O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota sobre a medida cautelar deferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6622, referente à presença de missões religiosas em territórios indígenas durante a pandemia.
I. Dos fatos
Em dezembro de 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Partido dos Trabalhadores (PT) questionaram a constitucionalidade do § 1º, do art. 13, da Lei n. 14.021/2020, que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas. O referido dispositivo contém os seguintes termos:
Art. 13. Fica vedado o ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados, salvo de pessoas autorizadas pelo órgão indigenista federal, na hipótese de epidemia ou de calamidade que coloque em risco a integridade física dos indígenas isolados.
§ 1º As missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas deverão ser avaliadas pela equipe de saúde responsável e poderão permanecer mediante aval do médico responsável. (Grifo nosso)
Os autores da ação sustentam que o art. 13, § 1º, da Lei n. 14.021/2020 violaria o direito à saúde dos povos indígenas isolados, visto que se trata de um grupo em situação de vulnerabilidade imunológica. Enquanto o caput do artigo estaria em conformidade com a política indigenista brasileira, o parágrafo primeiro seria incompatível com a Constituição, ofendendo a dignidade da pessoa humana e o direito à vida.
A concepção dos autores é de que a presença de missionários em áreas de povos isolados é inviável em qualquer situação, posicionando-se, por isso, contrariamente à entrada e à permanência dos religiosos em terras indígenas. Assim, buscaram, através da ADI proposta, a suspensão, em sede de liminar, do art. 13, § 1º, da Lei n. 14.021/2020 e, no mérito, a confirmação da liminar para que seja declarada a inconstitucionalidade do referido dispositivo.
Em decisão cautelar, o Ministro Relator Luís Roberto Barroso entendeu que não haveria urgência que justificasse o impedimento da permanência das missões já em atuação junto aos indígenas, ressaltando, também, não haver, nos autos, indicação de resistência dos povos tradicionais à presença de missionários. Considerando o contexto pandêmico, o Ministro deferiu parcialmente a cautelar para restringir, no atual cenário, o ingresso de missões religiosas nas comunidades indígenas.
II. Do Direito
As considerações feitas pelos autores sobre a vulnerabilidade imunológica dos indígenas são, indubitavelmente, relevantes e devem ser consideradas pelo Poder Público e pelos atores privados, visto que a proteção da saúde pode justificar restrições ao exercício de direitos fundamentais. A própria liberdade religiosa pode receber algumas limitações para fins de proteção da saúde, como dispõem Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 18, item 3) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 12, item 3).
O Direito Internacional permite, portanto, restrições à liberdade religiosa, mas tais limitações precisam ser mínimas, justificadas, previstas em lei, necessárias para proteger inter alia a saúde pública, não arbitrárias, transparentes, não discriminatórias e temporárias. Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal entende que os direitos fundamentais não são absolutos, enxergando situações que podem justificar sua restrição[1]. Ao mesmo tempo, a Corte sustenta a necessidade de se definir limites às próprias limitações. Adota, assim, a Teoria dos Limites dos Limites:
Os direitos individuais são passíveis de restrições, mas essas restrições são limitadas. O ‘limite dos limites’ (Schranken-Schranken) decorrem da própria Constituição e balizam a ação do legislador. Referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas[2].
No caso sob análise, as pretensões manifestadas pelos autores não parecem estar em consonância com o exposto acima, uma vez que a liberdade religiosa é inteiramente desconsiderada. Não há qualquer esforço para se conciliar a proteção do direito à saúde das comunidades tradicionais com o direito, que também lhes pertence, à liberdade religiosa.
De forma errônea, é comum que os debates acerca da presença de missões religiosas em áreas pertencentes a povos isolados se deem unicamente sob a ótica do conflito entre o direito de isolamento desses grupos com o direito à liberdade religiosa de missionários vocacionados que se dirigem a essas localidades. É como se a liberdade religiosa – que, em seu forum internum, inclui a liberdade de mudar de religião ou crença, nos termos do art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos – alcançasse toda a população, menos os povos tradicionais, visto que a esses não seria conferida a liberdade de adotar outras crenças. Perceber que essa dimensão da liberdade religiosa também é assegurada às comunidades indígenas pode ajudar a notar que a vedação perpétua de acesso e/ou permanência de grupos religiosos a esses territórios representa uma violação da liberdade religiosa dos próprios indígenas, e não apenas dos missionários.
Quanto a isso, é importante realçar a disposição contida no art. 7º, item 1, da Convenção n. 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, integrado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 10.088/2019:
I. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. (Grifo nosso).
A escolha dos povos indígenas quanto ao seu próprio desenvolvimento deve ser preservada e respeitada. Não é possível, contudo, presumir a recusa da parte desses povos de aderir a um credo religioso ou outro. Esse tipo de presunção, embora se apresente como uma espécie de “proteção” à autonomia indígena, constitui, na verdade, uma limitação à autodeterminação desses povos, que poderiam, por exemplo, escolher conservar crenças anteriores, mas não teriam sua autonomia reconhecida caso desejassem se alinhar a uma nova confissão de fé. Além da limitação indevida, há, aqui, uma transferência da decisão, que deveria pertencer aos indígenas, para órgãos governamentais, o que deixaria nas entrelinhas a percepção de que estes seriam mais aptos para essa espécie de definição do que aqueles.
Com isso, não se pretende sustentar nenhuma imposição ou desídia na interação com tais povos. O respeito à autonomia indígena gera a necessidade de se evitar contatos forçados e a prática de quaisquer violências contra esses grupos. Inclusive, é importante ressaltar, neste ponto, que nenhuma das instituições que subscrevem esta nota realiza atividades junto aos indígenas sem autorização da comunidade. Seja para trabalhos de curto prazo, seja de longo prazo, a atuação de tais organizações sempre depende de haver comum acordo com os indígenas. Ademais, diante das vulnerabilidades que os atingem, como é o caso de carências imunológicas, eventuais contatos entre membros de missões religiosas e comunidades indígenas devem ser antecedidos por uma série de cuidados para que riscos à saúde sejam evitados. Firmada a convivência entre tais grupos, é de bom alvitre que haja um acompanhamento da situação por equipes técnicas com expertise na área da saúde.
Nesse sentido, inclusive, o Departamento de Assuntos Indígenas da Associação de Missões Transculturais do Brasil (DAI-AMTB) orientou em 16 de março de 2020, antecipando-se às orientações das autoridades públicas, que os missionários que estivessem fora das áreas indígenas não ingressassem nesses territórios e que aqueles que saíssem não retornassem à comunidade até que houvesse controle da situação. A organização ainda instruiu os missionários que permanecessem nas terras indígenas a se colocarem em quarentena voluntária em caso de qualquer suspeita de comunicação, restringindo por completo o contato com os indígenas. Tais comunicados também foram encaminhados às autoridades públicas, especificamente à FUNAI e à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), com a finalidade de cientificá-las sobre os cuidados adotados pelas agências missionárias no contexto pandêmico.
Em circunstâncias como as atuais, onde há um Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, com parcela da população que já completou o esquema vacinal[3], é possível viabilizar o ingresso de missionários em terras ocupadas por povos indígenas isolados a partir da construção de diretrizes voltadas à mitigação de riscos, como a realização de testes, a observância de períodos de quarentena, a vacinação de missionários com atuação junto a comunidades vulneráveis em termos imunológicos e a checagem do grau de imunização dos próprios indígenas.
Nessa linha, foram firmadas, na ADPF 709, as condições para o acesso de equipes de saúde aos territórios indígenas, quando da homologação parcial do Plano Geral de Enfrentamento à Covid-19. A fim de viabilizar o ingresso das equipes, foi fixada a observância de alguns critérios protetivos, como a priorização do teste RT-PCR, tanto para equipes de saúde, quanto para os indígenas, com uso subsidiário de teste alternativo; prazo de quarentena de 14 dias para entrada em terra indígena; e detalhamento da logística e prioridade de vacinação dos povos indígenas (atualmente, cerca de 81% dos indígenas já receberam a segunda dose[4]).
Assim, caberia às agências missionárias a orientação aos seus membros sobre os cuidados necessários para o acesso a terras pertencentes a povos indígenas isolados. Em caso de recusa por parte do missionário quanto à vacinação, a agência deverá instruir cuidados alternativos que possibilitem o acesso em segurança aos territórios indígenas, a exemplo da realização de testes prévios e da sujeição a períodos de quarentena, conciliando, assim, a liberdade de pensamento e as cautelas exigidas para a proteção da saúde dos indígenas.
É possível, portanto, desenvolver-se medidas que conciliem a proteção à integridade física dos indígenas e a preservação da liberdade de consciência e de crença. Pretender, contudo, que a proibição de ingresso aos territórios desses povos seja perpétua ou que nem mesmo missionários já instalados nas comunidades possam permanecer significa solapar a liberdade religiosa de indígenas e missionários.
III – Conclusão
Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE informa que:
- Entende como adequada a decisão proferida pelo Ministro Roberto Barroso no que se refere à autorização de permanência das missões religiosas já em curso quando do início da pandemia, discordando, contudo, do veto generalizado ao acesso de novas missões religiosas às terras indígenas ocupadas por povos isolados no atual contexto;
- Diante da discordância acima manifesta, solicitou ingresso como amicus curiae na ADI 6622 na sexta-feira (01/10), a fim de sustentar nos autos a possibilidade de ingresso de novas missões religiosas em terras indígenas ocupadas por povos isolados no atual contexto, desde que observados os cuidados necessários para a proteção dos indígenas, como a realização prévia de testes, a sujeição a períodos de quarentena, e a vacinação de missionários;
- Encoraja as agências missionárias e os seus membros a continuarem observando os cuidados na interação com povos isolados, como têm feito desde o início da pandemia, a fim de preservar a saúde desses grupos.
Brasília-DF, 01 de outubro de 2021.
Dra. Edna Zilli
Presidente em exercício da ANAJURE
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[1] MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000.
[2] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?txtPesquisaLivre=TEORIA%20DOS%20LIMITES%20DOS%20LIMITES. Acesso em: 24 set. 2021.
[3] Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/09/25/vacinacao-contra-a-covid-mais-de-407percent-da-populacao-esta-com-esquema-vacinal-completo-678percent-tomou-1a-dose.ghtml. Acesso em: 27 set. 2021.
[4] Disponível em: https://qsprod.saude.gov.br/extensions/imunizacao_indigena/imunizacao_indigena.html. Acesso em: 27 set. 2021.