ANAJURE e FPMLRRAH se pronunciam sobre ação do MPF para suspender a nomeação do antropólogo e missionário, Dr. Ricardo Lopes Dias, para a FUNAI

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A Frente Parlamentar Mista da Liberdade Religiosa, Refugiados e Ajuda Humanitária (FPMLRRAH) e o Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – vêm, através do presente expediente, expor aos órgãos e entidades públicas, em especial, aos parlamentares brasileiros, e à sociedade seu posicionamento conjunto referente à Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), para suspender a nomeação do Dr. Ricardo Lopes Dias para o cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio (Funai).

I – DA SÍNTESE FÁTICA

Em 03 de fevereiro de 2020, foi publicada a Portaria n. 151/20, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que nomeia o Dr. Ricardo Lopes Dias para exercer o cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Desde que souberam da referida indicação do governo federal, várias ONG’s e meios de comunicação difamaram e destruíram a boa reputação do pesquisador, acusando-o de compor um plano de genocídio dos povos indígenas[1]. Por sua vez, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou Ação Civil Pública (ACP) para suspender a nomeação alegando “conflito de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil, desde a década de 1980, apontando ameaça de genocídio e etnocídio contra os povos indígenas[2].

Assim, por meio da presente, objetivamos demonstrar que a referida nomeação não está contrária ao espírito plural e democrático da Constituição brasileira, enquanto que todas as acusações em desfavor do Dr. Ricardo, na verdade, não passam de discriminação religiosa velada.

II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE

Inicialmente, é preciso trazer ao conhecimento os predicados acadêmicos do Ricardo Lopes Dias: ele construiu uma sólida carreira acadêmica nas áreas de antropologia e indigenismo, inclusive com a conclusão do seu doutorado; tem mais de 20 (vinte) anos de experiência nas áreas de Missiologia, Linguística e Antropologia/ Etnologia Indígena, além de pesquisas desenvolvidas nas áreas de Etnologia, Missão, Religião, Tradução Cultural, Identidade, Direitos Humanos, Interculturalidade e Drogas[3].

Ocorre que todas as acusações sofridas pelo Dr. Ricardo Lopes Dias (inclusive, aquelas alegadas no curso da ação manejada pelo MPF, conforme se verá adiante) se deram não em razão do seu currículo acadêmico que, conforme foi possível verificar acima, torna-o apto à função que lhe foi confiada, mas, sim, por ocasião da sua confissão religiosa pessoal, qual seja, evangélica.

No texto da petição inicial da ACP, o MPF é explícito em dizer que “A nomeação de pessoa que (…) possua vinculação com organização missionária cuja missão é evangelizar povos indígenas, reveste-se de evidente conflito de interesses com a política indigesnista do Estado brasileiro (…)” (pags 4 e 5).  O pesquisador atuou como missionário entre as etnias indígenas, no Vale do Javari, e, apesar de ainda falar fluentemente a língua local, desligou-se da atividade de campo há mais de 10 (dez) anos.

Acontece que a incompatibilidade alegada pelo Ministério Público Federal não se dá por motivos objetivos ou científicos. Não há uma só publicação do pesquisador na qual ele manifeste – ou mesmo insinue – o seu desejo de viabilizar um trabalho missionário compulsório em áreas indígenas. Na verdade, muito pelo contrário, sempre prezou pela autonomia dos povos indígenas e preservação da cultura local, de modo que, as afirmações do MPF não passam de meras conjecturas que, por não serem um fato jurídico, não merecem a guarida do direito.

Ao longo de toda a petição inicial da ACP, o MPF discorre longamente sobre a natureza do trabalho missionário realizado entre povos indígenas, citando os relatórios, as opiniões e as experiências da Missão Nova Tribos do Brasil (MNTB) e da Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) entre povos indígenas.

De forma geral, conclui que é “risco para a política indigenista de não contato e de respeito à autodeterminação dos povos indígenas, no caso dos isolados e de recente contato, o fato de passar para o controle de pessoa com vínculo de formação e de mais de 15 anos de trabalho para uma organização com declarado propósito de evangelizar os povos ‘não alcançados’ e ‘não engajados’….” (pag. 29).

Esta postura discriminatória, entretanto, afronta todas as disposições nacionais e internacionais acerca da laicidade do Estado e da promoção e proteção do Direito Humano e Fundamental à Liberdade Religiosa. A proteção conferida ao direito de escolher a própria religião e de viver conforme os ditames da sua fé está nos diversos diplomas normativos, a começar pela Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular. (Grifo nosso)

De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 estabelece, em seu art. 18, 1:

Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. (Grifo nosso).

Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica/1969 preceituou nos seguintes termos:

Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. (Grifo nosso).

Por fim, mencionamos o texto constitucional brasileiro, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI, CF/88). Outrossim, a Carta Magna também assegura que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, VIII, CF/88).

Ponto comum a todos esses textos normativos é a valorização das expressões práticas do direito à liberdade religiosa. Isto abrange não apenas a crença individual, mas também elementos externos e públicos, como compartilhar seus preceitos religiosos com outras pessoas, sem violência, constrangimento ou coerção, mas por meio do diálogo aberto e do livre convencimento, respeitando sempre a opinião alheia. Assim como também o direito de ouvir de deixar-se (caso queira) ser convencido a mudar de religião – conforme os termos exatos da DUDH supratranscrito.

É ponto pacífico que a Constituição Federal de 1988 privilegia a diversidade: estampa o pluralismo político como um dos fundamentos da República (art. 1º, V) e valoriza as variações étnicas e culturais (art. 215, §3º, V), além de proteger as minorias e os hipossuficientes em diversas proposições diluídas pelo texto. Entretanto, não há qualquer documento nacional ou internacional que restrinja, de per si, a expressão de religiosidade missionária em áreas indígenas sob a alcunha da proteção à cultura.

Proibir a presença de um missionário ou evangelizador em tais espaços, sem que haja provas de efetivos danos no local, é tolher a pluralidade religiosa, é acusar sem provas e fazer julgamento prévio, baseado em preconceitos e estereótipos, além esquecer todos os benefícios trazidos ao desenvolvimento comunitário e pessoal, proporcionado pelos missionários ao longo de séculos.

Uma postura restritiva e limitadora, que obstaculize a presença de religiosos em terras indígenas, muitas vezes indo contra a vontade autônoma da comunidade, é uma postura absurda, principalmente quando praticada por servidores públicos pois “o pluralismo requer intervenção estatal justamente para propiciar condições de igualdade, e então o Poder Público deve sim interferir justamente para assegurar a competição religiosa[4], mas a interferência não pode ser limitadora de liberdades civis fundamentais justas e lícitas, especialmente se esta ação é contrária à boa interpretação constitucional.

Nesse ponto, vale mencionar que os direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e uma positiva. A primeira diz respeito ao dever que recai sobre o Estado e sobre terceiros de abster-se de restringir a esfera de direitos alheia. A segunda dimensão impõe ao Estado a necessidade de agir ativamente para assegurar a efetivação dos direitos fundamentais.

Aplicando tais conceitos à liberdade religiosa, temos uma dimensão negativa, da qual decorre o dever de não se impor ou desestimular a ninguém a crença ou a descrença em algo (como a vedação de “embaraçar-lhes o funcionamento”, expressa no art. 19, I, da CF/88), e uma dimensão positiva, que “exige que o Estado, através de uma ação, de uma prestação, remova os entraves e propicie as condições e os meios indispensáveis para o pleno gozo das convicções religiosas[5].

No caso sob análise, temos que o pleito do MPF por meio da ACP ajuizada, qual seja, a limitação do exercício de uma atividade pública por alguém professada e publicamente religioso, demonstra uma violência patente à Liberdade Religiosa. Demandas como esta deixam a entender que há áreas do serviço público que não poderiam ser ocupadas por evangélicos e, certamente, isto vai contra todo o espírito de laicidade que permeia o texto constitucional brasileiro.

Sobre este assunto, vale aqui a advertência do Professor Walter Claudius Rothenburg[6]:

Porém, o Estado não deve esquecer que o aspecto religioso é muito significativo para um expressivo contingente de pessoas. Há os que não creem, os que creem que a religião é um mal, o que creem em religiões minoritárias e os que comungam de crenças prevalentes. O discurso da laicidade não deve sufocar a dimensão religiosa dos sujeitos. (…) Não será preciso que o Estado proceda a exorcismos. O Estado não deve passar a ser inimigo totalitário da religião, pois ele ‘não desloca a religião da esfera pública, mas oferece-lhe espaço e, sendo necessário, a cria, ou seja, o contrário de um fundamentalismo secular voltado contra a religião’ (GRIMM, 2009, p. 182)

Embora haja certa tendência contemporânea de prática religiosa sob vertente mais individualista e privada, o fato é que o direito de propagar a sua fé, por meios lícitos, compõe o núcleo duro da Liberdade Religiosa. Esta é uma dimensão protegida pelos dispositivos normativos internacionais e constitucionais supratranscritos.

Entendemos, portanto, que não há provas ou demonstrações de eventual conflito de interesses entre a nomeação do Dr. Ricardo Lopes Dias e os objetivos de trabalho da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI, nem qualquer ameaça à autonomia dos povos indígenas ou aos princípios de preservação da cultura.

Destarte, o pleito do MPF e eventual anulação da Portaria 151/20, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, são atos de afronta à Liberdade Religiosa e à Laicidade do Estado, sendo uma demonstração cabal de perseguição aos cristãos, especialmente os evangélicos.

III – CONCLUSÃO

Pelo exposto, a ANAJURE posiciona-se pela rejeição in totum dos requerimentos da Ação Civil Pública, manejada pelo Ministério Público Federal, pois eventual conflito de interesses deve ser averiguado no exercício da função e não com censura prévia, em razão da sua fé ou de um exercício futurístico de probabilidade.

Ato contínuo, declara seu apoio à manutenção da Portaria n. 151/20, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do qual nomeou o Dr. Ricardo Lopes Dias como Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI.

Destarte, comprometemo-nos a fazer o encaminhamento da presente Nota Pública à Presidência da FUNAI, junto com a Procuradoria Federal especialmente designada; à Procuraria Geral da República (PGR), junto com a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal; ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à Advocacia-Geral da União (AGU).

Brasília-DF, 12 de fevereiro de 2020.

Dr. Uziel Santana dos Santos
Presidente da ANAJURE

Deputado Federal Roberto de Lucena
Presidente da Frente Parlamentar Mista da Liberdade Religiosa, Refugiados e Ajuda Humanitária (FPMLRRAH)

________________

[1] https://www.greenme.com.br/informarse/povos-da-floresta/41083-plano-genocida-evangelizacao-de-indios/

[2] http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/noticias-df/mpf-vai-a-justica-contra-nomeacao-de-missionario-para-a-funai/view

[3] Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC); Mestre em Ciências Sociais (Antropologia) pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Pós-Graduado em Nível de Especialização em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitário de Anápolis-GO (UniEvangélica); Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM); e Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Sul Americana (FTSA).

[4] ROTHENBURG, Walter Claudius. Liberdade Religiosa no Multiculturalismo. Disponível em: < http://www.uninter.com/iusgentium/index.php/iusgentium/article/view/232>. Acesso em 26 de abr. 2017. P. 55.

[5] SILVA, Fabiana Maria Lobo. Liberdade de religião e o ensino religioso nas escolas públicas de um Estado laico: perspectiva jusfundamental. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 206, p.271-298, jun. 2015. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/512459>. Acesso em: 31 out. 2019.

[6] ROTHENBURG, Walter Claudius. Liberdade Religiosa no Multiculturalismo. Disponível em: < http://www.uninter.com/iusgentium/index.php/iusgentium/article/view/232>. Acesso em 26 de abr. 2017. P. 43 e 44.

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