Nota Pública sobre voto parcialmente prolatado do Ministro Celso de Mello durante o julgamento da ADO 26

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O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor à sociedade brasileira sua posição quanto aos argumentos expostos no voto parcialmente prolatado do Ministro Celso de Mello durante o julgamento da ADO 26, na sessão do dia 14 de fevereiro de 2019.
 
I – DA SÍNTESE FÁTICA
 
O Partido Popular Socialista – PPS ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão alegando inércia do Congresso Nacional em legislar sobre a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia, enquadrando-as no conceito ontológico-constitucional de racismo.
No dia 13 de fevereiro, a sessão de julgamento da ADO 26 se iniciou com o pronunciamento de entes públicos e de amici curiae que integram o processo, incluindo a sustentação oral da ANAJURE. Em 14 de fevereiro, o Exmo. Ministro Celso de Mello iniciou a leitura do seu voto, constituído de 18 pontos, dos quais já apresentou os 11 primeiros. O julgamento será continuado na próxima quarta (20 de fevereiro).
No voto proferido até o momento, o Ministro estabeleceu premissas que serviriam de base à sua decisão, e em seguida iniciou o detalhamento dos seus argumentos e posições. Manifestou-se pela rejeição de preliminar formulada que intentava obter a condenação do Estado por inércia em regulamentar a homofobia e transfobia, sendo acompanhado pelos demais ministros nesse entendimento. Também se posicionou acerca do pedido referente à atuação legislativa da Corte, caso o Congresso Nacional não legisle sobre a matéria, fixando, quanto a isso, a impossibilidade de o STF usurpar as atribuições do legislador. O relator declarou, ainda, a existência de mora por parte do Congresso Nacional e encerrou a leitura de parte do seu voto informando que dará continuidade apresentando soluções viáveis para a situação.
Nas linhas que seguem, apresentamos, Data venia, alguns comentários e ressalvas ao voto do Exmo. Ministro, que consideramos importantes à justa resolução da Ação, preservando-se os direitos fundamentais e a ordem jurídica.
 
II – DO POSICIONAMENTO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
 
II.I – Dos fundamentos expostos para a criminalização da homofobia
 
Inicialmente, em que pese o relato das violências sofridas por pessoas LGBT, não houve, por parte do Ministro, de qualquer amicus curiae, nem mesmo do autor da Ação, a apresentação de dados oficiais que atestassem o que estava sendo exposto. Isso porque inexiste base de dados OFICIAL que possa apontar de forma induvidosa a dimensão dos crimes praticados em razão de homofobia em todos os Estados da Federação.
Informativos jornalísticos que narram a violência que atinge pessoas LGBT foram apresentados, mas não há estatísticas governamentais a respeito de agressões consumadas pelos motivos de homofobia ou transfobia. Exemplo disso é o dado que aponta que “a cada 19h um LGBT morre[1] vítima de LGBTfobia”, que tornaria o Brasil campeão mundial de crimes contra minorias sexuais. A estatística é fornecida pelo Grupo Gay da Bahia. No entanto, o referido coletivo assumidamente não se utiliza de dados oficiais, por inexistência desses, mas reproduzem suas alegações tomando como fundamento notícias publicadas na mídia, internet e informações pessoais[2]. Não há comprovação cabal, também, acerca do método adotado para colocar o Brasil na posição de país que mais mata homossexuais no mundo, visto que o relatório do Grupo Gay da Bahia apenas se refere genericamente a dados extraídos de agências internacionais de direitos humanos. Os dados apresentados, portanto, sempre são controversos e suscitam dúvidas, principalmente interpretativas, não podendo, desta forma, legitimar o pedido apresentado, por não refletir uma realidade cristalinamente demonstrada.
Necessário pontuar que, na maioria dos crimes contra a população LGBT+, os agressores são igualmente homossexuais ou transexuais ou as motivações não coincidem com o comportamento dito homo-transo-fóbico[3]. Quanto a isso, vale trazer à colação as o magistério do Prof. Marcelo Domingos em sua Tese:

As informações mesmo esparsas e, às vezes, imprecisas ajudavam a desenhar um cenário mais nítido e distante das notas jornalísticas. Estavam dadas as condições para fazer uma tipologia das motivações de forma mais segura. E, a primeira certeza é que a tipologia empregada para classificar todas as mortes violentas de LGBT como sendo resultante da homofobia não é correta. Entre as vítimas de ódio devido a sua orientação sexual também se fazem presentes casos de rixas, motivação banal e os crimes passionais[4]. (Grifo nosso).

Na pesquisa aludida, o autor busca traçar um perfil dos assassinatos de homossexuais, demonstrando-se que, na maioria dos casos, a vítima e o ofensor são homossexuais. Mais ainda: geralmente o motivo do crime é passional ou está relacionado ao ato libidinoso praticado entre vítima e agressor (o pagamento ou a falta dele pelo ato), ou associado a outros delitos como drogas, sendo que o perfil comum da vítima são homens de classe média, com grau elevado de formação e boa condição econômica; já o perfil do agressor é de jovem pobre, morador de periferia e baixo grau de instrução.
Não é possível adotar presunção categórica de que toda violência contra homossexual ou transexual decorra de homofobia ou transfobia, sem que haja uma base de dados oficial que aponte para isso.
 
II.II – Da ausência de menção à liberdade de religião ou crença
 
Ao estabelecer as premissas que considera pertinentes ao julgamento da ADO, o Ministro Relator, em nenhum momento, mencionou a liberdade de religião ou crença. Tais garantias, presentes no rol de direitos fundamentais da CF/88, não podem estar ausentes nessa discussão, especialmente porque o Projeto de Lei n. 122 de 2006, com base no qual postula-se a declaração de omissão por parte do Congresso Nacional, tendo em vista a demora em seu trâmite legislativo, traz implicações sobremodo prejudiciais à liberdade de religião ou crença.
Nesse sentido, importa trazer à memória que o PL n. 122 de 2006, em seu texto original, ao buscar criminalizar condutas ditas preconceituosas no tocante à orientação sexual e identidade de gênero, estabelecia que seria condenado à reclusão de 1 a 3 anos aquele que impedisse, recusasse ou proibisse o ingresso ou permanência em ambiente público ou privado, aberto ao público, de pessoa homossexual (art. 5º, PL 122/2006[5]).  Imagine-se, por exemplo, o caso de uma escola confessional cristã, em que um jovem homossexual se candidata para a seleção de docente. Na entrevista, revela a sua condição social. O diretor diz que por princípios a Escola não aceita homossexuais como professores. Em reunião dos pais, todos concordam com isso, dizendo que existem outras escolas que o admitem, mas essa não. Conclusão: caso aprovado o PL, nos termos propostos, todos, o diretor e os pais, incorreram em crime e poderiam passar de 3 a 5 anos num dos presídios do nosso Estado. E mais: imagine-se que a escola é um seminário teológico de formação de pastores, ou de padres ou de monges. Todos, também, do mesmo modo poderiam ser apenados.
Ainda, o Art. 7º afirmava: Impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público (…). Pena: reclusão de 2 a 5 anos. Necessário pontuar, que igrejas são locais privados abertos ao público. Assim, imagine-se que um padre, pastor ou monge queira repreender um casal de lésbicas que esteja se beijando dentro do santuário ou capela. O que aconteceria com eles? Poderiam ir para a prisão, condenados de 2 a 5 anos, em total desrespeito à liberdade de crença no tocante à auto-organização e auto funcionamento das entidades religiosas.
Trata-se de um Projeto que impede – e mais que isso, criminaliza! – qualquer manifestação – seja ela intelectual, filosófica, ideológica, ética, artística, científica e religiosa – contrária ao homossexualismo e às suas práticas.
Essas disposições nitidamente criariam afrontas à liberdade de religião e de crença. Imagine-se, por fim, situação na qual indivíduos homossexuais ou transexuais se dirigissem a um templo religioso e, então, um Padre ou Pastor, na sua homilia, discursa reprovando práticas homossexuais, como sodomia, lesbianismo, pederastia e etc. Ele, segundo o PL, poderia ser preso em flagrante delito pela Polícia e condenado a até 5 anos de reclusão. É desproporcional, abusivo e inconstitucional admitir que, se um ministro religioso (padre, pastor, rabino, etc), em seu sermão, sendo fiel ao texto que tem como regra de fé, assentar que as práticas homossexuais são transgressões ao mandamento religioso, estará sendo homofóbico. É razoável isso? Se o for, qual o próximo passo? Proibir a circulação de livros sagrados?
Pragmaticamente, a primeira versão do PL 122 representava e buscava a imposição, flagrant­emente inconstitucional, de condutas típicas de estados totali­tários, tais como: a implantação da censura, da não liberdade de pensamento, da não liberdade de crença, da impossibilidade da livre manifestação intelectual e artística, a imputação de crimes de opinião e, principalmente, o uso – ilegítimo, ressalte-se – do aparato estatal-policial para intimidar e fazer valer a vontade de um grupo específico de pessoas.
Vale destacar que o movimento LGBT brasileiro, diferentemente de outros estabelecidos mundo afora, antes mesmo de buscar o reconhecimento de seus direitos, buscou criminalizar a conduta daqueles que pensam de modo distinto. O PL 122/2006, antecedido pelo PL 5.003/2001, é um exemplo. Tudo isso demonstra que a militância homossexual não busca unicamente ter direitos resguardados, mas tolher garantias de outros grupos a partir da imposição de seu modo de vida, nitidamente conflitante com a cosmovisão de diversos setores da sociedade, especialmente, os religiosos.
Não é razoável, portanto, estabelecer premissas a respeito desse julgamento sem qualquer menção à liberdade de expressão e de crença, uma vez que, a depender do que se entende por homofobia, há nítido risco para as entidades religiosas, nisso incluídas igrejas e escolas confessionais, e seus respectivos líderes e adeptos.
Mais do que citar tais direitos, ressalte-se, é necessário garanti-los. Isso passa pela percepção de que o discurso religioso que declara a condição pecaminosa de um homossexual ou transexual não se equipara a uma lesão corporal ou homicídio. Assim, é necessário que se assegure aos líderes e membros religiosos a possibilidade de continuar a afirmar o que é transgressão ao mandamento religioso, devendo ser punida, por óbvio, qualquer conduta que extrapole o discurso e o proselitismo e redunde em incitação ao ódio ou violência. Porém, não se pode, num Estado Democrático, que estabelece a liberdade de expressão como um direito humano fundamental, buscar criminalizar a opinião dos que consideram determinado comportamento humano como pecaminoso, imoral ou, simplesmente, contrário aos dogmas de determinada fé.
Lamentamos profundamente que no voto do Ministro Relator prolatado até o momento não tenha havido qualquer menção à liberdade de religião ou crença dentro das premissas e fundamentos de sua decisão. 
 
III – CONCLUSÕES
 
Ex positis, a ANAJURE (i) ressalta a inexistência de dados oficiais que indiquem de modo peremptório a ocorrência de crimes motivados por homofobia ou transfobia; (ii) alerta a respeito do risco resultante da criminalização da homofobia quando desconsiderados os direitos à liberdade de expressão e de crença; (iii) lamenta profundamente a ausência de menção às referidas liberdades no voto parcialmente prolatado pelo Ministro Relator Celso de Mello.
Ademais, a ANAJURE reitera seu posicionamento contrário à pretensão e argumentos aduzidos na ADO 26, pugnando pela improcedência do pedido, mantendo-se na expectativa de que, na sessão do próximo dia 20 de fevereiro de 2019, em que será continuado o julgamento da ADO 26, a Suprema Corte possa preservar, em sua decisão, os princípios da separação de poderes e da legalidade, e o gozo da liberdade religiosa.
 
Brasília, 18 de fevereiro de 2019
 
 
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[1] A estatística engloba não apenas homicídios, como leva a crer, mas também suicídios de pessoas LGBT.
[2] https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/relatorio-2081.pdf
[3] Oliveira, José Marcelo Domingos de. Tese de Doutorado. Desejo, preconceito e morte: assassinatos de LGBT em Sergipe: 1980 a 2010. Natal: UFRN.
[4] Ibid., p. 137.
[5] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3584077&ts=1548950879406&disposition=inline

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