ARTIGO: A desconsideração da pessoa jurídica no Ordenamento Jurídico brasileiro

A aplicação da Teoria da Desconsideração nos códigos, leis esparsas e casos concretos

artigoIntrodução conceitual

O ordenamento jurídico hodierno atribui às pessoas jurídicas personalidade distinta da dos seus componentes (pessoas naturais). Destarte, esse princípio delibera autonomia patrimonial às sociedades empresárias, de modo que, mediante motivações ilícitas e escusas, elas podem ser usadas como instrumentos para a prática de fraudes, abusos de direito contra credores, entre outras ações ilícitas. Diante disso, em ocasiões como essas, conseguintemente, os credores são eminentemente prejudicados. Portanto, é sabido que a pessoa jurídica pode ser usada como uma “capa” ou “véu” para a proteção de negociações fraudulentas efetuadas por seus membros mal-intencionados.

Haja vista à condição supracitada, vários países buscaram uma reação para coibir tais práticas, com efeito, foi fomentada e originada à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que recebeu o seguinte nome no direito anglo-americano: disregrad doctrine ou disregrad of legal entity. Vale ressaltar, que essa teoria também recebeu outras nomenclaturas no direito de outros países (Alemanha, França e Itália, por exemplo), contudo, as mesmas buscaram similares finalidades.

A teoria referida, segundo Carlos Roberto Gonçalves, permite que: “o juiz, em casos de fraude e de má-fé, desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros e os efeitos dessa autonomia, para atingir e vincular os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade” (GONÇALVES, 2011). Esclarecendo a teoria, Fábio Ulhoa Coelho afirma que o juiz nesses casos pode “deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a coibição se respeitada à autonomia da sociedade.” (COELHO, 2011).

Desconsideração e despersonalização

Superada as definições teóricas e principiológicas da desconsideração da pessoa jurídica, faz-se mister, diferenciar despersonalização de desconsideração da personalidade jurídica. Aquela desemboca na dissolução da pessoa jurídica, ou na cassação da autorização de funcionamento da mesma (art. 51 do CC de 2002), esta, por sua vez, é concernente apenas a eficácia episódica, ou seja, apenas a determinado ato que foi praticado com intenções fraudulentas ou ilícitas. Portanto, em regra, a desconsideração não atinge a validade do ato constitutivo da pessoa jurídica.

A desconsideração no nosso ordenamento jurídico
Código Civil de 2002

A desconsideração está categoricamente expressa no Art. 50 do nosso Código Civil de 2002, in verbis: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. O Código Civil, portanto, pretende que, quando a pessoa jurídica se desviar dos fins determinantes de sua constituição, ou quando houver confusão patrimonial, em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, esteja autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes de sócios que dela se valeram como escudo sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica. Com isso subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios; tal distinção, no entanto, é afastada, provisoriamente, para um dado caso concreto, estendendo a responsabilidade negocial aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, consoante já fora esclarecido.

Código de Defesa do Consumidor

Além do CC de 2002, a desconsideração da pessoa jurídica também está presente em outras leis e searas do nosso direito. O Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11/09/1990 – CDC), em seu art. 28 e seus respectivos parágrafos, delibera prerrogativas ao juiz para desconsiderar a personalidade jurídica “quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração (art. 28, CDC).

Lei 9.605 de 12/02/1998 (Lei dos crimes ambientais)

A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, traz em seu art. 4 a seguinte redação: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente” (art. 4, Lei 9.605/98).

Enunciados do Conselho da Justiça Federal e casos julgados

Nos Enunciados do Conselho da Justiça Federal, essa teoria também foi claramente explicitada. O Enunciado n. 7, aprovado na Jornada de Direito de Civil de 2002, traz o seguinte texto: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular, e limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido”. E, pelo seu Enunciado n. 51, a disregard doctrine fica positivada no Código vigente, e os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção doutrinária serão mantidos. Pelo seu Enunciado n. 146 (aprovado na Jornada de Direito Civil de 2004): “Nas relações civis, interpretam-se restritivamente os parâmetros de desconsideração da personalidade jurídica previstos no art. 50 (desvio de finalidade social ou confusão patrimonial)”. Além destes, Na IV Jornada de Direito Civil foram aprovados, ainda, os seguintes Enunciados: a) 281 — “A aplicação da teoria da desconsideração, descrita no art. 50 do Código Civil, prescinde da demonstração de insolvência da pessoa jurídica”; b) 282 — “O encerramento irregular das atividades da pessoa jurídica, por si só, não basta para caracterizar abuso de personalidade jurídica”; c) 283 — “É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”; d) 284 — “As pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos ou de fins não econômicos estão abrangidas no conceito de abuso da personalidade jurídica”; e e) 285 — “A teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”.

Caso julgado no STJ

Para melhor compreensão, à luz de um caso concreto julgado onde vemos claramente a teoria referida neste trabalho, trago o seguinte excerto de um caso da matéria aludida analisado no STJ: “A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato da expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. O sócio alcançado pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária torna-se parte no processo e assim está legitimado a interpor, perante o Juízo de origem, os recursos tidos por cabíveis, visando a defesa de seus direitos” (STJ, 3ª T., RMS 26.274/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. Em 19-8-2003, DJ, 2-8-2004, p. 359).

Em suma, mediante a citação e análise de todos os dispositivos legais, bem como os Enunciados e o julgado supracitados, verificamos em nosso ordenamento jurídico uma ampla incidência e aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Teoria maior e teoria menor

No direito brasileiro, a doutrina e jurisprudência reconhece uma bifurcação da teoria da desconsideração, quais sejam: a teoria maior e a teoria menor da desconsideração. Segundo a teoria maior, adotada pelo art. 50 do CC, para efeito de desconsideração, exige-se o requisito específico do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Já a teoria menor, mais fácil de ser aplicada, adotada pelo CDC e pela legislação ambiental, não exige a demonstração de tal requisito. Cumpre ressaltar, para tanto, que a teoria maior divide-se em objetiva e subjetiva. Esclarecendo a referida divergência, Carlos Roberto Gonçalves traz a seguinte distinção acerca da teoria maior objetiva e subjetiva: “Para a primeira, a confusão patrimonial constitui o pressuposto necessário e suficiente da desconsideração. Basta, para tanto, a constatação da existência de bens de sócio registrados em nome da sociedade, e vice-versa. A teoria subjetiva, todavia, não prescinde do elemento anímico, presente nas hipóteses de desvio de finalidade e de fraude. É pressuposto inafastável para a desconsideração o abuso da personalidade jurídica” (GONÇALVES, 2011).

Desconsideração inversa

Quando o princípio da autonomia patrimonial de uma pessoa jurídica é afastado para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, caracteriza-se a desconsideração inversa. Como exemplo, podemos usar uma situação hipotética onde um dos cônjuges de um casal, ao adquirir bens de maior valor, os registra em nome da pessoa jurídica a qual ele administra, gerência ou controla, para que, em caso de separação judicial, os referidos bens não sejam afetados na partilha. Neste caso, poderá se desconsiderar a autonomia patrimonial, de modo que, a pessoa jurídica, seja responsabilizada a pagar o que deve ao ex-cônjuge do sócio que causou a confusão patrimonial.

Conclusão

Ante todo o exposto, fica claro e evidente que a referida teoria demonstra uma evolução na legislação brasileira, visto que a amplitude da sua aplicação, ora nos códigos ora nas leis esparsas, bem como no entendimento dos tribunais, visa, sobretudo, a coibição de atos fraudulentos e mal-intencionados por parte de pessoas que se utilizam da pessoa jurídica como escudo. Portanto, concluímos que a teoria da desconsideração é de grande relevo para o nosso ordenamento.


Referências Bibliográficas

COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14ª Ed. Saraiva. São Paulo. 2003.
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Acesso em 06 de jul, 2015.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. I. 18ª Ed. Saraiva. São Paulo. 2002.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume I: parte geral. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
NERY JR, Nelson & NERY, Rosa Maria Barreto de Borriello de Andrade. Novo Código Civil e Legislação Extravagantes Anotados. 1ª Ed. São Paulo. 2002.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. 19ª Ed. Forense. Rio de Janeiro. 2000.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Acesso em 06 de Jul, 2015.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4.ºed. São Paulo: Método, 2014.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, vol. I. 3ª Ed. Atlas. São Paulo. 2003.

 

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Por: Rafael Durand – Bacharelando em Direito
Estudante do curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, colaborador da ANAJURE (Associação Nacional de Juristas Evangélicos), amante da Teologia e Secretário Geral do Instituto Paraibano de Direito do Trabalho – IPDT.

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