Para além do Cristianismo marginalizado: o perigo da verdade em dois pavimentos

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Uma vez compreendida como uma visão de mundo abrangente, a cosmovisão cristã deve nortear todas as áreas da nossa vida, tanto as atividades eminentemente espirituais, como devoção pessoal, oração e ensino bíblico, quanto as atividades realizadas no ambiente público, relacionadas à sociedade, trabalho, política e educação, por exemplo; pois a cosmovisão bíblica é o meio de experimentar e interpretar toda a realidade, e não somente uma parte dela.

Mas, para que possamos desenvolver um cristianismo público, e não somente particular e marginalizado, é necessário desfazer o pensamento dualista que separa e verdade (e a vida) em dois pavimentos.

A verdade em dois pavimentos

Em seus livros A morte da razão e O Deus que intervém Francis Schaeffer mostra o processo histórico pelo qual a cosmovisão teísta foi substituída por uma cosmovisão existencialista, e como a verdade objetiva foi suplantada pelo relativismo. Schaeffer denominou esse processo de a Linha do Desespero, assim representado:

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De acordo com Schaeffer, cada um dos degraus representa certo período. O mais alto representa o mais antigo, o mais baixo, o mais recente. Foi nessa ordem que a mudança na concepção da verdade afetou a vida dos homens, expandindo-se gradualmente. Ele explica que acima da linha as pessoas eram racionalistas otimistas e acreditavam que poderiam traçar um sistema capaz de abranger todos os pensamentos da vida e a própria vida, sem ter de partir da lógica da antítese, e que o homem era capaz de encontrar uma unidade na diversidade total.

Contudo, depois de longos anos na busca desta unidade os homens se deram conta que não poderiam encontram um campo unificado do conhecimento racional e, com isso, deixando de lado a metodologia clássica da contradição, resolveram alterar o conceito de verdade. Foi nesse momento que o homem passou para baixo da Linha do Desespero.

Depois, Schaeffer vai demonstrar que essa linha do desespero, começando pela filosofia, foi traçada basicamente a partir da ideia de separação da verdade em dois pavimentos, superior e inferior, provocando o afastamento entre fé e razão:

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Esse pensamento dualista influenciou todos os demais pontos da linha do desespero (arte, música, cultura em geral) até chegar na Teologia que, igualmente, manteve a ideia da separação entre o “andar de cima” do “andar de baixo”, gerando a seguinte condição:

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Seguindo o mesmo esquema, Nancy Pearcey assegura que, a partir da dicotomia identificada por Schaeffer, as sociedades modernas estão nitidamente divididas da seguinte forma:

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Ao ser alocada no pavimento superior, a religião não é considerada uma verdade objetiva à qual devemos nos submeter, mas trata-se de mera questão de gosto pessoal, de uma preferência particular. Nessa perspectiva, a religião é um “salto de fé no escuro”, sem fundamento consistente e verificável.

Por isso, explica Nancy, a dicotomia chega a ser denominada divisão fato-valor:

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Nessa visão dicotômica, portanto, o mundo da religião deve se preocupar somente com coisas espirituais, tais como salvação e santidade, e pouco se importar com questões intelectuais, afinal, isso é assunto da esfera da razão. Nisso, a vida cristã se torna fraturada e restrita. Sem capacidade para discutir os problemas sociais e muitos menos influenciar a cultura.

A partir desse cenário, Nancy Pearcey reivindica a necessidade de resgatarmos o Cristianismo do seu cativeiro cultural, argumentando que ele não é apenas uma verdade religiosa, mas a verdade sobre toda a realidade. É a verdade absoluta de Deus que se insere em todos os aspectos da vida humana, inclusive intelectual [1].

O primeiro passo para formarmos uma cosmovisão cristã, escreve Nancy, é superar esta divisão severa entre “coração” e “cérebro”. “Temos de rejeitar a divisão de vida em uma esfera sagrada, limitado a coisas como adoração e moralidade pessoal, em oposição a uma esfera secular que inclui ciência, política, economia e o restante do cenário público”, afinal, essa dicotomia em nossa mente é a maior barreira para libertar o poder do evangelho (Rm. 1.16) para toda a cultura de hoje, diz ela.

E mais: “Para recuperar um lugar à mesa do debate público, os cristãos têm de encontrar um meio de vencer a dicotomia entre o público e o particular, o fato e o valor, o secular e o sagrado. Precisamos libertar o evangelho o seu cativeiro cultural e restabelecê-lo ao status de verdade pública (…) Somente com a recuperação da visão holística da verdade total é que conseguiremos libertar o evangelho para se tornar a força redentora em todas as áreas da vida” [2].

A perda da mente cristã

Infelizmente, muitos cristãos ao aceitarem a dicotomia público/privado, fato/valor, acabam restringindo a expressão da fé somente ao âmbito particular, simplesmente como uma atividade devocional e “espiritual”, sem a capacidade de dialogar e influenciar a sociedade contemporânea.

Por essa razão é que Harry Blamires, discípulo de C. S. Lewis, diz não existir mais uma mente cristã. Ele escreve que o cristão moderno sucumbiu à secularização e aceita a religião – a moralidade dela, seu culto, sua cultura espiritual; “mas ele rejeita a visão religiosa da vida, a visão que coloca todas as coisas aqui em baixo dentro do contexto do eterno, a visão que relaciona todos os problemas humanos – sociais, políticos e culturais, aos alicerces doutrinários da fé cristã, à visão que vê todas as coisas aqui em baixo em termos de supremacia de Deus e de transitoriedade da terra, em termos de céu e inferno” [3].

Blamires sustenta que a secularização mental dos cristãos foi ocasionada pela acomodação. Paramos de pensar de forma cristã. Retiramos a consciência cristã da vida pública, comercial e social e, quando entramos nessas esferas somos forçados a aceitar para fins de discussão, a estrutura secular ali estabelecida. E mais:

“Oramos e cultuamos de forma cristã. Depois, esvaziamos nosso cérebro do vocabulário cristão, dos conceitos cristãos para garantir que nos comunicamos plenamente e voltamos a falar sobre política como o político, sobre bem-estar social como o assistente social, sobre relação no trabalho como o sindicalista. Assim, andamos mentalmente no secularismo. Treinamo-nos, até disciplinamo-nos para pensar de forma secular sobre algumas coisas seculares e – ironia das ironias – até conseguirmos nos persuadir de que não há nada mais cristão que ceder nessa matéria e aceitar o meio ambiente mental da outra pessoa”.

A crítica de Blamires ganha mais relevância no momento histórico em que estamos vivendo. Além da acomodação de uma grande parcela de cristãos, o discurso de privatização da fé por parte dos liberais e antiteístas tenta manter a todo custo a influência dos cristãos restrita ao âmbito da igreja. Com isso, os cristãos vão perdendo a legitimidade para falar sobre assuntos sociais, políticos e culturais. O resultando é a criação de uma subcultura cristã, segregada e distante do debate social.

Em grande parte essa tentativa de privatização da fé dos cristãos deve-se a uma visão distorcida do que seja a secularização e Estado laico. Inicialmente, esses conceitos foram empregados para representar a separação entre Estado e Igreja, de modo a evitar o domínio da religião sobre o governo civil. Por isso, como explica Dinesh D´Souza [4], o secularismo é também uma invenção do Cristianismo, a partir  do princípio bíblico de dar a César o que é de Cesar, e a Deus o que é de Deus (Mt 22.21).

Secularização vem de saeculum, que, no latim clássico, significava “século” (período de cem anos) e também “idade”, “época”. No latim eclesiástico, adquiriu o significado de “o mundo”, “a vida do mundo” e “o espírito do mundo”, sendo por esta via que se chegou ao sentido da palavra “secularização”. Como lembra Anselmo Borges, “o termo, utilizado já no século XVII, para referir o abandono do sacerdócio ou da vida religiosa – ainda hoje se diz que o padre tal se secularizou -, figura, no Tratado de Vestefália (1648), com o sentido jurídico de apropriação pelo “mundo” de bens pertencentes à Igreja” [5].

No entanto, S. Michael Craven escreve o seguinte:

“(…) no século XVII surgiu um laicismo muito mais pernicioso que enfatizava a completa exclusão da religião de todos os aspectos da vida pública. Quanto às causas desta mudança, a Igreja não precisa de olhar senão para si mesma. Após a Reforma Protestante do século XVI, e mais tarde Contra-Reforma Católica, a Europa foi lançada em convulsão política, militar e econômica à medida que as nações se envolviam em guerras em torno da religião por causa de disputas doutrinárias e teológicas. A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) era simultaneamente um conflito religioso internacional e uma guerra civil alemã, envolvendo nações e regiões luteranas, reformadas e católicas. Em resposta direta às divergências teológicas, foram levadas a cabo estas guerras pela convergência profana entre Igreja e Estado. Em 1700, os europeus fartaram-se. A carnificina resultante, a desintegração social e as dificuldades econômicas abririam aos europeus uma “era da razão” sobre e contra o seu passado religioso. Como Alister McGrath, teólogo cristão e acadêmico de Oxford aponta, “Estava criado o fundamento para a insistência do Iluminismo de que a religião era para ser uma questão de crença pessoal”.

Na Europa, a divisão entre o sagrado e o secular surgiria com a intenção de se excluir o sagrado de qualquer contribuição significativa para a vida pública e política. A razão humana seria divorciada da fé e elevada acima de Deus como a qualidade divina entre os homens. Os homens, sem dependerem de Deus, iriam tentar governar-se a si mesmos por meio da razão, da ciência e tecnologia – as ferramentas da modernidade. A fé, acreditavam eles, tinha falhado e desapontado aos homens e ao mundo em que eles viviam. Assim, Deus, a fé e o sobrenatural (no sentido cristão ortodoxo) seriam relegados ao passado – artigos de antiguidade, representantes do mundo antecedente à idade da razão” [6].

Portanto, secularismo e laicismo são compreendidos atualmente como sinônimo de hostilidade à presença da religião no espaço público. Francis Schaeffer [7] diz o seguinte:

“Quando os cristãos falam declaradamente sobre quaisquer assuntos, o tom e o protesto da parte do Estado e da mídia humanista é que os cristãos e todas as religiões estão proibidos de falar, já que há uma separação entre a igreja e o Estado. A maneira pela qual esse conceito é usado hoje em dia é completamente oposto ao propósito original. Não está enraizada na História. A consequência da aceitação da doutrina atual é a remoção da religião como influência no governo civil. John W. Whitehead ilustra bem este fato no seu livro The Second American Revolution. Ela é usada hoje como falso ditame político para restringir a influência de ideias cristãs. Como diz Franky Schaeffer V, em Plan for Action:

‘Tem sido conveniente ao humanista, ao materialista, ao chamado liberal, ao feminista, ao engenheiro genético, ao burocrata, ao juiz da Suprema Corte usar essa divisão arbitrária entre a igreja e o Estado como um desculpa pronta. Ela é empregada como ponto de partida facilmente identificável para subjugar as opiniões daquele vasto grupo de cidadãos que representa os que têm convicções  religiosas’.”

A tentativa de afastamento dos cristãos no debate público é tirana e ditatorial, na medida em que não aceita a presença de vozes discordantes dentro do debate social.

Harvard, Michael Sandel, em entrevista à revista Época de 16 de julho de 201, quando questionado sobre a participação dos religiosos na política. Ele respondeu: “ (…) a política diz respeito às grandes questões e aos valores fundamentais. Então, a política precisa estar aberta às convicções morais dos cidadãos, não importa a origem. Alguns cidadãos extraem convicções morais de sua fé, enquanto outros são inspirados por fontes não religiosas. Não acho que devamos discriminar as origens das convicções ou excluir uma delas. O que importa é o debate ser conduzido com respeito mútuo”.

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[1] PEARCEY, Nancy : Verdade Absoluta – Rio de Janeiro: CPAD, 2006; p. 22.

[2] PEARCEY, Nancy; p. 25.

[3] BLAMIRES, Harry. A mente cristã: como um cristão deve pensar. [tradução: Hope Gordon Silva]. São Paulo: Shedd Publicações, 2006.

[4] D´SOUZA, Dinesh; p. 65.

[5] BORGES, Anselmo. Secularização e secularismo. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=641506&page=1. Acesso em 13 de abril de 2013.

[6] CRAVEN, S. Michael. Secularismo e indiferença teológica: uma causa comum. Disponível em: http://portugues.christianpost.com/news/secularismo-e-indiferenca-teologica-uma-causa-comum-1302/. Acesso em 13 de abril de 2013.

[7] Francis Schaeffer, A Igreja do século XXI (Um manifesto cristão, p. 176).

Category: Cosmovisão Tags:Cosmovisão, Francis Schaeffer, Nancy Pearcey

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Fonte: Blog Como Viveremos

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