A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a aprovação pela Câmara dos Deputados do texto base do Projeto de Lei n. 3.179/2012, que regulamenta a prática do ensino domiciliar (homeschooling) no Brasil.
I – SÍNTESE FÁTICA
A Câmara dos Deputados aprovou no dia 18 de maio o texto-base do Projeto de Lei n. 3.179/2012, que regulamenta a prática do ensino domiciliar (homeschooling) no Brasil. Nos termos da proposta, a educação domiciliar será admitida por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais dos alunos, salvo hipóteses excepcionais[1]
Com fins de regulamentação, o projeto estabelece condições que devem ser observadas para realização da educação domiciliar, tais como: formalização da escolha junto a uma instituição de ensino credenciada; ensino em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular; envio do registro de atividades pedagógicas realizadas à instituição de ensino na qual o estudante estiver matriculado; acompanhamento do estudante por um docente tutor da referida instituição; realização de avaliações para fins de certificação da aprendizagem aplicadas pela instituição de ensino onde o estudante está matriculado; dentre outras.
Além disso, o projeto também garante o tratamento isonômico aos estudantes vinculados à educação domiciliar, proibindo, assim, que sejam fixadas restrições à participação deles em concursos; competições; ou eventos pedagógicos, esportivos e culturais.
Na última quinta (19), os deputados ainda analisaram uma série de destaques apresentados que poderiam modificar a proposta. No entanto, feita a análise, tais alterações foram rejeitadas. Com isso, o projeto seguirá para apreciação do Senado Federal.[2]
II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
II.I – O direito à educação na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988, ao fixar o rol de direitos sociais, previu o direito à educação (art. 6º), o qual, segundo o art. 205 da CF/88, é “direito de todos e dever do Estado e da família”. Nota-se, portanto, a existência de uma pluralidade de atores engajada na promoção do referido direito.
Especificamente quanto ao Estado, há a obrigação prevista no art. 208, § 2º da CF/88 sobre oferecimento do ensino obrigatório, podendo haver responsabilização das autoridades públicas caso o referido dever não seja cumprido, ou se for cumprido de modo irregular.
Às famílias é assegurado que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo” (art. 208, § 1º). Isso não quer dizer, contudo, que é obrigatória a adesão a um único modelo de ensino, sendo possível que os pais, considerando o melhor interesse dos seus filhos, decidam qual modelo educacional melhor se adequa a sua prole. Em termos constitucionais, o que se nota, portanto, é que não há uma vedação à escolha do ensino domiciliar.
Destarte, é imperioso concluir que os pais — que querem e tenham as condições necessárias — podem educar seus filhos exclusivamente em casa, pois esta atividade não é exercida apenas sob uma organização escolar. De outra sorte, caso, por razões pessoais, a família opte por delegar parte da sua prerrogativa obrigatória de ensino à escola, como é o caso da maioria, o Estado deve estar apto a disponibilizar ensino obrigatório e gratuito, sob pena de responsabilização do gestor público.
A estrutura da educação pública é, portanto, uma estrutura auxiliar à família, para apoiá-la; e, apenas excepcionalmente, substituí-la, quando esta mostrar-se sem força suficiente para prover as necessidades básicas de seus membros.
II.II – A decisão do STF no RE 888815 sobre o ensino domiciliar
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal[3] se pronunciou sobre a possibilidade de adoção do ensino domiciliar por pais brasileiros. Na época, a Corte entendeu, conforme exposto acima, que não há uma vedação absoluta no texto constitucional ao ensino domiciliar. Na perspectiva do Supremo, a restrição existente abrangeria apenas situações em que houvesse a total desescolarização do estudante ou as hipóteses em que o homeschooling fosse exercido sem qualquer espécie de acompanhamento estatal. Nesse sentido, o STF se pronunciou afirmando a possibilidade de uma educação domiciliar na qual haja uma interação entre família e Estado, com supervisão, avaliação e fiscalização efetuadas pelo Poder Público.
Na decisão prolatada, contudo, não houve a viabilização do exercício do ensino domiciliar porque o Supremo entendeu ser necessário que uma lei federal, editada pelo Congresso Nacional, regulamentasse a matéria, fixando diretrizes e requisitos para a prática. Por consequência, as famílias que desejam adotar o homeschooling ficaram dependendo de uma atuação dos parlamentares brasileiros para que pudessem adotar o modelo para o ensino de seus filhos.
O Projeto de Lei n. 3.179/2012, se aprovado também no Senado, virá para suprir essa lacuna legislativa existente em nosso país, concedendo, assim, maior segurança jurídica às famílias que pretendem se valer da educação domiciliar. Ressalte-se, ainda, que o projeto guarda conformidade com algumas ressalvas feitas pelo Supremo na época do julgamento do RE 888815, visto que detalha o funcionamento do homeschooling, prevendo mecanismos de avaliação, meios de acompanhamento das famílias adeptas e o destaque à importância da socialização das crianças inseridas no contexto do ensino domiciliar.
II.III – Descrição dos pontos principais do Projeto de Lei n. 3.179/2012
O Projeto de Lei n. 3.179/2012 propõe uma série de modificações na Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) com a finalidade de viabilizar a oferta domiciliar da educação básica.
Nesse sentido, busca inserir no art. 3º da LDB um novo parágrafo com o detalhamento de algumas diretrizes para a execução da educação domiciliar. Para que o modelo possa ser adotado, os pais ou responsáveis legais devem observar as seguintes obrigações:
- Formalizar a escolha da educação domiciliar na instituição de ensino onde o estudante está matriculado;
- Na formalização, devem apresentar certidões criminais e comprovar que o estudante será acompanhado por pelo menos um responsável dotado de escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica ou por preceptor;
- Matricular, anualmente, o estudante numa instituição de ensino credenciada pelo órgão competente do sistema de ensino;
- Esse cadastro deve ser atualizado anualmente;
- Observar os conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no ensino do estudante;
- Realizar atividades pedagógicas que envolvam o desenvolvimento intelectual, emocional, físico, social e cultura do estudante;
- Essas atividades devem ser registradas e, trimestralmente, é necessário enviar um relatório acerca delas para a instituição na qual o estudante está matriculado;
- Zelar pela convivência familiar e comunitária do estudante;
O Poder Público, por sua vez, terá os seguintes deveres:
- Acompanhar o desenvolvimento do estudante por meio de docente tutor da instituição de matrícula;
- Fornecer avaliação semestral do progresso do estudante com deficiência ou transtorno global de desenvolvimento, por equipe multiprofissional e interdisciplinar da rede ou da instituição de ensino em que estiver matriculado;
- Fiscalização através do Conselho Tutelar;
- Garantir aos estudantes de educação domiciliar que não serão submetidos a qualquer espécie de discriminação decorrente do modelo de ensino adotado, seja em concursos, competições ou eventos;
- Promover encontros semestrais das famílias optantes da educação domiciliar;
- Estabelecer diretrizes nacionais do ensino domiciliar por meio do Conselho Nacional de Educação;
Em termos de avaliação, os estudantes da educação domiciliar serão submetidos a exames periódicos. No caso de alunos da educação pré-escolar, haverá uma avaliação anual qualitativa cumulativa dos relatórios trimestrais enviados pelos seus responsáveis. Os estudantes do ensino fundamental e médio, por sua vez, serão avaliados pela avaliação anual dos relatórios trimestrais e por uma avaliação anual, que considerará os conteúdos da BNCC. Em caso de desempenho insatisfatório, o estudante poderá fazer uma avaliação de recuperação.
Os responsáveis poderão perder o exercício do direito à opção pela educação domiciliar caso cometam delitos específicos detalhados pelo projeto ou em situações de desempenho insatisfatório dos alunos.
II.IV – Análise do Projeto de Lei n. 3.179/2012
De forma geral, nota-se que o projeto de lei buscou compatibilizar diferentes necessidades em seu conteúdo. De um lado, busca conferir segurança jurídica às famílias que desejam adotar o ensino domiciliar e, sem a proteção de uma norma, acabam impedidas. Por outro, procura estabelecer diretrizes que viabilizem o acompanhamento da educação domiciliar pelas autoridades estatais.
O esforço dos deputados para avançar a proposta deve ser celebrado, visto que, sem isso, as famílias adeptas do homeschooling permanecem em uma situação de limbo jurídico. No entanto, ainda há que se debater o grau de interferência estatal no exercício do referido ensino, algo que poderá ser feito nos próximos debates que ocorrerão com o envio da proposta ao Senado Federal.
Um dos aspectos que têm sido questionado pelos apoiadores do homeschooling se refere à exigência de apresentação de certificado de nível superior ou de educação profissional tecnológica por um dos pais ou por preceptor. A alegação é de que nos moldes do projeto aprovado, a educação domiciliar ficará restrita a 8,7% da população Brasileira, ou seja, cerca de 18.3 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE de 2019[4]. Considerando a quantidade de fiscalização existente, a necessidade de formação no nível médio seria suficiente para que a lei tenha um caráter mais democrático.
Ademais, a proposta também sofre questionamentos em virtude da previsão que traz sobre a perda do direito ao ensino domiciliar quando os estudantes tiverem um progresso insuficiente (na educação pré-escolar) por dois anos consecutivos ou quando forem reprovados (no ensino fundamental ou básico) por dois anos consecutivos ou três anos não consecutivos na avaliação anual. A crítica é feita no sentido de que no modelo tradicional de educação não se impõe como sanção, em casos de desempenho insatisfatório, a mudança de modelo educacional, concedendo-se ao estudante apenas a opção de que repita a mesma série[5]. O que se nota, portanto, é que a penalidade imposta no âmbito do ensino domiciliar é bem mais gravosa, embora não haja uma justificativa para tal.
Percebe-se, assim, que o Projeto de Lei n. 3.179/2012 já propicia avanços significativos para o homeschooling no país. No entanto, alguns elementos ainda podem passar por aperfeiçoamentos para que os direitos das famílias que pretendam adotar o modelo sejam melhor resguardados.
III – CONCLUSÃO
Pelo exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) congratula a Câmara dos Deputados pela aprovação do texto base do Projeto de Lei n. 3.179/2012, e espera que, após os trâmites e deliberações do Senado, a proposta passe por aperfeiçoamentos pontuais e seja aprovada pelo Chefe do Executivo.
Brasília-DF, 23 de maio de 2022.
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] O projeto estabelece que a educação domiciliar não será admitida quando o responsável legal pelo estudante for condenado ou estiver cumprindo pena pelos crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei Maria da Penha, no Título do Código Penal referente aos Crimes contra a Dignidade Sexual, na Lei n. 11.343/2006 (institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad) e na Lei dos Crimes Hediondos.
[2]https://www.camara.leg.br/noticias/877647-camara-aprova-projeto-que-permite-a-educacao-dos-filhos-em-casa-proposta-vai-ao-senado/
[3] https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339756257&ext=.pdf
[4] IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2018-2019
[5] https://www.aned.org.br/images/Juridico/Posicionamento_da_ANED_e_Sugestoes_de_Alteracao_ao_Substitutivo_ao_PL3179_2012docx_-_Documentos_Google.pdf