Nota pública sobre o PL 3346, que busca assegurar ao empregado o exercício da guarda religiosa

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A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota de Pública sobre o PL 3346/2019, cuja finalidade é assegurar ao empregado o exercício da guarda religiosa.

I – SÍNTESE DA PROPOSTA

O Deputado Federal Wolney Queiroz (PDT/PE) apresentou, em 05 de junho de 2019, o Projeto de Lei n. 3346[1], que pretende modificar o texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para viabilizar que o empregado cumpra prestação alternativa quando o seu dia de guarda religiosa coincidir com o dia de trabalho.

A proposta, segundo o Deputado Wolney Queiroz informou, busca dar efetividade ao direito ao descanso semanal remunerado e à liberdade religiosa sem, por outro lado, gerar prejuízos para a empresa contratante.

O art. 67 da CLT dispõe sobre o repouso semanal remunerado do empregado. A proposta busca alterá-lo para inserir parágrafos que regulem a realização de prestação alternativa em caso de guarda religiosa, utilizando como base o art. 5º, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988, que prevê a objeção de consciência.

O PL busca garantir que o empregado possa realizar prestação alternativa sem nenhum ônus, desde que faça a solicitação por meio de requerimento prévio e motivado e entre em comum acordo com o empregador.

Nos termos da proposta, o obreiro teria duas possibilidades: (1) escolher o dia do repouso semanal remunerado quando o seu período de labor coincidir com os dias ou turnos de guarda religiosa; (2) optar por sistema compensatório dos horários em que estiver ausente, acrescentando horas à jornada diária ou trocando de turno.

Caso o empregador não aceite a solicitação feita pelo empregado, deverá demonstrar razões plausíveis, indicando a impossibilidade de ajuste da rotina laboral. Nesse caso, o empregado poderá requerer a rescisão do contrato de trabalho, sem prejuízo do tempo trabalhado e dos direitos assegurados.

Ademais, o projeto ainda veda que, no momento da entrevista de trabalho, sejam feitas perguntas de teor discriminatório.

A proposta inicial recebeu o acréscimo de algumas disposições após a apresentação de um substitutivo. Dentre as alterações, é possível citar a adição de um parágrafo que prevê a garantia de que o empregado possa utilizar, no local de trabalho, adereços associados ao seu credo, salvo incompatibilidade ou impedimento justificável.

Além de modificar o art. 67 da CLT, o projeto, após a redação do substitutivo, passou a incluir mudanças na Lei n. 8.112/1990, que institui o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. De forma geral, as alterações são as mesmas propostas para a CLT.

Isto é, busca-se inserir na Lei n. 8112/1990 disposições que viabilizem a guarda religiosa pelo servidor adepto de uma confissão de fé que adote um dia sagrado de descanso. Também se propõe uma modificação na referida lei para que o servidor possa utilizar, no local de serviço, adereço associado ao seu credo, salvo possibilidade ou impedimento justificável.

Considerando o impacto que o projeto poderá gerar sobre a liberdade religiosa e a objeção de consciência, caso aprovado, a ANAJURE entende pela pertinência de se posicionar sobre a matéria, nos termos a seguir apresentados.

II – LIBERDADE RELIGIOSA E OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA

Os direitos à liberdade religiosa e à objeção de consciência estão resguardados pelo texto constitucional brasileiro, conforme vemos abaixo:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (…)

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Observando a topologia constitucional, percebemos a inserção dos direitos referidos acima no rol de Direitos e Garantias Fundamentais, os quais abrangem diferentes dimensões da vida humana e fundam o próprio Estado de Direito. Nesse sentido, a liberdade figura como expressão dos direitos fundamentais, sendo sobremaneira valorizada na Carta Magna e também consagrada em documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Especificamente no tocante à liberdade de pensamento, de consciência e religião, o referido diploma internacional dispõe:

Art. XVIII. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

Do texto fixado pela DUDH, extraímos que a proteção à liberdade de consciência e crença não pode ser reduzida a uma convicção de fé interna, compartilhada pelo indivíduo apenas no âmbito privado de sua vida. O raciocínio adotado pela legislação também encontra guarida na seara doutrinária, de onde extraímos as seguintes lições de Jónatas Machado:

(…) o programa normativo do direito à liberdade religiosa deve ser interpretado de forma extensiva, de forma a proteger todas as manifestações, experiências, vivências, atividades e comportamentos religiosamente motivados, individuais e colectivos, públicos e privados, sem prejuízo da necessária salvaguarda dos direitos de todos os indivíduos e dos bens fundamentais da comunidade e do Estado. O direito à liberdade religiosa deve ser objecto de uma interpretação sistemática, no sentido jurídico, que proteja as dimensões pessoais e institucionais da vivência religiosa, como a expressão, a informação, a comunicação social, o ensino, a circulação de nacionais e estrangeiros ligados a uma confissão religiosa, a reunião, a manifestação, a associação, a assistência social, a cultura, etc[2]. (Grifo nosso).

Portanto, para que haja gozo real da liberdade de consciência e de crença, é preciso assegurar ao ser humano a possibilidade de manifestar suas convicções por meio da prática de seus preceitos religiosos, o que envolve, dentre outros aspectos, seguir o que a sua confissão de fé estipula a respeito de dias sagrados.

Nesse ponto, vale mencionar que os direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e uma positiva. A primeira diz respeito ao dever que recai sobre o Estado e sobre terceiros de se absterem de restringir a esfera de direitos alheia. A segunda dimensão atribui ao Estado a tarefa de agir ativamente para assegurar a efetivação dos direitos fundamentais. Aplicando tais conceitos à liberdade religiosa, temos uma dimensão negativa, da qual decorre o dever de não se impor a ninguém a crença ou a descrença em algo, e uma dimensão positiva, que “exige que o Estado, através de uma ação, de uma prestação, remova os entraves e propicie as condições e os meios indispensáveis para o pleno gozo das convicções religiosas”[3].

A conduta estatal fundada numa dimensão negativa da liberdade de crença costuma ser facilmente recebida. Não se pode afirmar o mesmo, contudo, no tocante à dimensão positiva. Essa dificuldade decorre de uma falsa compreensão do significado de laicidade. Nessa concepção, enxerga-se o Estado laico como laicista, ou seja, como hostil ante as manifestações de religiosidade. Assim, caberia aos representantes políticos a mera indiferença perante a fé, não lhes competindo, contudo, qualquer aproximação e diálogo com as crenças e os seus adeptos. Não é essa a perspectiva prevalente no ordenamento jurídico brasileiro. Aloisio Cristovam[4], ao analisar a construção da laicidade no Brasil, defende que o nosso ordenamento “adotou uma neutralidade benevolente, tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não a expurgá-lo por completo do espaço público”. Assim, em nosso país, consagra-se na Constituição a liberdade de crença e a separação entre Estado e Igreja, com a possibilidade de colaboração de interesse público; a hipótese de escusa de consciência por motivos de crença, sendo necessária a aceitação de prestação alternativa; a imunidade dos templos religiosos, dentre outras disposições nessa linha.

Desse modo, considerando-se a dimensão positiva da liberdade de consciência e de crença, é preciso que o Estado brasileiro adote postura ativa para viabilizar a guarda de dia religioso por parte dos adeptos de confissões de fé que assim procedem.

III – A GUARDA RELIGIOSA E AS ATIVIDADES LABORAIS NESTES DIAS

Para algumas confissões de fé, em especial a judaica e a adventista, o sábado é dia sagrado, advindo a sua guarda de tradições históricas: para os judeus, decorrente da Torá, do descanso de Deus, no sétimo dia, após a finalização da criação em seis dias; para os adventistas, representa um dia santificado e abençoado por Deus para uso sagrado, constituindo importante expressão da justificação pela fé em Jesus[5].

A guarda sabática tem implicações que excedem o campo religioso na medida em que o indivíduo que a exerce é, também, alguém que trabalha, seja no setor público, seja no setor privado, ou que estuda, por exemplo. Assim, é preciso buscar meios para compatibilizar a guarda religiosa e o exercício de atividades essenciais, como o trabalho, o estudo e a sujeição a provas de certames públicos.

Compreendemos que o estabelecimento da jornada de trabalho em dias sagrados para determinadas religiões não é, a priori, oriundo de finalidades discriminatórias, pois, em geral, tem como fundamento a carga horária habitualmente existente no âmbito laboral. Em que pese a ausência inicial de intuito discriminatório, o efeito de tais fixações de jornada – quando desconsideradas as peculiaridades de determinados grupos religiosos – é de nítido prejuízo para os que guardam dia sagrado, podendo configurar discriminação caso não sejam oferecidas alternativas.

Cabe ao Poder Público, portanto, buscar meios para conciliar a existência de empregados e servidores adeptos de religiões que guardam dias sagrados com o exercício da liberdade religiosa e da objeção de consciência, uma vez que, conforme já visto, os direitos fundamentais também são dotados de uma dimensão positiva, exigindo uma postura proativa do Estado.

No âmbito da Justiça do Trabalho, há julgados nos quais foi afastada a justa causa quando, aplicada sob a justificativa de inassiduidade, desconsiderou a solicitação do empregado de observância da guarda religiosa. Em determinadas circunstâncias, houve, até mesmo, a concessão de danos morais. A seguir, exemplificamos o exposto a partir de alguns julgados:

LIBERDADE RELIGIOSA. ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. FALTA AOS SÁBADOS. REVERSÃO DA JUSTA CAUSA. A liberdade religiosa é um direito fundamental, assegurado pelas Constituições dos diversos Estados Democráticos de Direito e, também, por importantes declarações e tratados internacionais de direitos humanos. Nesse caso, provou-se que durante certo período, a empresa anuiu em relação à ausência do trabalhador no sábado, havendo alteração tácita do contrato de trabalho. A imposição de retorno ao status quo da jornada inicial pactuada, nesse momento restaria configurada como alteração unilateral. Nesse esteio, não se pode opor restrições religiosas, ainda mais, quando a empresa, de grande porte em sua área de atuação, na confecção de sandálias, deveria por força constitucional adequar o horário de trabalho do autor para não coincidir aos sábados, ainda mais que tal condição já foi aceita tacitamente pela mesma, sem a demonstração de qualquer prejuízo ao seu funcionamento normal.

(TRT-13 – RO: 00788001320125130009, Data de Julgamento: 19/03/2013, 2ª Turma, Data de Publicação: 25/03/2013, grifo nosso).

MOTORISTA DE ÔNIBUS ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA. TRABALHO AOS SÁBADOS. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. RAZOABILIDADE. É razoável e, portanto, legítima a ponderação de interesses que observa o direito constitucionalmente garantido de liberdade de culto ou religiosa, determinando que a reclamada não escale o empregado, motorista de ônibus e adventista do sétimo dia, para trabalhar das 18h de sexta-feira às 18h de sábado, enquanto permite a sua escalação em todos os domingos, se necessário for, para o cumprimento total da carga horária, evitando, assim, prejuízos à atividade empresarial.

(TRT-18, RO – 0000536-66.2011.5.18.0012, Rel. Daniel Viana Júnior, 2ª Turma, 04/07/2012, grifo nosso).

JUSTA CAUSA. FALTAS. EMPREGADO ADVENTISTA. A justa causa, por ser essa a pena máxima aplicada ao empregado, deve ser soberanamente comprovada e cercada de todos os seus requisitos, porquanto, além de impedir que o empregado receba a totalidade das verbas contratuais, pode macular a sua vida profissional, social e familiar. No caso dos autos, a ré imputou a desídia ao autor, pelo suposto comportamento faltoso, o que não conseguiu demonstrar, já que a empregadora concordou, desde o início do contrato, com a condição pessoal do reclamante no sentido de não laborar a partir das 17h da sexta-feira até às 17h do sábado, inclusive com a emissão de parecer de setor interno da companhia de limpeza neste sentido, em conformidade com os preceitos religiosos do autor. Também não consta no edital, tampouco no contrato, a estipulação de que o trabalhador laborasse especificamente no período aludido, até porque a ré possui dezoito mil funcionários, o que denota a inexistência de maiores problemas quanto à escala dos empregados. O comportamento empresarial, portanto, vai de encontro com o artigo 5º, inciso VIII, da CRFB e com a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação baseadas em Religião ou Crença. DANO MORAL. A indenização por danos morais foi elevada a modalidade de garantia constitucional em face da violação dos direitos fundamentais de intimidade, de respeito à vida privada, à honra e à imagem (Art. 5º, inciso X, CRFB), assegurando a manifestação do pensamento e reparando todos os agravos à pessoa humana (Art. 5º, incisos IV e V CRFB), com singular tutela aqueles que ocorrem nas relações de trabalho, merecedores de uma justiça especializada para conhecê-los e apreciá-los (Art. 114, inciso VI, CRFB). Recurso não provido.

(TRT-1 – RO: 4403520115010041 RJ, Relator: Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva, Data de Julgamento: 29/10/2012, Sétima Turma, Data de Publicação: 18/01/2013, grifo nosso).

No entanto, há casos em que a falta de amparo legal inviabiliza o gozo do descanso semanal remunerado no dia de guarda religiosa. O julgado abaixo, do TRT-24, é um exemplo disso:

DSR. DEVOLUÇÃO DE VALORES DESCONTADOS POR FALTAS AOS SÁBADOS. Uma vez que não há norma religiosa, tampouco jurídico-legal que ampare a ausência do empregado ao trabalho no dia de sábado em razão da sua crença religiosa, tem-se que o empregador não está e não pode ser obrigado a tolerar a garantir ao trabalhador Adventista do 7º Dia folga remunerada aos sábados, nem mesmo sob alegação de liberdade de culto ou mediante proposta de compensação da jornada aos domingos ou durante a semana. Nessa perspectiva, tem amparo legal o desconto efetuado pela falta ao trabalho nesse dia, por ausência de justificativa amparada em lei. Logo, a determinação de devolução dos valores descontados é que não tem amparo legal. Assim, é de ser reformada a decisão no particular para excluir essa condenação. Recurso da reclamada provido no particular.

(TRT-24 00249297220175240046, Relator: João de Deus Gomes de Souza, Data de Julgamento: 17/07/2019, 2ª Turma).

Dessa forma, o Projeto de Lei n. 3346/2019, se aprovado, pode contribuir para conferir maior segurança jurídica aos trabalhadores que aderem a uma confissão de fé que possui um dia de guarda religiosa. Considerando que os servidores públicos também podem se deparar com situação semelhante, o PL n. 3346/2019 faz bem em estender a referida proteção a esses agentes.

Inclusive, o STF fixou entendimento compatível com essa perspectiva no ARE 1.099.099. Nesse Agravo, discutia-se a exoneração de uma servidora, desvinculada de seu posto de serviço sob a justificativa de inassiduidade, em decorrência de suas ausências no período compreendido entre o pôr do sol da sexta e do sábado. Na ocasião, o STF firmou a seguinte tese:

Nos termos do art. 5º, VIII, da CRFB, é possível a Administração Pública, inclusive em estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento no exercício de suas funções e não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada[6].

Viabilizar o exercício de prestação alternativa está em consonância, também, com decisões proferidas em outros países. Exemplificativamente, citamos a decisão do Tribunal Constitucional de Portugal em caso que envolvia procuradora do Ministério Público, membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que buscava obter a dispensa da realização dos turnos de serviço urgente que coincidissem com os dias de sábado.

A procuradora já havia acionado, anteriormente, o Supremo Tribunal Administrativo (STA), tendo recebido como resposta, dentre outros pontos, que (i) não havendo flexibilidade no horário de trabalho dos procuradores, não era legítima a dispensa; (ii) a procuradora ficaria numa situação de desequilíbrio em relação aos colegas, devendo ter o pleito rejeitado. Apreciando a situação, o Tribunal Constitucional firmou entendimento diferente do manifestado pelo STA, garantindo à procuradora a possibilidade de compatibilizar a sua jornada com a dispensa para efeitos da observância de suas obrigações religiosas. Dentre os argumentos apresentados pelo Tribunal, valiosos para o raciocínio aqui desenvolvido, destacamos o trecho a seguir:

Para além dessa dimensão negativa, a liberdade religiosa comporta ainda uma dimensão positiva, de natureza prestacional ou regulatória, que pressupõe que o Estado assuma um conjunto de obrigações, que poderão variar de acordo com a representatividade das diversas religiões, destinadas a proporcionar aos crentes as condições para o cumprimento dos deveres religiosos, como por exemplo sucede com o reconhecimento dos casamentos religiosos, a abertura das escolas públicas ao ensino da religião e a atribuição de condições de assistência religiosa nas instituições públicas, como prisões ou hospitais. E, nesse sentido, o Estado não assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar (sobre todos estes aspetos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol. 4ª edição, Coimbra, págs. 609-611, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, pág. 447)[7]. (Grifos nossos).

A partir do caso acima exposto, percebemos que a diretriz a ser seguida em hipóteses nas quais a guarda de dia religioso colide com dever individual é a de conceder a possibilidade de prestação alternativa. Entretanto, em algumas situações, para que haja prestação alternativa, o Estado deve viabilizá-la. Do contrário, não há liberdade religiosa, nem muito menos direito à objeção de consciência.

Nessa linha, de busca de prestações alternativas que compatibilizem a guarda religiosa e jornada de trabalho, mencionamos, ainda, o caso “Central Okanagan School District No. 23 v. Renaud”, julgado pela Suprema Corte do Canadá, no qual se firmou, para o empregador, o dever de adotar medidas razoáveis que não demandem ônus excessivos para que o funcionário exerça sua liberdade religiosa de guardar o Sabbath[8].

Um dos argumentos apresentados em oposição à concessão de prestação alternativa se desenvolve no sentido de alegar que o empregado ou servidor já se submete a uma seleção de emprego ou a um certame público ciente da jornada exigida. É como se, pelo fato de ter se sujeitado à seleção/ao concurso, inevitavelmente, o indivíduo, se aprovado, tivesse que decidir se abrirá mão do seu direito fundamental à liberdade religiosa ou de sua fonte de sustento.

Apresenta-se o contexto como se o empregado/servidor que pleiteia o direito de ter a guarda de dia religioso respeitado estivesse exigindo um privilégio, numa ofensa à isonomia, quando, na verdade, trata-se de uma batalha pelo gozo de direito fundamental constitucionalmente assegurado. Não se trata de lutar por uma regalia, por uma posição distintiva ante os demais, mas de poder, assim como as outras pessoas, exercer a sua vocação e desfrutar da liberdade religiosa que a todos é garantida. Quanto a isso, as palavras do Min. Kassio Nunes, à época Desembargador do TRF-1, no voto proferido no Reexame Necessário n. 0056748-86.2011.4.01.3400, em caso envolvendo estudante, são elucidativas:

Como visto, a controvérsia instaurada nestes autos restou muito bem resolvida pelo juízo monocrático, encontrando a tutela mandamental concedida ao impetrante com respaldo na inteligência do inciso VIII do art. 5º da Constituição da República, que preserva e garante o direito fundamental à liberdade de culto, não pretendendo o estudante, no caso em tela, eximir-se de obrigação legal a todos imposta ou recusar-se a cumprir prestação alternativa, mas, tão-somente, pretende cumprir a sua obrigação, que é imposta a todos os demais alunos, sem que seja violado o seu direito fundamental à liberdade de crença religiosa. (Grifo nosso).

A questão, portanto, não é de perseguir uma espécie de privilégio, mas de poder exercer suas funções laborais, assim como as demais pessoas, sem abdicar da própria fé. Para isso, demanda-se a prestação alternativa. A sua negativa é que, na verdade, significa afronta à isonomia, pois tratar de modo igual os que se encontram em situação distinta é, nos dizeres de Rui Barbosa, desigualdade flagrante[9].

Os direitos à liberdade de consciência e de crença e à objeção de consciência não podem ser reduzidos a uma promessa constitucional que é concretizada quando convém. Tratando-se de direitos fundamentais, o esforço voltado à sua proteção deve ser inegociável.

V – CONCLUSÃO

Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE manifesta seu apoio ao PL n. 3.346/2019, compreendendo que a sua aprovação contribuirá para a proteção da liberdade religiosa e para a viabilização do exercício do direito de objeção de consciência, conferindo maior segurança jurídica aos empregados e servidores que guardam um determinado dia sagrado.

Brasília-DF, 17 de fevereiro de 2022.

 Assessoria Jurídica da ANAJURE

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] Projeto de Lei n. 3346/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01rcjxlq9vdfblfliekvjxg92b38913774.node0?codteor=1760650&filename=PL+3346/2019. Acesso em: 15 fev. 2022.

[2] MACHADO, Jónatas. A liberdade religiosa na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista Portuguesa de Ciência das Religiões. p. 150.

[3] SILVA, Fabiana Maria Lobo. Liberdade de religião e o ensino religioso nas escolas públicas de um Estado laico: perspectiva jusfundamental. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 206, p.271-298, jun. 2015. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/512459>. Acesso em: 31 out. 2019.

[4] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 28 ago. 2018

[5] Disponível em: https://www.adventistas.org/pt/institucional/organizacao/declaracoes-e-documentos-oficiais/observancia-sabado/. Acesso em 30 set. 2020.

[6] Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755554694. Acesso em: 17 fev. 2022.

[7] Acórdão n. 545/2014, Processo n. 52/2014, 3ª Secção, Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, Lisboa, 15 de julho de 2014. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140545.html>. Acesso em: 31 out. 2019.

[8] Central Okanagan School District No. 23 v. R; Case number: 21682; Judges La Forest, Gérard V.; L’Heureux-Dubé, Claire; Sopinka, John; Gonthier, Charles Doherty; Cory, Peter deCarteret; McLachlin, Beverley; Stevenson, William. Disponível em: <https://scc-csc.lexum.com/scc-csc/scc-csc/en/item/910/index.do>. Acesso em: 31 out. 2019.

[9] “Tratar com desigualdade a iguais, ou desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Fonte: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf