GAZETA DO POVO: Juristas evangélicos repudiam uso da religião para obter poder

Publicado originalmente na Gazeta do Povo (leia aqui)

“Os evangélicos, uma das principais bases de apoio político ao presidente Jair Bolsonaro, têm tido sua figura associada a várias pautas do governo consideradas conservadoras. Segundo uma pesquisa recente do Datafolha, cristãos protestantes tendem a avaliar de forma mais positiva a atual gestão.

No entanto, parte desse grupo religioso, mais recentemente, tem visto a necessidade de vir a público manifestar oposição à forma como determinadas instituições e líderes têm compactuado com ações contrárias ao que consideram ser princípios fundamentais do cristianismo.

É o que fez, em carta aberta lançada nesta sexta-feira (8), a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) em conjunto com importantes organizações e igrejas históricas. No documento, a associação chama a atenção do poder público, das instituições e da sociedade em geral para o que considera a atuação mais fiel à cosmovisão cristã na esfera pública.”

Junto a outras 27 organizações religiosas que subscrevem o documento, a Anajure também se manifesta em defesa do Estado Democrático de Direito. Leia o documento na íntegra aqui.

A Anajure entende pela necessidade premente de que as igrejas e organizações religiosas no geral, bem como os seus membros individualmente, desempenhem a sua vocação na esfera pública, com coragem, retidão e integridade”, diz o texto.

Troca de benefícios

O posicionamento da associação é motivado, entre outras coisas, por episódios nos quais figuras religiosas e instituições evangélicas estariam supostamente envolvidas em alianças político-partidárias em troca de benefícios. Essas coligações estariam deturpando o propósito da atuação evangélica na sociedade.

Seria inadmissível que uma igreja, lembra a Anajure, se aproveitasse da proximidade com o presidente Jair Bolsonaro ou outras pessoas do governo para tentar conseguir vantagens como o não pagamento de tributos. Há boatos de que instituições, como a Igreja Internacional da Graça de Deus, com R$ 144 milhões em dívida previdenciária, teria pedido ajuda ao governo para receber o perdão das dívidas – informação não confirmada pelo Planalto. Outras 36 instituições com atividade econômica principal definida como “atividades de organizações religiosas”, com débitos superiores a R$ 1 milhão, principalmente com a Previdência Social ou em dívidas trabalhistas, estariam interessadas na mesma “ajuda”.

“Nós entendemos qual é o nosso papel na esfera pública, e não é o de se apoderar do governo ou torná-lo refém de nossos próprios interesses. Existem, sim, infelizmente, grupos neopentecostais que se aproximam do governo como uma espécie de sanguessugas do poder”, afirma Uziel Santana, presidente da Anajure. “Somos veementemente contra esse tipo de aparelhamento, contra aliança que tem como única finalidade a troca de encômios e benesses. O governo deve estar livre de amarras que não visam ao bem comum.”

Para o presidente da Anajure, instituições não deveriam se deixar servir de curral eleitoral. “Nosso compromisso não deve ser com pessoas, mas com a Verdade”, afirma. “Nossa lealdade deve ser com valores e princípios, e a Verdade é o nosso princípio basilar. Acreditamos que ‘Jesus é o Caminho, a Verdade, a Vida’, com maiúsculas nessas palavras. Se um cristão tiver que denunciar autoridade pública, por exemplo, porque tomei conhecimento de que ele fez algo que é corrupto, é imprescindível fazer isso e não se omitir”

“Inclusive, do ponto de vista religioso, é uma atividade profética da igreja denunciar o que é errado. Profetas, em tempos bíblicos, denunciavam, eram retaliados, morriam, mas não perderam a coragem de denunciar o pecado”.

“O pedido para que o Estado subsidie suas dívidas é escandaloso, ainda mais quando sabemos que há igrejas que funcionam como grandes negócios”, afirma o teólogo, jornalista e fundador da ONG Rio de Paz, Antonio Carlos Costa.”

“Primeiramente, o fato de a dívida existir já desmoraliza a igreja. E o fato de ela cobrar do poder público que seja dispensado a si um tratamento que não é dispensado a outras instituições, é vergonhoso. Principalmente agora, a igreja deveria estar na vanguarda do apoio às instituições públicas para amparar milhões de brasileiros em dificuldade”.

Venezuela “a la derecha”

Os juristas evangélicos da Anajure também entendem que algumas das pautas defendidas durante as manifestações no último 19 de abril – o fechamento do Congresso Nacional, do STF, a intervenção militar e a reedição do AI-5 – tentam promover uma violação ao Estado Democrático de Direito.”

“A livre manifestação do pensamento é defensável, pessoas podem ter opiniões, com toda certeza. Mas não compactuamos com esse grupo, minoritário, que busca intervenção militar desnecessária, sendo que os poderes estão funcionando”, afirma Uziel.

“Vivemos em um Estado Democrático de Direito e a reforma protestante foi uma das bases para a formação do mesmo e das chamadas liberdades civis fundamentais. Nós compreendemos que movimentos dessa natureza são autoritários e não devem prosperar. Não queremos uma Venezuela a la derecha. Por isso, referendamos a Nota do Ministério da Defesa que se contrapõe a tais iniciativas.”

“Dai a César o que é de César…”

As igrejas, em geral, pregam o mandamento bíblico do “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Na prática, isso significa que existe liberdade entre os fiéis sobre os assuntos chamados “temporais”, desde que alguns preceitos fundamentais sejam respeitados: o direito à vida, à liberdade de expressão, à liberdade religiosa, etc.

Além disso, como as igrejas evangélicas não mantêm um corpo unânime doutrinal – podem defender ideias diferentes fundamentadas em mesmas passagens bíblicas, de acordo com a visão da instituição e até com o pastor -, é possível encontrar evangélicos conservadores, progressistas, que não concordam com os seus irmãos na fé sobre muitos assuntos da esfera civil.

“Por exemplo, no documento da Anajure, se vê muita ênfase do Estado como aquele que coíbe o avanço do mal agindo coercitivamente. Mas também é possível, a partir da cosmovisão cristã, pensar em um Estado que fomente justiças sociais para diminuir a prática do crime”, explica Costa. “Esse debate está presente dentro da igreja, há pessoas com perspectivas neoliberais e outras que são marxistas e aguardam a revolução do proletariado.”

Mesmo assim, o teólogo entende ser inegociável o posicionamento favorável de um evangélico em situações in extremis. “O apartheid, o nazismo, o fascismo, o fechamento de Congresso Nacional, a tortura, a escravidão. Se a igreja não se posicionar como instituição contra essas gravíssimas violações dos próprios princípios bíblicos, perde totalmente sua credibilidade”, afirma.

“Mas a igreja como ‘indivíduo’ é livre para se filiar a partido político, para lutar pela implementação da política pública que ele julga mais oportuna”, defende Costa.

Para o teólogo, o fato de Bolsonaro – católico, mas batizado por um pastor no rio Jordão, em Israel, em 2016, e frequentador de igrejas neopentecostais da qual sua esposa, Michelle Bolsonaro, participa – estar presente em uma manifestação em que algumas pessoas pedem a reedição do AI-5, mesmo sem falar nada sobre o tema, já é ir “na contramão do que o cristianismo apregoa”.

“Soma-se a isso o seu comportamento descortês, o fato de que ele não procurou, por exemplo, a deputada Maria do Rosário para pedir perdão por insinuar que não a estupraria. É da natureza do cristianismo ser misericordioso, um encontro com Cristo te faz restituir ao próximo aquilo que dele você roubou.”

“Conheço muitos cristãos que estão profundamente incomodados por verem sua fé associada a algo tão obscurantista, tão distante dos ideias do cristianismo. As instituições já deveriam ter se posicionado com clareza, deixando claro que elas não fazem parte do apoio efusivo, acrítico e institucional que igrejas têm dado a essas questões”, conclui.

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