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O Conselho Diretivo Nacional – CDN da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, emite a presente Nota Pública acerca da aprovação da Lei n.º2018-703 pelo Parlamento Francês, que altera dispositivos do Código Penal sobre atos de violência sexual contra crianças e adolescentes, com o intuito de esclarecer à comunidade jurídica brasileira e entidades religiosas as inovações trazidas por essa lei e suas implicações jurídicas à proteção das crianças e adolescentes.
I – SÍNTESE DOS FATOS
O Parlamento Francês aprovou a LOI n°2018-703 du 3 août 2018 renforçant la lutte contre les violences sexuelles et sexistes (Lei n.º2018-703, de 3 de agosto de 2018) que, nos termos da própria legislação, “reforça a luta contra a violência sexual e de gênero”. A lei foi aprovada com ampla maioria (92 votos a favor, nenhum contra), e foi descrita pelo governo como “um sinal de profunda mudança social”[1] no país. A lei altera algumas disposições do Código Penal Francês, especialmente no tocante a crimes de violência sexual, que serão analisadas a seguir.
A notícia da promulgação desta lei repercutiu intensamente no Brasil, especialmente nas últimas semanas, por meio de vídeos, postagens nas redes sociais e diversas notícias em sítios eletrônicos que alertam para uma legalização da pedofilia na França. Um dos vídeos com grande repercussão, por exemplo, tem como título: “França legaliza pedofilia (na prática)”, no qual se afirma que “o parlamento Francês legalizou oficialmente a pedofilia, anulando qualquer idade de consentimento sexual para as crianças”. No mesmo sentido, um portal de notícias veiculou reportagem intitulada: “França aprova lei declarando que crianças podem consentir em sexo com adultos”.
Diante deste cenário, a ANAJURE, mediante consulta de diversas entidades brasileiras as quais representa, realizou um estudo detalhado da nova lei francesa e de suas implicações à proteção das crianças e adolescentes, apresentando, por meio desta Nota Pública, as suas análises e conclusões.
II – A LEGISLAÇÃO APROVADA NA FRANÇA
Inicialmente, cumpre-nos apresentar as disposições penais sob a égide da legislação anterior, para, em seguida, analisar e comentar as inovações trazidas pela nova lei.
Neste sentido, a legislação anterior dispunha que um adulto que pratica um ato sexual com uma pessoa com menos de 15 anos de idade, sem “violência, coerção, ameaça ou surpresa”, poderia ser processado por ‘abuso sexual’, mas não por estupro, tendo em vista que a lei francesa define o estupro como qualquer ato sexual cometido por meio de violência, coerção, ameaça ou surpresa. O abuso sexual sem estes elementos coercivos, portanto, seria um delito punível com pena máxima de cinco anos de prisão, enquanto a condenação por estupro tem pena máxima de 15 anos, ou 20 anos quando a vítima tem menos de 15 anos de idade.
Para elucidar melhor essa questão, trazemos um recente caso ocorrido em território francês – um dos casos, inclusive, que ensejou a mudança legislativa.
Em 2017, um homem de 30 anos foi absolvido da acusação de estuprar uma menina de 11 anos em 2009. A decisão foi no sentido de que, embora tenha havido uma relação sexual entre a criança e o homem, não constituiu um estupro nos termos da lei[2]. Isto porque, como dito, as acusações de estupro só podem ser apresentadas se os promotores puderem provar que o ato foi não-consensual.
A nova lei torna mais fácil que um ato sexual entre um adulto e um menor de 15 anos seja considerado estupro. Sob a nova lei, os juízes podem classificar as relações sexuais com um menor como estupro se a relação sexual resultar de um “abuso de vulnerabilidade”. Assim, a relação entre adultos e crianças com menos de 15 anos será considerada estupro se for descoberto que o adulto abusou da falta de compreensão da criança para envolve-la no ato. É assim que prevê o artigo 2º da nova lei, in verbis:
I.-Le chapitre II du titre II du livre II du code pénal est ainsi modifié :
1° L’article 222-22-1 est ainsi modifié :
a) La seconde phrase est supprimée ;
b) Sont ajoutés deux alinéas ainsi rédigés :
« Lorsque les faits sont commis sur la personne d’un mineur, la contrainte morale mentionnée au premier alinéa du présent article ou la surprise mentionnée au premier alinéa de l’article 222-22 peuvent résulter de la différence d’âge existant entre la victime et l’auteur des faits et de l’autorité de droit ou de fait que celui-ci exerce sur la victime, cette autorité de fait pouvant être caractérisée par une différence d’âge significative entre la victime mineure et l’auteur majeur.
«Lorsque les faits sont commis sur la personne d’un mineur de quinze ans, la contrainte morale ou la surprise sont caractérisées par l’abus de la vulnérabilité de la victime ne disposant pas du discernement nécessaire pour ces actes.»[3] (destaque nosso)
Destaca-se, ainda, que a nova legislação traz mais uma garantia às pessoas que foram estupradas enquanto menores de idade, a saber, 10 anos a mais para que a denúncia seja feita, elevando-se o prazo prescricional da legislação anterior, de 20, para 30 anos depois que a vítima atingir 18 anos de idade:
1° Après le deuxième alinéa, il est inséré un alinéa ainsi rédigé :
« L’action publique des crimes mentionnés à l’article 706-47 du présent code, lorsqu’ils sont commis sur des mineurs, se prescrit par trente années révolues à compter de la majorité de ces derniers.»[4]; (destaque nosso)
III – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
Consideramos que a nova lei francesa deveria ter ido além das modificações trazidas, no sentido de qualificar, automaticamente, qualquer relação sexual entre um adulto e uma criança como estupro, tal como procede a legislação brasileira. Com efeito, no Brasil se adota a idade de 14 (quatorze) anos como idade de consentimento, isto é, considera-se que a relação sexual com crianças abaixo dessa idade é, por definição, coercitiva (Artigo 217-A do Código Penal[5]).
Apesar disso, não podemos pensar que a lei veio “legalizar a pedofilia” ou algo semelhante, pois, conforme demonstrado, a nova legislação trouxe avanços à proteção anteriormente vigente no território francês. De fato, a lei não traz uma idade mínima de consentimento para relações sexuais. Porém, isso não quer dizer que a lei “anulou” a idade de consentimento, pois nem mesmo na legislação anterior havia tal disposição, apesar de considerarmos importante, repisa-se, a previsão de uma idade de consentimento.
IV – CONCLUSÃO E ENCAMINHAMENTOS
Ex positis, o Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, Resolve:
i) Reafirmar seu compromisso na proteção da dignidade e direitos das crianças e adolescentes, sobretudo em razão de sua vulnerabilidade e imaturidade sexual e cognitiva, ressoando o Artigo 70 do ECA, segundo o qual “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” e o Artigo 34 da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, por meio do qual os Estados se comprometem a “proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual”.
ii) Posicionar-se, veemente, contra a disseminação das chamadas Fake News, por quaisquer meios de divulgação, ainda que para propósitos aparentemente nobres, como, neste caso, a luta contra a pedofilia e abuso infantil. Do mesmo modo, a defesa dos direitos humanos não pode ser um pretexto para veiculação de qualquer tipo de notícia que surge na world wide web,, sem um escorreito escrutínio das fontes primárias e sua correta contextualização.
Brasília, 25 de agosto de 2018
Uziel Santana
Presidente da ANAJURE
Felipe Augusto Carvalho
Assessor Jurídico Internacional da ANAJURE
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[1] France passes new law on child rape, sexual harassment. Disponível em: https://www.dw.com/en/france-passes-new-law-on-child-rape-sexual-harassment/a-44919914
[2] France to set a legal minimum age of consent for the first time – but there are protests as Justice Minister suggests it should be just thirteen. Disponível em: http://www.dailymail.co.uk/news/article-5080839/When-child-sex-isnt-rape-French-set-age-consent.html
[3] O Capítulo II do Título II do Livro II do Código Penal é emendado do seguinte modo:
1 ° A secção 222-22-1 é alterada do seguinte modo:
a segunda frase é suprimida;
(b) Dois parágrafos são adicionados para serem lidos da seguinte forma:
“Quando os fatos são cometidos sobre a pessoa de um menor, a restrição moral mencionada no primeiro parágrafo deste artigo ou a surpresa mencionada no primeiro parágrafo do artigo 222-22 pode resultar da diferença de idade entre a vítima e o autor dos fatos e a autoridade de jure ou de facto exercida sobre a vítima, sendo essa autoridade de fato caracterizada por uma diferença significativa de idade entre a vítima menor e o autor principal.
“Quando os fatos são cometidos em uma pessoa com idade inferior a quinze anos, a restrição moral ou surpresa é caracterizada pelo abuso da vulnerabilidade da vítima que não tem o discernimento necessário para esses atos.”
[4] 1 ° Após o segundo parágrafo, um parágrafo é inserido como segue:
“A acusação pública dos crimes mencionados nos artigos 706-47 do presente Código, quando cometidos contra menores de idade, é prescrita por trinta anos transcorridos desde a maioridade destes últimos.”;
[5] Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.