ANAJURE – Ensaio sobre o fundamento metafísico da imunidade tributária eclesiástica

antique pen 2

O termo “eclesia” do grego “ekklesia” ou do latim “ecclesia” remontam, o primeiro a principal assembleia da democracia ateniense (Atheniam Democracy, ed. Rhodes, PJ., 2004), enquanto o segundo significou “abrigo de ovelhas”, sendo este termo largamente difundindo, posteriormente, pelo cristianismo como Igreja.

Neste contexto, ampliando um pouco o termo para alcançar toda e qualquer organização religiosa, denominamos de Imunidade Tributária Eclesiástica aquela regra imunizante direcionada a todas as organizações religiosas que está contida no texto constitucional, em seu artigo 150, inciso VI, alínea “b”:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
(…)
b) templos de qualquer culto;
(…)

§ 4º – As vedações expressas no inciso VI, alíneas “b” e “c”, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.

Estes dispositivos, inseridos na Seção II, Capítulo I, Título VI da Constituição Republicana, consagram a Imunidade Tributária a todas as organizações religiosas regularmente constituídas na forma do Decreto 119-A de 1890 revogado posteriormente pelo Decreto 11 de 1991, porém repristinado pelo Decreto 4.496 de 2002 e na forma do Código Civil Brasileiro, artigo 43, inciso IV em território nacional.

No dizer de Paulo de Barros Carvalho a Imunidade Tributária é “…a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que, estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas.” (Paulo de Barros Carvalho, Curso de Direito Tributário, Ed. Saraiva, 8ª Edição, 1996, p. 121)

O mesmo professor ensina que a Imunidade Tributária Eclesiástica reafirma “o princípio da liberdade de crença e prática religiosa, que a Constituição Brasileira prestigia no art. 5º, VI a VIII” (CARVALHO, p.125)

Entretanto, parece-nos que a verstigada regra imunizante vai além de reafirmar o princípio constitucional da liberdade de crença, decorrendo da necessária separação entre Igreja & Estado, o que, na verdade, garante a liberdade de crença, e não o contrário, é o que nos deparamos ao tentar descobrir seu fundamento.

A Igreja e o Estado devem trilhar caminhos distintos, por possuírem competências totalmente distintas. Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos da América e principal autor da declaração de independência norte americana, ao escrever para a Associação Batista de Danbury, em 1802, conceituou:

“… eu contemplo com reverência soberana que age de todo o povo americano, que declarou que sua legislatura deve ‘fazer nenhuma lei respeitando um estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício“ (Jefferson’s Letter to the Danbury Baptists (June 1998) – Library of Congress Information Bulletin)

Esta citação de Thomas Jefferson faz alusão à Primeira Emenda ao Texto Magno Norte-americano, que institui a separação entre a Igreja e o Estado (1791): “O Congresso não fará nenhuma lei respeitando um estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício,…”.

A Igreja não pode se imiscuir nas funções do Estado, assim como o Estado não pode se imiscuir nas funções eclesiásticas, tal ensinamento decorre da história[1], e, nesta toada, a Imunidade Tributária Eclesiástica vem diretamente ao encontro.

Esta é uma das premissas que levou a Igreja Católica a ser reconhecida pelo concerto de nações como uma pessoa jurídica de direito público sui generis, posto que, pela sua natureza totalmente singular, e de alcance global, não pode depender do registro civil para que nasça para o Direito. No dizer do Padre Eugênio Carlos Callioli: “O Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, que reconheceu a personalidade jurídica da Igreja, não o fez por um critério constitutivo, mas declaratório”.[2]

Assim sendo, na medida do princípio da isonomia que é basilar em nossa Lei Maior, todas as organizações religiosas possuem tal natureza jurídica de direito público sui generis, demonstrando, novamente, que é diversa da essência do Estado, posto que busca ser veículo para que homem alcance seus fins espirituais, metafísicos.

No conceito clássico, a imposição tributária é exigida obrigatoriamente às pessoas, pela autoridade competente,  a partir de uma base de cálculo e de um fato gerador, com o objetivo final de custear a máquina pública, ou seja o Estado.

Ensinava Gaston Jéze:

“O imposto é uma prestação pecuniária para as pessoas, exigido pela autoridade devida, de modo permanente e sem remuneração por tal, para cobrir uma função pública necessária.”

Na Idade Média o poder efetivo do rei/imperador ou soberano era determinado por sua capacidade de lançar e cobrar impostos. Temos como exemplo bíblico quando, em aproximadamente, no ano 900 A.C., Roboão, ao assumir o trono deixado por Salomão (1º Reino de Judá), teve como primeira ação governamental aumentar os impostos (1 Reis 12.14 – Bíblia Sagrada).

Logo, o Estado possui o poder de implementar e exigir impostos de seus jurisdicionados, de forma não vinculada a qualquer atividade, com o único condão de se custear. Trata-se de uma relação de subserviência entre o contribuinte e aquele que o exige impostos.

No caso de não pagamento do imposto devido o contribuinte será alvo de execução fiscal (Lei 6.830/80) do valor devido acrescido de multa, juros e correção, além das custas processuais e honorários advocatícios. Já no caso de sonegação fiscal, é previsto na legislação de regência (Lei 4.729/65) diversos tipos penais que podem levar o contribuinte a prisão, certamente após o devido processo legal.

Contudo, a Igreja não pode manter com o Estado esta relação de subserviência, em que seria obrigada a prestação pecuniária para custeá-lo, isto porque, ao ser obrigado, a separação Igreja & Estado é atingida com o Estado exigindo prestação pecuniária da Igreja pelo simples poder de império!

Tanto o Estado, quanto a Igreja trilham e devem trilhar, caminhos semelhantes (bem comum da sociedade ou aprimoramento das pessoas humanas, por exemplo) porém de competência totalmente distintas[3]. O Estado brasileiro é secular, ou seja, oficialmente neutro em relação às questões religiosas, laico e, assim, tem como objetivos aqueles descritos no art. 3 da CRFB/88:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

De outra banda, a Igreja, independente de sua matiz, tem sua competência no aprimoramento do ser humano, mas sob o ponto de vista místico, transcendental, espiritual e psicológico, auxiliando-o neste aprimoramento.

Por conta desta teleologia andou bem o Congresso Nacional em não atender a iniciativa do Deputado Eduardo Jorge, que buscou cassar às organizações religiosas sua imunidade tributária, mediante a Proposta de Emenda Constitucional n. 176-A, de 10 de outubro de 1993.

Por oportuno transcreve-se parte da justificação da proposta:

As imunidades tributárias que pretendemos suprimir decorrem, quase todas, da Constituição de 1946; poucas foram introduzidas em nosso Direito pela Constituição de 1988.

(…)

Por último, caberia ressaltar que a revogação dessas imunidades fortalece a posição daqueles que, como nós, pensam que todas as camadas da sociedade devem contribuir para o fim comum, cada uma, é evidente, de acordo com suas possibilidades, que nossa Lei Magna chama de capacidade contributiva.”[4]

A noção de que a organização religiosa é mero fenômeno cultural e, portanto, uma manifestação humana não dotada de elemento metafísico trouxe ao então parlamentar a reflexão de que não haveria, na nova ordem constitucional, espaço para a manutenção de “privilégios” atentatórios ao bem comum buscado pelo Estado.

Porém a relatoria desta proposta, de lavra do Deputado Jair Siqueira, trouxe, com total correção, a verdadeira luz sobre o tema, como se pode depreender de parte do texto de seu parecer abaixo transcrita:

“Contudo, no que tange aos direitos e garantias individuais, a proposição apresenta conexão com a liberdade religiosa, a liberdade político-partidária e a liberdade de expressão.

(…)

Outras limitações necessárias decorrem do fato de que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio de os indivíduos procurarem cumprir seu destino, desenvolvendo suas qualidades físicas, morais e intelectuais. O poder soberano do Estado é limitado pelos direitos naturais da pessoa humana.

Mas, o homem não é apenas um animal político, como já nos ensinava ARISTÓTELES, há quatrocentos anos antes de Cristo. O homem é também um animal metafísico, como disse FOUILLIE.

Eis porque a religião é tida como um dos incentivos fundamentais que dominam a vida do homem em sociedade e regem a totalidade das relações humanas.

Assim, o Estado existe para realizar o bem comum temporal dos homens no terreno político. Mas o homem precisa de outros bens temporais, que o Estado não é capaz de realizar, e de bens espirituais que o Estado não pode desconhecer, mas que não deve cuidar, por lhe faltar competência para tal.

Desta forma, se ao Estado falta competência para prover um bem, natural na pessoa humana, que é a religiosidade, o bem espiritual dos indivíduos, deve ele permitir e até mesmo incentivar aqueles que se encontram aptos a atender a essa necessidade básica.

Nas relações com o Estado, a religião tem uma relação muito importante. No Brasil, o princípio fundamental é o da liberdade religiosa, não podendo as pessoas jurídicas de direito público criar cultos religiosos ou igrejas nem dificultar-lhes o funcionamento.

Neste sentido, dispõe o art. 19, I, da Constituição Federal.

(…)

Como se vê, a supressão da alínea “b”do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal, ora alvitrada na presente proposta, viola um direito e garantia individual: a liberdade religiosa (art. 5º, VI, da Constituição Federal). Pois, ao tributar templos religiosos, poderá criar-lhes dificuldades de funcionamento, além da possibilidade de fiscalização ser eventualmente exercida por fiscais impregnados de fanatismo religioso, motivo que poderá levar a arbitrariedade de ação com igrejas de seitas diferentes das suas.

Esta deve ter sido a raz ão principal que levou os Constituintes brasileiros de 1946 e 1988 a tornar imunes de tributação os templos religiosos.

(…)

Ante o exposto, nosso voto é pela inadmissibilidade da Emenda à Constituição nº 176, de 1993, porquanto, ao pretender suprimir imunidades tributárias reiteradamente reconhecidas pela doutrina, pela jurisprudência e pela prática legislativa brasileiras e estrangeiras como garantias dos direitos de liberdade religiosa, partidária e de manifestação do pensamento, da expressão e da comunicação, fere a limitação material ao Poder Reformador contida no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal”.[5]

Neste sentido de entender que a imunidade tributária alcançada às organizações religiosas no texto constitucional revestem-se da natureza de garantia fundamental, ligada aos direitos humanos e, portanto, condição pétrea, ante o disposto no art. 60, § 4º, IV, da Constituição da República.

Ou seja, a imunidade é o sustentáculo desta relação sadia em que o Estado e a Igreja atuam paralelamente, cada um na sua competência evitando erros do passado ou ainda, casos em que, sem democracia ou Estado de Direito, a igreja e outros muitos segmentos são perseguidos.

O Estado secular ao restringir ou proibir à atividade religiosa ou ainda incentivar ou proteger esta ou aquela organização religiosa estará se imiscuindo num plano que não é de sua competência, ferindo o seu fundamento ético. E, na hipótese do Estado Laicista (não é o caso brasileiro) que não reconhece o plano espiritual, exatamente por este motivo tem como fundamento ético a separação da Igreja e do Estado, mote da Revolução Francesa, e, nesta senda, também ao reconhecer a impossibilidade de exigir impostos destas, fundamenta seu ponto de vista filosófico, teórico e jurídico.

Do reconhecimento da Imunidade Tributária Eclesiástica emana as demais garantias constitucionais de liberdade de crença e de culto, pois se trata do coroamento da separação do Estado e da Igreja, com a divisão de competências de ambos, permitindo à pessoa humana ser alvo da competência eclesiástica ou não, e, na medida em que escolhe esta ou aquela organização religiosa, possui a segurança de que não será atacado por Leviatã (Leviatã, 1651, Thomas Hobbes), bem como aquele que escolhe o inverso não estará em posição jurídica superior ou inferior ao primeiro.

Assim, o fundamento metafisico da imunidade tributária eclesiástica é a necessária preservação do princípio de separação entre Igreja e Estado, da qual decorrem os demais princípios constitucionais de liberdade de crença e culto, todos alicerçados no principio da dignidade da pessoa humana. Logo, metafisicamente a liberdade de crença e culto decorre da Imunidade Tributária Eclesiástica!

Autoria:

Thiago Rafael Vieira[6]
Jean Marques Regina[7]

 

[1]  (VER artigo IGREJA E ESTADO: UMA VISÃO PANORÂMICA de Alderi Souza de Matos, acesso em 12.04.2013 http://www.mackenzie.br/7113.html),

[2] CARVALHO, Diogo da Cunha et al. A Igreja e o Direito. Rio de Janeiro, 2006: Sabre Editora. P. 49

[3] Ensina-nos o constitucionalista alemão, Prof. Stephan Kirste, que “A validade de uma norma depende de sua concordância com uma norma de competência e da correspondente norma de procedimento. Isso acontece igualmente com as próprias regras de modificação. Assim, essa necessidade normativa demandaria para cada norma jurídica uma norma de modificação, aí incluída a própria regra de modificação como norma  jurídica. Expresso em termos temporais: se o estabelecimento de uma  assimetria temporal (“temporalização do direito”) exige o estabelecimento  prévio de outra assimetria temporal para valer como direito, então não  haveria início do direito e, por isso, não haveria, absolutamente, o direito. Já que existe o direito, contudo, tem que haver um início”. Esse é o problema  que as constituições têm que resolver. (KIRSTE, Stephan. Constituição como Início do Direito Positivo: A estrutura temporal das constituições. Trad. Torquato Castro Jr. e Graziela Bacchi Hora. Titulo Original:  ‘Verfassung als Anfang des positiven Rechts: Die Zeitstruktur von Verfassungen’.  Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito. Recife: Universitária da UFPE, n.  13, 2003. p. 49).

[4] CARVALHO, Diogo da Cunha Carvalho et al. Op. cit. p. 96.

[5] IDEM, pp. 97 a 99.

[6] Advogado – OAB/RS 58.257; Especialista em Direito do Estado/UFRGS; Coordenador da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE) no Rio Grande do Sul; Sócio Diretor do Vieira & Regina Sociedade de Advogados.

[7] Advogado – OAB/RS 59.445; Coordenador Jurídico das Igrejas Históricas no Brasil; Diretor Nacional de Assuntos Denominacionais da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE); Sócio Diretor do Vieira & Regina Sociedade de Advogados.

_______________

Artigo publicado no site em Gospel Prime

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here