Nota Pública

Nota contra a censura e em defesa da liberdade de imprensa

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) manifesta publicamente sua preocupação e oposição a trechos das medidas cautelares impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro (na PET 14.129/DF), especificamente a extensão da proibição de uso de redes sociais.

NOTA PÚBLICA

Em face das medidas cautelares impostas pelo Supremo Tribunal Federal contra o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro na PET 14.129/DF

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no exercício de sua missão institucional de defesa do Estado Democrático de Direito, das liberdades civis e dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, vem a público manifestar-se sobre a recente decisão proferida pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no âmbito da Petição (PET) n. 14.129/DF, que impôs severas medidas cautelares ao ex-Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, cujo alcance extrapola a pessoa do investigado, atingindo a coletividade dos cidadãos e a imprensa livre brasileira.

Inicialmente, a ANAJURE reafirma seu inequívoco compromisso com o Estado Democrático de Direito e a devida apuração de quaisquer atos que atentem contra as instituições democráticas. Não obstante, a ANAJURE ressalta que a legitimidade e a força do Estado de Direito residem precisamente em sua capacidade de responder às mais graves ameaças com estrita observância aos princípios e garantias constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e das liberdades fundamentais que protegem a todos os cidadãos, sem distinção.

Nesse sentido, a presente manifestação não adentra o mérito das acusações, mas se debruça sobre a constitucionalidade e a proporcionalidade das medidas cautelares impostas, que suscitam profunda preocupação cívica.

1. Sobre a decisão que impôs as graves medidas cautelares

Em decisão de 17 de julho de 2025, posteriormente confirmada pela Primeira Turma em 23 de julho, o Ministro Alexandre de Moraes impôs ao ex-presidente Jair Messias Bolsonaro um conjunto de medidas cautelares diversas da prisão, incluindo o uso de tornozeleira eletrônica com recolhimento domiciliar noturno e integral aos finais de semana, a proibição de contato com outros investigados e a proibição de se ausentar da comarca.

Dentre as restrições, determinou-se a “proibição de utilização de redes sociais, diretamente ou por intermédio de terceiros”. Contudo, em despacho posterior, o Ministro estendeu o alcance desta medida de forma drástica, afirmando que ela inclui, “obviamente, as transmissões, retransmissões ou veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em qualquer das plataformas das redes sociais de terceiros”, sob pena de revogação da medida e decretação da prisão preventiva.

2. Acerca do voto divergente do Min. Luiz Fux

O frágil fundamento da grave decisão não deixou de ser notado em sede do próprio julgamento. Em seu voto divergente, o Ministro Luiz Fux apontou, com prudência e precisão, a ausência dos requisitos legais indispensáveis para a imposição das medidas restritivas.

O Ministro destacou que a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República não apresentaram “provas novas e concretas nos autos de qualquer tentativa de fuga empreendida ou planejada pelo ex-Presidente”. Tal fato, somado à circunstância de o investigado já possuir "domicílio certo e passaporte retido", esvaziaria a necessidade das novas e severas medidas.

Para o Ministro, a fundamentação da decisão na "possível prática de ilícitos" careceria da robustez e da contemporaneidade exigidas pelo ordenamento processual penal para justificar restrições que, nas palavras de Fux, se mostram desproporcionais.

3. A Censura Prévia e a Afronta à Liberdade de Expressão e de Imprensa

O ponto mais grave da decisão, contudo, e que motiva esta manifestação, é a inconstitucionalidade material da extensão da proibição do uso de redes sociais.

As medidas cautelares impostas pela Primeira Turma incluem a proibição da veiculação de “transmissões, retransmissões ou veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em qualquer das plataformas das redes sociais de terceiros”. Ao vedar a veiculação de em plataformas de “redes sociais de terceiros”, a medida representa, no contexto da sociedade hiperconectada moderna, uma interdição à liberdade de expressão do investigado em qualquer esfera, sob o risco de que vazamentos e gravações não autorizadas e posteriormente divulgadas importem em violação da medida cautelar imposta.

Mais importante: ao restringir a veiculação em mídias sociais, a decisão da Primeira Turma termina por impedir por completo a atividade jornalística, violando a liberdade de imprensa de todos os veículos de comunicação social brasileiros garantida nos artigos 5º, inciso IX, e 220 da Constituição Federal. Trata-se, nos dizeres do editorial do Estado de São Paulo, de um “escandaloso caso de censura prévia”.

É imperativo recordar a histórica decisão desta mesma Corte no longínquo ano de 2009, que, ao julgar a Lei de Imprensa como não recepcionada pela Constituição em sede da ADPF 130, estabeleceu o mais alto padrão de proteção a essas liberdades. Como sentenciou o Ministro Carlos Ayres Britto, relator daquele acórdão, “é definitiva lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica”.

A decisão atual, ao criar embaraços à divulgação de informações, contradiz diretamente o espírito daquele julgamento. A lógica constitucional, como assentado na ADPF 130, é a de que a liberdade de expressão deve ser plena, “sem que o receio ou mesmo o temor do abuso seja impeditivo do pleno uso das liberdades de manifestação do pensamento e expressão em sentido lato”. A eventual responsabilização por abusos deve ocorrer a posteriori, por meio do direito de resposta e de ações cíveis ou penais, jamais por meio da asfixia prévia do direito de falar, de informar e de ser informado.

Este entendimento representa um perigoso retrocesso e contrasta de forma gritante com o precedente do caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, em 2018, mesmo preso, teve seu direito de conceder entrevista justamente garantido pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que invocou a ADPF 130 para afirmar que a “plena liberdade de imprensa é categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”.

A decisão também inova perigosamente ao transferir ao investigado a responsabilidade por atos de terceiros. Ao ameaçar a decretação de prisão preventiva caso declarações sejam indiretamente veiculadas por terceiros em suas plataformas, como é o caso de jornalistas, a Corte ameaça a imposição de medidas restritivas de direitos fundamentais a um cidadão brasileiro por uma conduta que ele não praticou e sobre a qual não necessariamente detém qualquer poder ou ingerência.

O mecanismo adotado repete a triste tendência recente da Corte Constitucional à imposição de restrições e sanções cujo escopo transcende as partes e envolve terceiros não envolvidos no processo, tal como se deu na suspensão da plataforma Twitter/X em 2024, em sede da Pet 12.404. Na ocasião, o Min. Alexandre de Moraes determinou não apenas a cessação do funcionamento da plataforma, mas também suspendeu serviços de VPN e impôs multa de 50 mil reais contra usuários sem relação com o processo que utilizassem a rede social através de meios tecnológicos para contornarem o bloqueio. Assim como no caso de 2024, a recente medida ignora a pessoalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais a serem adotadas no âmbito do processo judicial, cuja causa da imposição ou os efeitos das medidas não devem envolver de forma significativa terceiros não envolvidos.

4. Os Efeitos deletérios da decisão

Além de suas flagrantes fragilidades jurídicas, a decisão produz efeitos práticos que são contrários ao fortalecimento do Estado de Direito. Conforme se observa de forma cristalina nas manifestações da imprensa, as medidas adotadas são percebidas como desproporcionais e abusivas, descredibilizando o Supremo Tribunal Federal em seu papel de guardião da constituição. A percepção é danosa, fortalece segmentos que questionam a legitimidade democrática e alimenta a polarização que tanto mal faz ao país.

Por fim, a decisão gera um grave "efeito inibidor" (chilling effect) sobre a imprensa. O receio de que a publicação de uma entrevista possa resultar na prisão do entrevistado, ou mesmo em sanções contra o entrevistador, constitui uma ameaça que induz à autocensura e empobrece o debate público, minando a liberdade de imprensa construída tão laboriosamente ao longo destes 37 anos de democracia brasileira.

Conclusão

Diante do exposto, a ANAJURE clama à Egrégia Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que, em nome da fidelidade à Constituição e da saúde do Estado Democrático de Direito, reveja e module as medidas cautelares impostas, decotando os excessos que configuram censura prévia e que violam as liberdades de expressão e de imprensa, para que o processo cumpra seu papel histórico de forma inquestionável e legítima.

A resposta a possíveis ameaças à democracia não pode se dar pela supressão de garantias fundamentais. Buscar combater o risco do autoritarismo com ferramentas que dele se avizinham é uma contradição que enfraquece as próprias instituições que se pretende proteger. Afinal, como ensinou o imortal Ruy Barbosa, “de todas as liberdades é a de imprensa a mais necessária e a mais conspícua: sobranceia e reina entre as mais. Cabe-lhe, por sua natureza, a dignidade inestimável de representar todas as outras." Protegê-la em sua plenitude é proteger a própria democracia.

Brasília-DF, 23 de julho de 2025.

Edna V. Zilli

Presidente

Matheus Carvalho

Diretor executivo