexualidade também é sentida, produzindo reflexos na eleição de representantes conservadores para compor o grupo responsável pela redação da Constituição da nação. Em outros países, como Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia e Panamá, o debate sobre gênero a partir de uma perspectiva tradicional tem ganhado força nas redes sociais[4].

O Brasil, portanto, não está isolado na reação face aos ensinamentos da teoria de gênero. Existem outros países que também ensaiam uma resistência a tais conceitos, e não são apenas Estados totalitários, como se busca passar.

A fragilidade da teoria de gênero tem sido percebida não somente pelo governo brasileiro, mas pela própria população, que compreende a seriedade da temática e suas repercussões. Na realidade, as diretrizes governamentais estabelecidas são uma resposta ao anseio populacional por uma nova perspectiva acerca da matéria, fator que, inclusive, contribuiu para a eleição do grupo que hoje conduz o Brasil.

Assim, a posição governamental sobre o termo gênero não contém uma desconexão com os interesses da população, pois, na verdade, está afinada com a vontade dos mais de 57 milhões de eleitores que optaram pelo atual governo. Há, portanto, legitimidade popular.

Além de haver correspondência entre a posição adotada e as manifestações em outras nações próximas e no próprio território brasileiro, é importante ressaltar que o posicionamento adotado não acarreta prejuízos ao prestígio do país nas relações internacionais, como se tem dito, o que pode ser evidenciado pelo recente acordo de livre-comércio firmado entre o Mercosul e a União Europeia, demonstrando a inexistência de perda de atratividade do Brasil em termos econômicos.

I.III Repercussão midiática

A mudança de diretriz de atuação na política externa certamente traria como consequência repercussão considerável nos principais portais de notícia. Assim tem sido, mesmo porque trata-se de exercício de direito constitucionalmente assegurado, a liberdade de expressão. No gozo legítimo dessa garantia, no entanto, alguns veículos midiáticos têm se pronunciado de modo incompatível com a realidade dos fatos.

As matérias jornalísticas forçam uma equiparação da conduta brasileira à de países como Arábia Saudita, Paquistão e Bahrein, caracterizados nos textos como Estados que impõem regras medievais para as mulheres, cometem atrocidades contra os que não seguem um dogma religioso[5], executam LGBTs em praça pública, matam centenas de civis na guerra às drogas e apenas recentemente concederam às mulheres o direito de dirigir automóveis[6].

Sugerir semelhança entre a instrução brasileira de mencionar gênero em referência ao sexo biológico e o assassinato de homossexuais em praça pública é deslealdade. A orientação para que não se utilize o termo é consequência da rejeição da teoria de gênero, controversa e desprovida de comprovação, não possuindo qualquer relação com o estímulo à violação de direitos de mulheres ou pessoas LGBTs, que devem ter suas liberdades civis fundamentais asseguradas.

A guerra no campo da linguagem, contudo, tem gerado terreno propício para o fomento intencional de confusão nas discussões que envolvem a sexualidade. Qualquer mínimo sinal de oposição aos componentes da teoria de gênero, mesmo que fundado em alegações técnico-científicas, é tratado não como uma decorrência da pluralidade de visões e da liberdade de expressão, mas como uma manifestação a ser silenciada por meio da associação distorcida ao que há de mais abjeto na humanidade, e que certamente não é o alvo pretendido.

 

II. DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE

A teoria de gênero, ao estabelecer a sexualidade como uma construção social, busca transportar a definição de masculinidade e feminilidade do campo biológico para a seara psicossocial. Sob essa visão, ser homem ou ser mulher se trata de mera imposição cultural aprendida ao longo da vida por meio de determinadas normatividades. Isso compreende elementos como vestimentas, brinquedos e atividades que, desde a infância, são ensinadas às crianças.

É necessário, contudo, realçar algumas contradições presentes nessa teoria. Primeiramente, vale destacar que a teoria de gênero não sobrevive ao seu próprio crivo. Para a perspectiva em comento, as noções tradicionais de masculinidade e feminilidade não se sustentam pois seriam meras construções sociais aprendidas. O que dizer, então, da teoria de gênero? Qual o seu substrato científico? Como não cogitar ser ela mera construção social fruto da pós-modernidade?

Importa destacar, ainda, a rejeição feita pela teoria de gênero à existência de papéis desempenhados por homens e mulheres. Assumindo que a linha delimitadora das diferenças dos comportamentos praticados seja proveniente de construção social, o que norteia a compreensão de um indivíduo acerca da suposta incompatibilidade que ele carregaria em termos de sexo e gênero? Ele perceberia a incompatibilidade do gênero que lhe teria sido culturalmente imposto a partir da observação e posterior adesão a outro padrão de sexualidade também socialmente construído?

Além disso, de modo velado, a teoria de gênero afasta critérios claros decorrentes de aspectos biológicos que permeiam a conduta de homens e mulheres para elevar a autonomia humana à condição de dogma. O sexo com o qual se nasce é rejeitado; a influência da sociedade, também, exceto quando é exercida para absorver os ditames da teoria de gênero; subsiste, apenas, o próprio indivíduo como autor de si.

Em que pese a rejeição dos aspectos biológicos a respeito da matéria, o fato é que a comunidade médica tem importante papel nessa discussão. Nesse sentido, destacamos documento produzido por um grupo de médicos por ocasião do debate sobre a Base Nacional Comum Curricular[7]. Endereçado ao Ministro da Educação, o texto buscava realizar um apelo para que a ideia de identidade de gênero não fosse inserida na BNCC.

Os argumentos elencados diziam respeito, por exemplo, às claríssimas diferenças anatômicas e funcionais entre homens e mulheres, com a ponderação de que embora não se tenha um panorama concluído sobre os fatores que influenciam a autoidentificação e a orientação sexual, “está mais do que evidenciado que há características próprias que diferenciam os cérebros do homem e da mulher, portanto, ‘homem’ e ‘mulher’ existem sim e não são apenas construções sociais, pois existem não socialmente, mas anatômica, fisiológica e neurologicamente”.

O estudo rebateu, ainda, a ideia de que as crianças nascem como uma “página em branco”, pois aludiu a pesquisas que demonstram determinações genéticas que direcionam o desenvolvimento. Desde o nascimento, por exemplo, o bebê já é dotado de uma série de reflexos, como o da preensão palmar, apoio plantar, de busca e de sucção, etc., que ninguém o ensina a realizar. Há em cada ser humano, portanto, uma carga, no formato de reflexos e, também, de hormônios sexuais, que não é adquirida por meio da influência cultural, mas decorre de aspectos biológicos. Vejamos mais algumas considerações:

Assinalemos os achados da endocrinopediatria. Observem o caso da desidroepiandrosterona, um precursor dos hormônios sexuais. Curiosamente, ele é o mesmo em homens e mulheres até um certo ponto da infância, quando se converte em hormônio masculino ou feminino. Essa conversão não se dá pelo que o indivíduo pensa que é ou como ele se comporta. O que desencadeia essa conversão é o sexo genético, que é a leitura que o próprio corpo do indivíduo tem de si mesmo, inscrita no código genético de cada uma das células do seu corpo, nos já bem conhecidos cromossomos sexuais, os quais são ou feminino ou masculino, ou seja, XX ou XY, respectivamente, sem terceira opção. Conclui-se que o próprio corpo determina, através de uma mensagem genética, qual hormônio produzirá, baseado no sexo a que   o indivíduo pertence (BRAMBLE et al, 2017; DATTANI et al, 2011; HABENER, 2011).

Demonstradas as incoerências acima, salientamos que a crítica aos fundamentos e conceitos da teoria de gênero não deve ser desfigurada para ser caracterizada como uma postura de agressividade diante de pessoas LGBT. A seara do debate teórico demanda, para o seu próprio desenvolvimento, discussões, diálogos e, naturalmente, discordâncias. Há diferentes escolas de pensamento filosófico, sociológico e político, por exemplo, existindo a compreensão de que, quando os adeptos de distintas correntes divergem entre si, não há como desdobramento necessário do desentendimento a configuração imediata de uma fobia ou a prática de agressões. São discordâncias que surgem como fruto da pluralidade.

Assim, embora encampe a defesa da ausência de plausibilidade da teoria de gênero, a ANAJURE se posiciona favoravelmente à proteção das liberdades civis fundamentais das minorias sexuais, pois as duas manifestações não guardam incompatibilidade.

O posicionamento da Associação em outras ocasiões nas quais o assunto esteve em debate comprovam o alegado. Em 2015, durante as discussões sobre a aplicação do Plano Nacional de Educação nos Estados e Municípios, a ANAJURE defendeu a proteção dos direitos das minorias sexuais ao sustentar a inserção do princípio geral de direito humano da não discriminação no texto legislativo de cada ente, de forma que fossem contempladas universalmente todas as formas históricas de discriminação, evitando a limitação das garantias apenas a determinadas classes e a ideologização do discurso dos direitos humanos[8]

Mais recentemente, ao ser instada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos a apresentar contribuições técnicas para o texto do novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-4)[9], a ANAJURE incluiu, dentre diversos preceitos relativos à proteção dos direitos humanos, dispositivos voltados para a proteção das minorias sexuais, inclusive no tocante ao combate da violência praticada contra esses grupos.

Todo o exposto torna patentes as incongruências presentes na teoria de gênero, além de demonstrar o caráter falacioso do discurso que sugere que a indisposição com os termos da referida teoria signifique necessariamente agressividade e tolhimento de direitos de minorias sexuais. Desse modo, não é desarrazoado que o governo brasileiro opte por se desvincular, no exercício de sua política externa, de conceitos provenientes de uma teoria desprovida de fundamentos sólidos.

 

III. DA CONCLUSÃO

Ante o exposto, a ANAJURE (I) manifesta apoio à posição governamental acerca da não utilização do termo “gênero” nos moldes propostos pela teoria de gênero; (II) defende a possibilidade de se tratar tais temas no âmbito da política externa, inclusive, por meio de orientações aos agentes envolvidos no setor; (III) rejeita a perspectiva proposta pela teoria de gênero a respeito do sexo ser mera construção social, reafirmando a existência de elementos biológicos que não podem ser ignorados; (IV) repudia distorções midiáticas ao noticiar acontecimentos relacionados a temas delicados, como a sexualidade; (V) posiciona-se contrariamente a toda manifestação de agressividade perante minorias sexuais, asseverando o seu compromisso inegociável com a proteção das liberdades civis fundamentais.

 

Brasília, 28 de junho de 2019

 

Uziel Santana

Presidente do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE

 


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/itamaraty-orienta-diplomatas-a-frisar-que-genero-e-apenas-sexo-biologico.shtml

[2] http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha-1-2015.pdf

[3] http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha_N113_2Sem_2013.pdf

[4] https://www.brasildefato.com.br/2017/11/29/do-mexico-ao-uruguai-campanha-contra-ideologia-de-genero-mobiliza-conservadores/

[5] https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/a-diplomacia-teologica-brasileira-um-relato-de-um-dia-na-onu/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2019/06/o-sexo-biologico-do-itamaraty.shtml

[7] https://pt.scribd.com/document/364252969/CONTRIBUICAO-E-APELO-MEDICO-CIENTIFICO-pdf.

[8] http://anajure.org.br/wp-content/uploads/2015/06/Parecer.PNE_.PEE_.PME_.Final-2-1.pdf

[9] https://www.anajure.org.br/anajure-cria-comissao-do-programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-e-comissao-de-direito-previdenciario-das-igrejas-e-suas-entidades-e-dos-ministros-de-confissao-religiosa/

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