O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a matéria exibida pelo Fantástico acerca das comunidades terapêuticas.
No último domingo (19), o Fantástico, programa da Rede Globo, apresentou uma matéria relacionada ao trabalho desenvolvido pelas comunidades terapêuticas[1]. De modo geral, a matéria associa as referidas comunidades ao recebimento de milhões do Poder Público e à aplicação de procedimentos inadequados aos dependentes químicos que acolhem. Ao longo da matéria, a equipe exibe uma série de filmagens feitas em algumas comunidades terapêuticas brasileiras a fim de denunciar a ocorrência de maus tratos psicológicos, humilhações, negligência na ministração de medicações. Os exemplos extraídos das denúncias são utilizados como base para uma crítica geral ao trabalho das comunidades terapêuticas.
A princípio, destaca-se que as comunidades terapêuticas são reguladas pela Lei n. 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, nos termos das alterações introduzidas pela Lei n. 13.840/2019. Nos termos da lei, as referidas entidades devem realizar um acolhimento do usuário ou dependente de drogas que se caracterize por: a) oferta de projetos terapêuticos que visam à abstinência; b) adesão e permanência voluntária, formalizadas por escrito, e voltadas à reinserção social e econômica; c) ambiente residencial, propício à formação de vínculos, à realização de atividades educativas, à promoção do desenvolvimento pessoal e do acolhimento do indivíduo; d) avaliação médica prévia; e) elaboração de plano individual de atendimento; f) vedação de isolamento físico do indivíduo (art. 26-A). Pessoas que se encontrem com comprometimentos biológicos e psicológicos graves e que necessitem de atenção médico-hospitalar contínua ou de emergência devem ser encaminhadas à rede de saúde (art. 26-A, § 1º).
Nesse sentido, o primeiro ponto a se ressaltar por meio da presente manifestação diz respeito à necessidade de observância dos parâmetros estabelecidos pela lei, de forma que a dignidade humana dos dependentes químicos acolhidos nessas instituições seja rigorosamente protegida, evitando que novos sofrimentos sejam infligidos a pessoas que já se encontram em situação de vulnerabilidade. Em caso de abusos, é imprescindível que o poder público busque apurar o ocorrido e punir os responsáveis.
Em segundo lugar, é necessário salientar que a denúncia de irregularidades no âmbito de algumas comunidades terapêuticas não deve ser utilizada como um elemento para macular a atividade de todas as demais instituições situadas no Brasil. Uma postura que generaliza tem o potencial de trazer sérios prejuízos para inúmeras pessoas que, atualmente, encontraram acolhimento adequado em comunidades terapêuticas e têm recebido auxílio para enfrentar dificuldades decorrentes da dependência química. Considerando que tais entidades não possuem fins lucrativos, é comum que muitas delas se mantenham por meio de doações, as quais podem ser impactadas pela propagação de informações que maculam, de forma generalizada, o seu trabalho.
Além desses pontos, importa ressaltar que a matéria exibida não fez apenas uma série de denúncias sobre irregularidades em comunidades terapêuticas específicas, mas construiu uma crítica ao próprio modelo das comunidades. Diante disso, seria razoável que houvesse algum espaço, ao longo da matéria, para a apresentação de argumentos favoráveis ao trabalho de comunidades terapêuticas que têm desenvolvido atividades condizentes com os ditames legais e com os cuidados adequados ao acolhimento de pessoas em situação de dependência química. Todavia, não foi o que ocorreu.
Nesse sentido, é de grande valia mencionar que, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA realizado em 2016[2], há cerca de 1.963 comunidades terapêuticas no Brasil, as quais disponibilizam 83.530 vagas para pessoas que lidam com a dependência química. Os referidos números ajudam a dar uma noção do impacto que a matéria pode ter para diversas instituições em funcionamento e também para as pessoas acolhidas nelas.
Outro aspecto que demanda menção se relaciona às críticas feitas ao longo da matéria quanto à associação do trabalho das comunidades terapêuticas a perspectivas religiosas. Por um lado, é imprescindível que a liberdade religiosa de todo indivíduo seja assegurada, o que significa, dentre outros aspectos, protegê-lo de ingerências em suas escolhas religiosas. Por outro lado, não é decorrência da liberdade religiosa menosprezar a contribuição da religiosidade para pessoas em sofrimento por questões de dependência química e/ou de saúde mental.
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou, recentemente, um documento no qual aborda a contribuição de líderes, comunidades e organizações religiosos em situações de emergências de saúde, considerando experiências vividas na pandemia da Covid-19. Nesse sentido, a OMS afirmou que:
Os desafios impostos pela pandemia global da Covid-19 exigem uma resposta holística e integrada em toda a sociedade, líderes religiosos, organizações baseadas na fé e comunidades religiosas. Ao longo da história, líderes religiosos, organizações baseadas na fé e comunidades religiosas exerceram um papel chave em emergências de saúde, fornecendo serviços médicos de primeira linha e assistência humanitária, bem como comunicando informações úteis e promovendo “health-saving practices”, prevenindo e reduzindo o medo e estigmas, e tranquilizando as pessoas em suas comunidades[3].
Em outro trecho, a OMS listou uma série de papéis e responsabilidades dos líderes, comunidades e organizações religiosas, citando, dentre elas, o fornecimento de “informações claras sobre como fortalecer a saúde mental e espiritual, o bem estar e a resiliência, por meio do contato individual e em ambientes comunitários, de maneira segura, de acordo com os conselhos e regulamentos da OMS e do governo nacional”[4].
O que se percebe é que, dentre diversos fatores relevantes, a religiosidade pode ser um elemento a contribuir para a saúde do indivíduo quando se parte do pressuposto que o bem-estar humano demanda uma abordagem holística que observe questões biológicas, mentais e espirituais.
A isso, acrescente-se, ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro não inviabiliza a interação entre Estado e instituições que adotem uma visão religiosa. A laicidade proíbe a subvenção de cultos religiosos ou igrejas, mas ressalva, conforme dispõe o texto constitucional, a colaboração de interesse público (art. 19, inciso I, CRFB/1988). Entender ou sugerir que o Estado não poderia firmar colaboração de interesse público com instituições que contribuem para a sociedade por meio do acolhimento de pessoas em situação de dependência química se aproxima mais do laicismo – isto é, a hostilidade diante de qualquer manifestação religiosa – do que da laicidade estatal.
Diante dos pontos abordados na presente Nota, a ANAJURE sustenta que abordagens relacionadas às comunidades terapêuticas demandam ponderações também no sentido das contribuições que essas instituições geram para a sociedade, algo que acabou ficando ausente na matéria exibida pelo Fantástico, especialmente nos momentos em que a matéria se referiu não a denúncias específicas, mas, de modo geral, ao modelo das comunidades terapêuticas. Essa parcialidade, além de poder implicar em prejuízos para essas instituições e para as pessoas acolhidas nela, acaba se distanciando da pluralidade que deve estar presente na abordagem jornalística.
Pelo exposto, a ANAJURE:
1) Reafirma o seu apoio às comunidades terapêuticas que atuam em conformidade com os ditames legais e com o respeito à dignidade humana das pessoas acolhidas nessas instituições;
2) Ressalta a necessidade de que o poder público fiscalize, investigue e puna eventuais abusos que impactem pessoas atendidas por comunidades terapêuticas;
3) Repudia a parcialidade que permeou a matéria exibida pelo Fantástico, que concedeu amplo espaço para críticas ao modelo das comunidades terapêuticas, mas não abriu espaço equivalente para manifestações favoráveis ao trabalho dessas comunidades.
Brasília-DF, 23 de junho de 2022.
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2022/06/19/comunidades-terapeuticas-recebem-milhoes-do-poder-publico-para-acolher-dependentes-mas-submetem-internos-a-castigos.ghtml
[2] https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/20170418_nt21.pdf
[3] https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1387288/retrieve
[4] https://apps.who.int/iris/rest/bitstreams/1387288/retrieve