ARTIGO l Se o ensino é laico, a ciência é o quê? (PARTE 03)

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                                   A falsa rivalidade entre a ciência e a fé no ensino leigo

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Este é o terceiro comentário da série que estamos analisando uma reportagem da Revista Galileu, sob o título “Criacionismo ou evolução? Papel da religião é debatido nas escolas”[1]. Inicialmente, colocamos em cheque a afirmação de que o ensino laico no Brasil não respeitava a diversidade religiosa, pois era uma tentativa malsucedida de mitigar o valor do ensino religioso. No segundo texto, fizemos algumas digressões acerca da relação da sociedade civil com o poder público (Estado) acerca do fenômeno religioso, tomando como pretexto um exemplo (supostamente) positivo, indicado pelo autor.

Seguindo firme na reportagem comentada, ela dá a entender que, a partir de agora, o escritor decide mudar o foco: deixa de ser a relação entre laicidade e ensino religioso, para ser a antiga (suposta) dicotomia entre ciência e fé em contexto de ensino.

Para tanto, inicia uma jornada de pesquisas, testemunhos e relatos, nacionais e internacionais, em cujo início merecem destaque a citação (i) do Papa Francisco de “que o Big Bang e a teoria da evolução não são incompatíveis com a noção de criação e que Deus não era ‘um mágico, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo’”; (ii) da consulta pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o ensino religioso, em 2015[2]; e (iii) do projeto de lei nº º 8.099/2014, proposto pelo Deputado Marco Feliciano, que “prevê a inserção do criacionismo na grade curricular obrigatória do ensino público”.

Na medida em que o texto vai avançando, todavia, o autor coloca a perspectiva criacional da origem de universo como uma espécie de narrativa mítica, tresloucada e sem provas, digna de um povo inculto e desinformado, ou restrita apenas ao âmbito familiar e da convicção individual, principalmente quando em confronto com a teoria evolucionista que seria a única apta ao círculos mais avançados da ciência e digna de ser propagada na arena pública – mesmo que esta ainda seja carente de provas científicas e cheia de percalços metodológicos ainda não ultrapassados.

Serve como exemplo disto a citação do professor francês Pierre Clément: “Há exceções muito interessantes, mas, no geral, quanto menos desenvolvido economicamente é um país, mais a população — incluindo estudantes e professores — pratica alguma religião (…) E quanto mais eles praticam a religião, qualquer que seja ela, mais eles são criacionistas”. E a pesquisa do professor Antonio Carlos Marques: “… adquiriu o hábito de ler as dedicatórias das teses produzidas no local — e encontrou até citações do Gênesis: ‘Como é que um cientista em formação, que por princípio não deve ter dogmas, pode expressar sua crença em um documento científico formal?’.”

Entretanto, ousamos dizer que, longe de causar estranheza, na verdade, há uma íntima relação entre o desenvolvimento científico e as convicções internas dos indivíduos, pois não há pesquisa, nem ensino completamente neutros, inobstante os esforços sérios realizados por instituições e pessoas espalhados no mundo[3]. Ocorre que se, por imposição legal, o ensino público brasileiro é laico – o que, conforme já visto, é diferente de ser “antirreligioso” – a ciência está longe disso e não há direito positivo que possa alterar esta lei natural da ontologia humana.

Vejam que, após a desfragmentação completa da antiga civilização romana, a única instituição que subsistiu, com certa estabilidade entre feudos e burgos, foi a Igreja Católica, iniciando o período da história europeia quando todas os esforços intelectuais, por razões sinceras ou não, tinham um caráter religioso e, mais especificamente, de ordem cristã, como denunciava o lema dos Jesuítas, ad majorem gloriam Dei (AMDG).

Coincidentemente, nos anos que se seguiram foram construídos programas de estudos de artes liberais, como o trivium e o quadrivium; as escolas eram, normalmente, vinculadas às igrejas ou organizações religiosas; os principais professores e pesquisadores eram clérigos; são fundadas as primeiras universidades que se multiplicariam em velocidade exponencial; houve forte revisitação da filosofia clássica helênica; veem à tona as pesquisas do bispo Robert Grosseteste e Roger Bacon; desenvolvia-se a filosofia e teologia do Frade Tomás de Aquino.

Sobre isto, eis o que o Dr. Karl Heinz[4] respondeu ao ser perguntado se a ciência elimina ou corrobora a fé em Deus[5]: “Teólogos de Alexandria (séc. IV e V) enfatizaram: (a) a unidade racional do universo e sua criação do nada por Deus; (b) a inteligibilidade do universo para a mente humana; (c) a liberdade contingente do universo. Essa concepção alexandrina favoreceu tanto o entendimento e usufruto da obra de Cristo quanto o desenvolvimento e uso do método científico. Grosseteste e Roger Bacon, que eu considero os primeiros cientistas (no sentido de usarem o método experimental) tinham o mesmo entendimento dos alexandrinos. O teólogo T. F. Torrance argumenta que o mesmo valeu para outros cientistas, como por exemplo Maxwell. Nesse contexto, entendo que a ciência, como bom fruto da dedicação intelectual e prática desses cristãos, acaba corroborando sua fé.

Neste período, os pesquisadores cristãos ou imbuídos de conceitos e aspirações cristãs foram os responsáveis pelo desenvolvimento da ciência moderna por meio de métodos de observação e experimentação com o uso de instrumentos técnicos, cujo ápice foi a Renascença, no século XVI. Dezenas de nomes, da época medieval e em eras posteriores, poderiam ser citados para exemplificar este argumento, mas serão resumidos nos contributos de Isaac Newton, Johannes Kepler e Gregor Mendel.

Vejam o que respondeu novamente o Dr. Karl Heinz ao ser questionado se entre os fundadores da moderna ciência haveria muitos pesquisadores que eram cristãos convictos:

“Permita-me propor uma pequena reformulação na parte inicial da pergunta: não foram ‘muitos’ cristãos convictos entre os fundadores da ciência moderna; foram todos, com poucas possíveis exceções, das quais não lembro uma sequer…

A menção à fé de cristãos que atuaram como cientistas é omitida em sala de aula por um de dois motivos: (a) o professor não tem a mínima ideia de que aqueles cientistas foram cristãos; ou (b) o professor é da opinião de que a fé cristã daqueles cientistas não teve relação alguma com a ciência que praticavam, o que em muitos casos – talvez na maioria dos casos – está em total desacordo com o entendimento dos próprios cientistas. Nos casos de Kepler, Joule e Maxwell, para citar 3 nomes apenas, a motivação para fazer ciência estava intimamente ligada à sua fé cristã. Mas a fé cristã não tem impacto somente na motivação para se fazer ciência: o respeito à vida humana, à integridade física e emocional de pessoas envolvidas na pesquisa, preocupação com os animais e com o meio ambiente, etc. são preocupações normais p/ um cientista de fé cristã.

Um cientista bastante conhecido na Europa, que enfatizou a importância da fé cristã para que se pratique uma ciência que sirva à humanidade e não prejudique à natureza foi Max Thürkauf, químico que recebeu o prêmio Ruzicka de Química, em 1963.

Ocorre que, na medida em que a razão se enrobustecia e a filosofia conseguia alcançar respostas para os seus próprios problemas, desconsiderando a percepção de um Ser criador e predecessor, a Renascença chegava ao seu cume de autonomia como uma forte corrente avessa à fé, valorizando o antropocentrismo, o individualismo, o racionalismo exacerbado e o hedonismo, cujo eco continuou reverberando até cinco séculos depois com os movimentos políticos e culturais de índole totalitária e materialista.

Um dos primeiros efeitos históricos, entretanto, foi o epitomo da época moderna, qual seja, o Iluminismo (sec. XVIII) que, numa visão secularizada e anticleral do antigo renascentista, se caracterizou pelo ideal da auto-emancipação humana dos “preconceitos”, “superstições” e “tradições” do medievo, típicos de uma visão religiosa do mundo, em prol da “era da ciência”, tanto que concedeu o (injusto) apelido de “Idade das Trevas” à geração anterior.

Desde então, somando-se os contributos anticristãos de pensadores como Kant (1724-1804), Hegel (1770-1831), Kierkegaard (1813-1855), Karl Marx, (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud, (1856-1939), chegamos ao século XXI com a inverídica percepção de que a relação entre o cristianismo e a ciência sempre foi conflituosa, quando, na verdade, foi uma história de cooperação, inclusive na era pré-cristã.

Sobre este assunto, o Rev. Augustus Nicodemus[6] enumera obras recentes de cientistas e historiadores cristãos como Hooykaas, Russell, Kuyper e Pearcey, destacando que “a constatação de que várias culturas orientais da antiguidade – desde chineses até os árabes, passando pelos egípcios e sumérios – alcançaram um nível de conhecimento e de tecnologia muito superior ao alcançado no Ocidente cristianizado. Contudo, a ciência, como disciplina sistemática, nasceu no Ocidente, na Europa, à época dominada por uma visão cristianizada de mundo, em que pesem os abusos e erros da Igreja Romana”[7].

Após todo o exposto, confrontando histórica e sumariamente a (inexistente e apenas aparente) rivalidade entre fé e ciência promovida pelo autor do texto da Revista Galileu, é de se destacar um contributo da ciência contemporânea nomeada de Teoria do Design Inteligente (TDI)[8] que estuda “por meio de observação científica e seus métodos, os padrões de inteligência revelados através da complexidade irredutível, da informação e da antevidência, que produzem as evidências de uma inteligência organizadora”, inferindo que “não existem processos naturais não guiados conhecidos que, para a vida, poderiam ter formado seus sistemas de irredutível complexidade, nem a informação semântica e aperídica que governa a vida, como sugere a evolução darwiniana, e que a ciência assim só conhece uma causa para tal complexidade e informação: mentes inteligentes”[9].

Vemos, portanto, que estas duas esferas não só podem andar juntas, como, muitas vezes, especialmente na origem da ciência moderna, a fé foi pressuposto inarredável da produção intelectual e, ainda hoje em dia, há buscas científicas sérias e comprometidas que chegam à mesma conclusão: há um Ser criador de todas as coisas, que a teologia e filosofia denominam do Deus cristão.

Assim, desfeito mais um paradigma, na semana que vem traremos o último comentário desta série sobre os equívocos de uma reportagem da Revista Galileu que mostra o lugar comum (e equivocado) do pensamento contemporâneo irrefletido.

Até lá!

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Equipe de pareceristas do PAIEC

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[1] http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/05/criacionismo-ou-evolucao-papel-da-religiao-e-debatida-nas-escolas.html

[2] Este mesmo tema é alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, no Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ministro Roberto Barroso, ajuizada em agosto de 2010 pela então procuradora-geral em exercício, Deborah Duprat. Para mais detalhes sobre estes eventos, vide a notícia <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=293563>.

[3] Para mais detalhes acerca disso, acesse a palestra do Me. André Venâncio sobre “Os ídolos da Ciência”, no I Fórum Nordestino de Cosmovisão Cristão, promovido pelo Núcleo de Estudos em Cosmovisão Cristã: <https://www.youtube.com/watch?v=VsnHJJuaPJM>.

[4] Dr. Karl Heinz é engenheiro de eletrônica, graduado e pós-graduado (mestrado) pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Obteve seu doutorado em engenharia elétrica pela Escola Politécnica Federal de Zurique, na Suíça. Atualmente é professor no ITA. Sua área de especialidade chama-se Sistemas e Controle, a parte da engenharia diretamente relacionada à automação. É autor do blog Fé e Ciência, onde trata da relação entre estas duas realidades.

[5] Para ter acesso à entrevista completa, vide < http://tempora-mores.blogspot.pt/2012/09/fe-e-ciencia-entrevista-com-karl-heinz.html>.

[6] Foi Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde estimulou vários encontros entre “Ciência e Fé”. É atualmente pastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia, vice-presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e presidente da Junta de Educação Teológica da IPB.

[7] Para ler todo o comentário, acesse <http://tempora-mores.blogspot.pt/2006/03/sobre-guerra-entre-o-cristianismo-e.html>.

[8] Em maio de 2017, foi lançado o Discovery-Mackenzie, um núcleo de pesquisas sobre ciência, fé e sociedade hospedado na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) – http://portal.mackenzie.br/discoverymackenzie/ – e sobre isto teve até uma reportagem no “Domingo Espetacular”, que pode ser vista neste link: <https://www.youtube.com/watch?v=UG0TF27QHq4>.

[9] Para mais informações acerca do direito à produção científica livre de pressupostos naturalistas e antirreligiosos, vide a reportagem <http://www.anajure.org.br/entrevista-prof-marcos-eberlin-fala-sobre-a-teoria-do-design-inteligente-l-inscricoes-abertas-para-o-1o-congresso-brasileiro-do-di/>.

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SOBRE O PAIEC:

O Programa de Apoio a Instituições de Ensino Confessionais (PAIEC) é uma parceria entre a ANAJURE e a ACSI-Brasil (Associação Internacional de Escolas Cristãs), que serve à resolução de problemas jurídicos ligados ao bom exercício dos direitos constitucionais de liberdade religiosa, liberdade de expressão, liberdade acadêmica e confessionalidade. Para saber mais, clique aqui.

Os serviços disponibilizados são um suporte integral:

• Confecção ilimitada de pareceres jurídicos sobre qualquer necessidade ou orientação para a escola;
• Capacitações mensais dos profissionais (administrativo e pedagógico) e comunidade local;
• Advocacia, tanto em âmbito jurídico, quanto administrativo, como notificações de execuções fiscais, ações de danos morais, fiscalização do Ministério Público, etc; e
• Produção de relatórios de avaliações de desempenho, conforme os índices do Ministério da Educação, para subsidiar a política administrativa da escola.

Os investimentos fixados pelo PAIEC têm por princípio (1) a acessibilidade do serviço prestado a todos os parceiros, e (2) a média do valor das mensalidades da instituição educacional.

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