OBSERVATÓRIO l Caso 60: Pernambuco – Liberdade religiosa

O que aconteceu: publicação de Decreto prevendo a exigência da apresentação dos comprovantes do esquema vacinal completo e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid-19 em celebrações religiosas com mais de 300 pessoas, conforme disciplinará Portaria Conjunta da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico.

Onde: Pernambuco.                                                

Quando: 27 de setembro de 2021.

Documentos: Decreto n. 51.460/2021 (AQUI)

Parecer A princípio, ressaltamos que a ANAJURE compreende a importância do avanço do processo de imunização da população e reconhece sua decisiva contribuição para a redução do número de internações e de mortes em consequência da Covid-19, mas entende também que as liberdades civis fundamentais não podem ser mitigadas ao arrepio da Constituição Federal e das demais leis vigentes no país.

O Decreto nº 51.460/2021, de 27 de setembro de 2021, do Estado de Pernambuco, altera o Decreto nº 50.924, de 2 julho de 2021, que dispõe “sobre o retorno gradual das atividades sociais e econômicas, que sofreram restrição em face da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus”. Dentre as alterações, destaca-se a previsão da exigência da apresentação dos comprovantes vacinais e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid-19 em cerimônias religiosas com mais de 300 pessoas, nos termos do art. 2º, parágrafo único do Decreto nº 50.924/2021, modificado pelo art. 1º do Decreto nº 51.460/2021:

“Art. 2º Em todos os municípios do Estado, a realização de celebrações religiosas presenciais, sem aglomeração, em igrejas, templos e demais locais de culto podem ocorrer das 5h à 1h, em qualquer dia da semana. (NR)

Parágrafo único. Celebrações religiosas com mais de 300 (trezentas) pessoas devem observar os limites de capacidade do ambiente e número máximo de pessoas estabelecidos em Portaria Conjunta da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que também disciplinará a exigência da apresentação dos comprovantes do esquema vacinal completo e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid-19.

Assim, o decreto estabelece que nas celebrações religiosas com mais de 300 pessoas será necessário exigir que os fiéis apresentem os comprovantes do esquema vacinal completo e/ou os resultados negativos dos testes, conforme disciplinará a normativa prevista no referido decreto, a Portaria Conjunta da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Diante dessa determinação do governo do Estado de Pernambuco, é evidente o conflito entre direitos fundamentais como a liberdade religiosa e o direito à saúde, conforme discorreremos a seguir.

Os direitos fundamentais recebem essa qualificação pois, segundo José Afonso da Silva, albergam “situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive[1]. Conforme explana Gonet Branco, tratam-se de “pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana” (grifo nosso)[2]. Além desses aspectos, os direitos fundamentais também se caracterizam por sua positivação na ordem constitucional e pela delimitação fincada perante o exercício do poder estatal.

Na Constituição Federal de 1988, os referidos direitos aparecem a partir do art. 5º, possuindo posição topográfica destacada, sendo prestigiados, ainda, por receber a prerrogativa de aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CRFB). A importância ostentada pelos direitos fundamentais evidencia a dificuldade envolvida no debate acerca da sua limitação, como é o caso deste decreto.

Por um lado, há o direito à saúde, consagrado no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais de nossa Constituição, e que, na linha do conteúdo do decreto estadual, fundamenta a determinação da exigência de que os fiéis apresentem os comprovantes vacinais e/ou os resultados negativos, em celebrações religiosas com mais de 300 pessoas. Do outro lado, há o direito à liberdade de religião ou crença, protegido em diplomas diversos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 18) e a Constituição Federal/1988 (art. 5º, VI). Este engloba não apenas a possibilidade de escolher determinada confissão de fé, como também a faculdade de se portar em conformidade com os princípios adotados, inclusive, por meio do livre exercício dos cultos religiosos. Portanto, estamos diante de um conflito entre a proteção à liberdade de consciência e crença e a tutela individual e coletiva do direito à saúde.

Em casos de colisões entre direitos e princípios fundamentais, ou entre dois direitos fundamentais, a doutrina jurídica tem entendido que “deve-se buscar a conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro[3].

Tal tentativa de conciliação vem sendo chamada pela doutrina jurídica de técnica de ponderação, na qual se busca harmonizar direitos e garantias em conflito. Como norte para o referido juízo, tem se adotado o princípio da proporcionalidade, constituído pelos seguintes subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação demanda que os meios adotados para a restrição de um direito sejam aptos ao fim pretendido; a necessidade exige que o meio escolhido seja o menos gravoso possível; e a proporcionalidade em sentido estrito, por sua vez, impõe que o ônus decorrente da restrição do direito seja inferior ao bônus almejado[4]. Uma das preocupações existentes quando se aplica a ponderação diz respeito à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos envolvidos, de modo a se evitar que um deles seja esvaziado, o que é especialmente relevante quando consideramos que, mais do que normas positivadas, os direitos fundamentais possuem íntima vinculação com a dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, no caso em questão, a determinação de exigência dos comprovantes vacinais e/ou resultados negativos dos testes constitui restrição ao direito à liberdade religiosa, a fim de se resguardar o direito à saúde. Portanto, é preciso avaliar se satisfaz os ditames da proporcionalidade.

Trata-se de medida que atende à adequação, pois o meio é apto para atender ao fim pretendido (a proteção da saúde); contudo, quando se avalia a necessidade da exigência de apresentação dos comprovantes vacinais e resultados negativos de testes, verifica-se que o meio é demasiadamente gravoso para o direito à liberdade de consciência e de crença, visto que: i) há meios menos gravosos, que já são empregados há mais de um ano, consistentes nos elementos dos protocolos de prevenção à transmissão da Covid-19: o distanciamento social, a obrigatoriedade do uso de máscaras, a disponibilização e de álcool a 70%, água e sabonete para higienização das mãos etc; ii) tal medida limita a possibilidade do livre comparecimento dos fiéis e de pessoas que desejam participar das cerimônias religiosas, especialmente nesta conjuntura de incertezas e medos, em face das sombrias repercussões econômicas e sociais da pandemia, contexto em que as cerimônias religiosas são fonte de suporte espiritual aos membros das comunidades de fé e a qualquer pessoa que o busque. Como consequência, é certo que o ônus decorrente da restrição do direito é inferior ao bônus almejado.

Assim, é evidente que o Decreto do Estado de Pernambuco incorre em grave desproporcionalidade, visto que restringe o direito fundamental à liberdade de religião ou crença ao ponto de impactar não somente o exercício da liberdade de culto, mas também o direito à objeção de consciência (art. 5º, VIII, CRFB). Isso porque, em contextos como o atual, em que as vacinas vêm sendo produzidas em caráter emergencial, ante a urgência gerada pela proliferação do coronavírus, há parcela da população que possui algumas desconfianças quanto aos imunizantes e que, no momento, ainda não optou pela vacinação. Ademais, a própria ideia de vacinação compulsória também suscita divergências, sobretudo jurídicas.

Diante do aduzido, sugerimos a modificação do Decreto para que seja retirada a previsão da exigência da apresentação dos comprovantes do esquema vacinal completo e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid-19, que consta no art. 2º do Decreto nº 50.924/2021, conforme a alteração feita pelo Decreto nº 51.460/2021.

Ex positis, a ANAJURE conclui (i) alertando para a inconstitucionalidade da atual redação do Decreto n. 50.924/2021, do Estado de Pernambuco; e (ii) informando que oficiará o Governo Estadual para sugerir a modificação do Decreto para que seja retirada a previsão da exigência da apresentação dos comprovantes do esquema vacinal completo e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid-19, que consta no art. 2º do Decreto nº 50.924/2021, conforme a alteração feita pelo Decreto nº 51.460/2021.

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[1] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

[3] Ibid.

[4] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.