O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais faz saber as seguintes considerações e manifestações.
No último dia 16 de maio de 2018, o plenário do Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2566, por meio de cuja demanda, ajuizada pelo Partido Liberal (PL), requereu a inconstitucionalidade do art. 4º, §1º, da Lei nº 9.612/98 que veda o proselitismo em rádio comunitárias, in verbis:
Art. 4º As emissoras do Serviço de Radiodifusão Comunitária atenderão, em sua programação, aos seguintes princípios:
(…)
§ 1º É vedado o proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária
O Requerente alega que o referido dispositivo legal afronta as normas escritas nos art. 5º, incisos IV, VI e IX e o art. 220, todos da Constituição Federal, pois impede a livre manifestação do pensamento e, em especialmente, viola a liberdade de expressão da consciência e de crença; que “com tal proibição, as rádios comunitárias também deixam de prestar um grande serviço para a comunidade que representam e a quem devem servir”. Segue transcrição dos dispositivos aludidos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Mas qual a importância deste julgamento para as organizações religiosas? Acontece que o “proselitismo” vedado pela lei está na sua acepção mais ampla, ou seja, qualquer postura assertiva do falante em convencer o seu ouvinte de que a sua opinião estaria correta e as outras erradas, deveria ser vetada na programação de rádios comunitárias. Assim, ficaria abrangido e vetado também o proselitismo na sua forma religiosa, ou seja, como conhecemos no meio cristão, o “evangelismo” – que foi o grande tema destacado nas discussões travadas entre os ministros na referida sessão.
Na prática, portanto, o Ministério das Comunicações, no exercício legal de sua atividade, deveria proibir que em qualquer das mais de 5mil rádios comunitárias outorgadas, espalhadas pelo Brasil, houvesse programas evangelísticos, ensinos cristãos, leitura bíblica e aconselhamento, investidas apologéticas, dentre outras programações. Caso houvesse alguma denúncia por pessoas da comunidade, associações de bairro ou qualquer ouvinte, a rádio poderia ser punida com advertência, multa ou até mesmo a revogação da autorização de funcionamento (art. 21, parágrafo único, da Lei 9.612/1998).
Nesse ínterim, em janeiro de 2005, a Advocacia-Geral da União manifestou-se pela improcedência do pedido inicial, pois entende que a vedação de programações de ”apologia de uma certa doutrina ou ideologia” é a afirmação do caráter pluralista das rádios comunitárias, servindo as interesses do local e não a outros interesses dominantes, prevenindo “o desvirtuamento das finalidades a que se destinam”.
Ainda em fevereiro de 2005, a Procuradoria Geral da República manifestou-se também pela improcedência do pleito, indicando que “a prática do proselitismo não se confunde com a livre manifestação do pensamento”, pois esta estaria assegurada na referida norma, enquanto aquela “constitui atividade direcionada a persuadir o interlocutor, de forma contundente e inflexível, a renunciar seus atuais valores e idéias para converter-se a uma nova doutrina ou sistema”, o que caracteriza como “flagrante desrespeito à liberdade de consciência e de crença assegurada na Constituição Federal”.
Por ocasião do julgamento, o relator, ministro Alexandre de Moraes, considerou constitucional o art. 4º, §1º, da Lei nº 9.612/98, sustentando que a vedação legal visaria assegurar o respeito recíproco entre as diversas correntes de pensamento e evitar a veiculação, de forma autoritária, de ideias políticas, religiosas, filosóficas ou científicas sem que se permitisse a contestação, proibindo a propagação enfática, sectária de uma determinada doutrina. Este entendimento foi seguido pelo ministro Luiz Fux.
Entretanto, prevaleceu o entendimento do ministro Edson Fachin, que proferiu o primeiro voto divergente. Segundo ele, ao impedir a livre manifestação do pensamento, a norma padece de “ostensiva inconstitucionalidade”. Destacou, ainda, que a jurisprudência do STF tem enfatizado a primazia do princípio da liberdade de expressão, sendo inadmissível que o Estado exerça controle prévio sobre o que é veiculado por meios de comunicação. Este entendimento foi seguido pelos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Cármen Lúcia.
Assim, proferidos os votos dos ministros julgadores presentes e aptos, o plenário do STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2566 e inconstitucional a proibição ao proselitismo de qualquer natureza na programação das emissoras de radiodifusão comunitária.
Tal disparidade de perspectivas entre os ministros julgadores se deu, principalmente, em razão de uma falta de definição precisa do que significa “proselitismo”: enquanto o Ministro Alexandre de Moraes fundamentou-se numa definição meramente semântica, por não existir um conceito legal preciso; os demais divergentes consideraram a repercussão prática de tal vedação, ocasionando censura prévia, impedindo a manifestação e a defesa de ideias autênticas e tolhendo a pluralidade tão bem apreciada pela Constituição Federal.
Particularmente quanto ao direito de liberdade religiosa, na melhor doutrina do Prof. Jónatas Machado[1], ele compreende não apenas uma crença pessoal e subjetiva, mas também a possibilidade do fiel agir em conformidade aos dogmas religiosos, sob pena de, havendo um distanciamento entre estes dois elementos, haver uma “descaracterização do fenômeno religioso e a subversão completa, ou esvaziamento, do programa normativo”.
O professor Antônio Molina Melia (apud MACHADO, p. 223) afirma veementemente que “reduzir a liberdade religiosa à liberdade de consciência é um verdadeiro escárnio. A liberdade de consciência é só um ponto de partida, mas não de chegada. O homem não é só consciência, como também um ser social que necessita de viver as suas convicções em sociedade.”
Neste sentido, um desdobramento importante ao poder-dever de agir em consonância às convicções de fé é a possibilidade de manifestá-la e difundi-la. O proselitismo, portanto, nas palavras do professor Law Tad Stahnke, é “uma ‘conduta expressiva’ levada a cabo com a intenção de tentar modificar as crenças religiosas, afiliação ou a identidade de outra pessoa”[2]; ou, segundo a doutrinadora Anastase Marinho, “significa a atracção de uma pessoa a determinados pontos de vista, por meio do ensino e da persuasão”[3].
Esta atividade, enquanto exercida de forma legítima, implica, necessariamente, a manifestação de suas convicções “com humildade, respeito e honestidade, devendo o diálogo substituir o confronto. (…) evitando a terminologia ofensiva, respeitando os direitos tanto das maiorias, como das minorias, evitando a competição e o antagonismo, desencorajando as declarações falsas ou o denegrir ou ridicularizar de outras religiões, proibindo a coacção moral e física ou a utilização de poder político econômico”[4].
Vemos que faltou, portanto, tais ponderações ao voto do ministro Alexandre de Moraes que, certamente, nestes termos, não seria favorável àquela norma de vedação discutida, pois, como o próprio disse em debate, não era sua intenção de que seu voto parecesse uma defesa de cesura prévia.
Vale lembrar que a liberdade de expressão é consagrada, historicamente, como um Direito Humano de primeira geração e está formalizada, atualmente, nos principais instrumentos normativos internacionais – dentre os quais citamos o art. 19, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; e o art. 19, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – e na legislação nacional, como Direito Fundamental, tendo destaque o art. 5º, IV e VI, da CF/88, já transcritos. Desta forma, não poderia ser restringida por qualquer situação ou mal entendido doutrinário e conceitual; seu limite é apenas e tão somente a dignidade da pessoa humana que, certamente, não estaria sendo afrontada pelo debate, ainda que veemente, de ideias, mesmo que estas sejam religiosas.
Ainda mais por que, sendo o proselitismo natural ao exercício religioso e devendo ser exercido sobre as bases de tolerância supra referidas, críticas ou comparações com crenças alheias não caracterizam, por si só, alguma prática ilícita. Esta perspectiva é precisamente desenvolvida na doutrina consolidada do professor André Ramos Tavares[5]:
O embate religioso, invariavelmente, envolve esta concepção de que determinada religião ou igreja há de ajudar o terceiro a alcançar um nível mais alto de bem-estar, de salvação. Esta é a pedra angular, por exemplo, do cristianismo, presente na sua missão de evangelizar (tema já desenvolvido neste presente artigo), reputada como um dever, mas não apenas do cristianismo. Esta conduta, contudo, não implica discriminação. Apenas a concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior (que só pode ser verificada adequadamente em cada caso concreto e que não se manifesta no caso em apreço) é que enseja prática discriminatória, a ser, por conseguinte, considerada legalmente (penalmente) censurável.”
Utilizando-se do mesmo cabedal teórico, o ministro Edson Fachin, em seu voto vencedor como relator do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 134.682/BA, reitera que “o discurso que persegue alcançar, pela fé, adeptos de outras fés, não se qualifica intrinsecamente como discriminatório”. Desta forma, a apuração de eventual prática discriminatória e censurável em termos de proselitismo religioso não é medida por um discurso contrário às demais religiões, mas sim “a partir dos métodos de persuasão (e não imposição) empregados (…) sem contornos de violência ou que atinjam diretamente a dignidade humana”.
A intolerância, portanto, que deve ser perseguida, no debate religioso, é aquela que não lança mão da persuasão dos argumentos (ainda que contundentes e contrários aos demais) e aplica força, violência, constrangimento ou coação, para obter adeptos. Destarte, evitando tais procedimentos o proselitismo religioso, seja por meio de rádios comunitárias, ou qualquer outro instrumento, não poderá ser vetado, sob pena de afronta a liberdades civis fundamentais básicas, ao que andou bem o STF na decisão da ADI 2566.
Ex positis, o Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos entende manifestar seu apoio ao ministro Edson Fachin, pelo voto divergente proferido no julgamento em questão, assim como aos demais julgadores que o seguiram, demonstrando sobriedade, equilíbrio e sensibilidade no direito discutido.
Ademais, esta é uma vitória importante especialmente ao proselitismo religioso, à pregação do evangelho de Cristo e o combate a ideologias anti-cristãs, pois permite que igrejas, agências missionárias, grupos evangelísticos e organizações religiosas em geral possam exercer este ministério e utilizar as rádio comunitárias como forma de propagar as boas novas de Deus. Estimulamos, portanto, que tais atores possamos ocupar estes espaços, pois a verdade do Salvador haverá de prevalecer e, nesta caminhada, podem contar com o apoio da ANAJURE, por meio dos Programa de Apoio Denominacional (PAD) e do Programa de Apoio a Agências Missionárias (PAAM).
Era o que importava ser esclarecido e posicionado.
Brasília, 22 de maio de 2018
Dr. Uziel Santana dos Santos
Presidente da ANAJURE
Edmilson Almeida
Assessor Jurídico da ANAJURE
Felipe Augusto
Assessor Jurídico da ANAJURE
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[1] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra, 1996, pp. 220 e ss.
[2] apud in GUERREIRO, Sara. As fronteiras da tolerância. Coimbra: Almedina, 2005. p. 175.
[3] apud in GUERREIRO, Sara. As fronteiras da tolerância. Coimbra: Almedina, 2005. p. 174.
[4] apud in GUERREIRO, Sara. As fronteiras da tolerância. Coimbra: Almedina, 2005. p. 176.
[5] TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e
evangelização. Disponível em http://www.cjlp.org/direito_fundamental_discurso_religioso.html, acesso em 20.10.2016.