ARTIGO l Se o ensino é laico, a ciência é o quê? (PARTE 01)

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                                                   Considerações sobre a influência da religião na laicidade do ensino
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Na última terça-feira (23/05), em dias de discussão acerca da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), sobre o que nos manifestaremos com detalhes em futuro próximo, a Revista Galileu, conhecida por ter uma postura estimuladora da curiosidade científica, publicou uma reportagem sob o título “Criacionismo ou evolução? Papel da religião é debatido nas escolas”[1], no qual se propõe a discutir sobre a relação do ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, mas acaba por desaguar no conflito entre a religiosidade e a ciência.

O texto inicia citando três fatos reais, cuja apuração de fidedignidade não é objeto da presente análise, para posicionar o leitor quanto ao mau uso da laicidade estatal para discriminação religiosa no ambiente escolar e chega ao ápice do seu raciocínio até então quando cita que “Um relatório [sem identificação] da Organização das Nações Unidas (ONU) [sem especificar o órgão de origem] em 2011 revelou que a disciplina constava como obrigatória em escolas públicas [sem indicar quais] de pelo menos 11 estados”.

É verdade que a Constituição Federal afirma que o Brasil é um Estado democrático (art. 1º, caput), que se fundamenta no pluralismo (art. 1º, V), e assegura a liberdade religiosa (art. 5º, VI), razão pela qual prevê o ensino religioso de matrícula facultativa (art. 210, §1º). É também verdade que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96) afirma que o ensino religioso “é parte integrante da formação básica do cidadão”, mas deve ser “assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa” e “vedadas quaisquer formas de proselitismo” (art. 33, caput). Entretanto, a esta altura é necessário fazer uma pausa estratégica para analisar o referido documento internacional.

Trata-se do Relatório A/HRC/17/38/Add.1, da Relatoria Especial sobre Direitos Culturais do Alto Comissariado das Nações Unidas, capitaneada pela Farida Shaheed, referente à missão ao Brasil, entre 08 a 19 de novembro de 2010, apresentado em março de 2011 à Assembleia Geral da ONU[2]. Dentre outras tantas questões importantes, mas não essenciais à presente análise, o texto assevera o seguinte nas páginas 17 e 18[3]:

As informações recebidas pelo especialista independente indicam que o ensino religioso é oferecido em escolas públicas em pelo menos 11 Estados com irregularidades em detrimento da liberdade de religião e crença, reconhecimento das religiões afro-brasileiras e o caráter laical do Estado (…) Deixar o conteúdo dos cursos religiosos ser determinado pela crença pessoal do corpo de professores ou administradores escolares; usar o ensino da religião para proselitismo; ensino de religião como curso obrigatório, em vez de opcional, nas escolas públicas, e excluir as religiões de origem africana do currículo foram relatadas como principais preocupações.

Para aqueles que não têm ideia do funcionamento, nem da estrutura administrativa da Organização das Nacionais Unidas, precisamos esclarecer que o “especialista independente” referido é o próprio relator, no caso a Farida Shaheed, que é uma socióloga paquistanesa e ativista dos direitos das mulheres, com experiência internacional em diversas publicações, pesquisas e ajuda humanitária[4].

Ela cita que o ensino religioso em escolas públicas brasileiras é oferecido com irregularidade nos estados de Alagoas, Amapá, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, mas de onde veio essa informação? Quais foram os documentos acessados? Quais são as escolas onde isso acontece? Elas foram visitadas? Ou foram captados apenas dados em jornais? Se sim, onde estão as fontes? Seriam estas confiáveis? Nenhuma destas perguntas tem respostas no relatório referido, que o autor do texto da Revista Galileu toma por base para fundamentar um cenário caótico de infração a liberdades civis fundamentais no Brasil.

Em sentido contrário, ao analisar objetivamente a realidade, vemos que a Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 3459/00[5], coincidentemente citado como um dos locais infratores da laicidade escolar, prevê, em consonância às previsões constitucionais e legais já vistas, que “No ato da matrícula, os pais, ou responsáveis pelos alunos deverão expressar, se desejarem, que seus filhos ou tutelados freqüentem as aulas de Ensino Religioso” (art. 1º, parágrafo único).

Mais ainda, em consonância ao parecer nº CP 097/99[6], do Conselho Nacional de Educação, esta mesma norma local que prevê que “só poderão ministrar aulas de Ensino Religioso nas escolas oficiais”, aqueles que “tenham sido credenciados pela autoridade religiosa competente, que deverá exigir do professor, formação religiosa obtida em Instituição por ela mantida ou reconhecida” (art. 2º, caput e II), sendo que “Fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é atribuição específica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-lo integralmente.” (art. 3º).

Vejamos, portanto, que, tomando a realidade do Rio de Janeiro por exemplo, não é possível concluir que o conteúdo religioso tem atrapalhado a laicidade estatal, quando, na verdade, este estado privilegiou a liberdade religiosa por meio de uma diversidade de professores e, mais ainda, valoriza a particularidade de cada ordem religiosa em conferir habilitação aos seus representantes, sem incidir na mesma discussão sobre os requisitos editalícios para e a participação de sacerdotes de religiões afro-brasileiras em concursos públicos para capelão militar[7]. Nesse sentido, até mesmo o preâmbulo constitucional, sem ferir a individualidade de cada um, reconhece o valor da presença do transcendente para que a vida humana possa seguir com sentido completo[8].

A limitação metodológica deste relatório fica ainda mais patente quando verificamos, na sua introdução (página 4), que a autora enumera os municípios para os quais viajou – Brasilia/DF, Rio de Janeiro/RJ, São Paulo/SP, Dourados/MS e Salvador/BA – e, mais ainda, os locais que visitou – Ceilândia (Distrito Federal), as favelas de Manguinhos e Pavão Pavãozinho (Rio de Janeiro), a Reserva indígena Tey’ikue (Caarapó/MS), os terreiros Ile Axé Opó Afonjá (Salvador/BA) e São Jorge Filho da Gomeia (Lauro de Freitas/BA) (Bahia) e os índios Guarani (Dourados e Campo Grande/MS)[9].

Ora, como poderia o relatório concluir que existe violações do direito ao ensino religioso laico em escolas de onze estados brasileiros, se a Relatora só visitou cinco? Como poderia o relatório falar destas violações se elas não foram apuradas nem mesmo nos estados onde a Relatora esteve presente, pois não está destacada uma escola sequer nas visitas? E, ainda que tais visitas tivesse sido realizadas, é fidedigno fazer um julgamento de valor tão sério em uma única oportunidade? Definitivamente, o presente documento, quanto a esta análise, não serve como parâmetro de julgamento, nem mesmo como dado estatístico utilizando uma taxa de amostragem, pois demonstra não ter compromisso com a verdade real.

Entretanto, ainda mais sério do que o dado empírico já referido, são as conclusões as quais chega o relatório, ao apontar as principais preocupações nas relações sobre o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras, pois é uma generalização sem qualquer compromisso ético ou técnico! Não há uma prova sequer no referido documento que demonstre um sistemático favorecimento das religiões majoritárias no currículo escolar, nem discriminação por parte de servidores públicos da educação contra pessoas de religião afro-brasileiras, nem de imposição de ensino ou proselitismo constrangedor em sala de aula, mas lutar contra todas estas acusações foram recomendações na conclusão do presente documento (página 22)[10].

Por todo o exposto, vemos que o primeiro grande fundamento do autor do texto da Revista Galileu, na verdade, não passa de um estudo metodologicamente limitado e sem compromisso com a verdade real, feito para destruir a preciosidade e essencialidade do ensino religioso leigo, mas não antirreligioso, nas escolas públicas brasileiras.

Nos próximos comentários, seguiremos analisando as demais partes deste mesmo texto, para demonstrar o quanto racionalmente insustentáveis são as suas declarações.

Até a próxima!

UZIEL SANTANA DOS SANTOS
Coordenador Nacional do PAIEC
OAB/SE nº 4484

EDMILSON EWERTON RAMOS DE ALMEIDA
Parecerista do PAIEC
OAB/PB nº 16273


[1] http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/05/criacionismo-ou-evolucao-papel-da-religiao-e-debatida-nas-escolas.html

[2] https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G11/122/21/PDF/G1112221.pdf?OpenElement

[3] “Information received by the independent expert indicates that religious teaching is offered in public schools in at least 11 States, with irregularities to the detriment of the freedom of religion and belief, recognition of Afro-Brazilian religions, and the laical character of the state. Many stakeholders stressed that there is a contradiction between the preamble of the Constitution, which recognizes the laical character of each state, and the de facto compulsory education of religion in some public schools, particularly when the matter is left in the hands of education authorities at the Federated State and municipal levels in a country where religion occupies a privileged place in society, and the majority of the
population is Christian. Some stakeholders recommended that materials used for teaching religion in public schools should be submitted for review by academic experts, as is the case for other teaching materials, and that funds in a laical state should not be used to purchase religious books for schools. Leaving the content of religious courses to be determined by the personal belief system of teachers or school administrators; using the teaching of religion to proselytise; teaching religion as a compulsory, instead of optional course in public schools, and excluding religions of African origin from the curriculum were reported as major concerns that impede the effective implementation of this Constitutional provision”.

[4] http://www.ohchr.org/EN/Issues/CulturalRights/Pages/FaridaShaheed.aspx

[5]http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/16b2986622cc9dff0325695f00652111?OpenDocument

[6] http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pcp097_99.pdf

[7] http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/leitor/capelaomilitar.pdf

[8]“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.

[9] “1. At the invitation of the Government, the independent expert in the field of cultural rights visited Brazil from 8 to 19 November 2010. The mission was facilitated by the Office of the United Nations Resident Coordinator and the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), and included visits to the cities of Brasilia (Federal District), Rio de Janeiro (State of Rio de Janeiro), São Paulo (State of São Paulo), Dourados (State of Mato Grosso do Sul) and Salvador (State of Bahia). 2. The independent expert visited cultural projects of various partnerships and initiatives in Ceilandia (Federal District), the favelas of Manguihnos and Pavan Pavãozinho (Rio de Janeiro), Teyikue in Caaparó municipality (Mato Grosso do Sul), as well as the terreiros Ile Axé Opó Afonjá in Salvador and São Jorge Filho da Gomeia in the municipality of Lauro de Freitas (Bahia). The independent expert also visited Guarani indigenous peoples in the State of Mato Grosso do Sul, in the surroundings of the cities of Dourados and Campo Grande.”

[10] 92. The independent expert encourages Brazil to:
(f) Undertake participatory processes with communities and persons of African descent with a view to adopting effective measures to address religious intolerance in the education system in Brazil, in line with the findings and concerns expressed by the 2010 mission on education and racism in Brazil, undertaken by the Brazilian Platform on Economic, Social, Cultural and Environmental Human Rights (DHESCA).
94. The independent expert wishes to draw Brazil’s attention to the recommendation made by the Special Rapporteur on freedom of religion and belief in his most recent report to the Human Rights Council (A/HRC/16/53, paragraph 60), according to which educational policies should aim to strengthen the promotion and protection of human rights, eradicate prejudices and conceptions incompatible with
freedom of religion or belief, and ensure respect for and acceptance of pluralism and diversity in the field of religion or belief as well as the right not to receive religious instruction inconsistent with one’s conviction. The independent expert wishes to stress that, in many instances, these are cultural communities with specific ways of life. Efforts should be made to establish advisory bodies at different levels that take an inclusive approach by involving different stakeholders in the preparation and implementation of school curricula related to issues of religion or belief, and in the training of teachers.

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