O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota, relativa à Medida Provisória n. 966/2020, que regulamenta a responsabilização dos agentes públicos no contexto da pandemia do coronavírus.
I – Introdução
Foi publicada no Diário Oficial da União, em 14 de maio de 2020, a Medida Provisória n. 966/2020, a qual “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19”.
A Medida Provisória estabelece que a responsabilização dos agentes públicos, no enfrentamento da emergência de saúde pública e dos efeitos econômicos e sociais resultantes da pandemia do coronavírus, apenas ocorrerá quando os atos danosos praticados estejam fundados em dolo ou erro grosseiro.
Vejamos o texto da MP 966/2020:
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei:
Art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:
I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e
II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19.
§ 1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará:
I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou
II – se houver conluio entre os agentes.
§ 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.
Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados:
I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público;
II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público;
III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência;
IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e
V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas.
Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 13 de maio de 2020; 199º da Independência e 132º da República.
Passemos à análise jurídica do texto acima.
II – Responsabilização de agentes públicos no ordenamento jurídico brasileiro
Nas disposições referentes à Administração Pública, a Constituição Federal de 1988, fixa, no art. 37, § 6º, as diretrizes para a responsabilização do Estado e de seus agentes:
Art. 37. (…) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Desse dispositivo, a doutrina do Direito Administrativo extrai a aplicação de responsabilidade civil objetiva para o Estado e de responsabilidade civil subjetiva para os agentes públicos.
Sobre a responsabilidade objetiva, José dos Santos Carvalho Filho preleciona que esta enseja “o dever de indenizar o lesado pelos danos que lhe foram causados sem que se faça necessária a investigação sobre se a conduta administrativa foi, ou não, conduzida pelo elemento culpa”[1]. Ou seja, em tais casos, basta a comprovação da ocorrência do fato administrativo, do dano e do nexo causal.
A situação é distinta no tocante ao agente público. Quanto a este, vigora a responsabilidade subjetiva, da qual decorre a necessidade de se aferir, no comportamento do indivíduo, a existência de dolo ou culpa. Assim, à comprovação do fato, do dano e do nexo, acrescenta-se o elemento subjetivo. A culpa resta configurada quando presentes os elementos da imprudência, imperícia ou negligência.
Nesse mesmo sentido, a Lei n. 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos, estabelece que “a responsabilidade civil decorre de ato omissivo ou comissivo, doloso ou culposo, que resulte em prejuízo ao erário ou a terceiros” (art. 122). A referida lei ainda fixa que o servidor responde pelo exercício irregular de suas atribuições civil, penal e administrativamente, sendo possível que as sanções de cada âmbito se cumulem (art. 121 c/c art. 125).
Percebemos, portanto, que a tendência do nosso ordenamento jurídico, como regra, é a atribuição aos agentes públicos de responsabilidade civil subjetiva. A Medida Provisória n. 966/2020, no entanto, vai na contramão disso, pois exclui da esfera de responsabilidade os atos praticados pelos agentes de forma culposa, punindo apenas casos de dolo ou de erro grosseiro. Sabendo que a Constituição estabelece, expressamente, a responsabilização em hipótese de culpa, temos, por decorrência, a configuração de inconstitucionalidade.
Nos termos da MP, o erro grosseiro se consubstancia quando manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia (art. 2º, MP 966/2020). Embora, intente definir o que seria “erro grosseiro”, o texto se utiliza de termos dotados de alta carga de subjetividade, tornando difícil, por exemplo, estipular a partir de que momento uma conduta ultrapassaria a culpa comum e se configuraria como “culpa grave”.
A ideia que parece permear a Medida é a de que o contexto de pandemia deve gerar uma suavização na aplicação de sanções às irregularidades praticadas no âmbito da Administração Pública. Isso ocorre em um contexto em que a ação do Estado é crucial para a manutenção de vidas, que necessitam, por exemplo, de respiradores, de leitos de UTIs, de hospitais de campanha e de profissionais bem equipados para o atendimento das urgências causadas pelo coronavírus. Depreendemos, consequentemente, que a conjuntura enfrentada exige, na verdade, maior rigor na fiscalização da destinação e do emprego das verbas públicas. É necessária a adoção de estado de alerta, por parte das autoridades públicas, no trato com a máquina pública, o que não se coaduna com disposições normativas tendentes a mitigar a responsabilização dos agentes públicos.
A Medida Provisória n. 966/2020 ainda elenca uma série de componentes que devem nortear a aferição da ocorrência de erro grosseiro, tais como os obstáculos reais do agente público; a complexidade da matéria; a circunstância de incompletude de informações; o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas em meio à pandemia, dentre outras. A consideração desses elementos não é desarrazoada, sendo possível que sejam utilizados para se fixar a extensão da responsabilização. Não é razoável, contudo, excluir, de plano, agentes públicos da responsabilização civil quando existente culpa evidenciada por negligência, imprudência ou imperícia.
Entendemos, portanto, que a Medida Provisória sob análise padece de inconstitucionalidade e representa um retrocesso no combate à corrupção, ganhando contornos ainda mais gravosos quando considerado o contexto de emergência em saúde pública, o qual demanda, impreterivelmente, a boa gestão dos recursos públicos.
III – Diretrizes internacionais sobre transparência, boa-governança e responsabilização de agentes públicos no contexto da pandemia do coronavírus
Nesse sentido, vale salientar as diretrizes recomendadas pelas organizações internacionais concernentes às ações dos agentes públicos no contexto da pandemia. Corroborando o que temos exposto, a ONU tem aconselhado que, mais do que nunca, os governos devem se portar de forma transparente e responsável[2].
A OCDE, de modo semelhante, tem analisado os princípios desafios à integridade pública e recomendado a adoção de medidas que os governos podem adotar para garantir uma resposta eficaz ante a crise do coronavírus. Um dos pontos destacados pela OCDE é a necessidade de que os agentes públicos prestem contas de suas ações. Mesmo que algumas espécies de controle tenham sido relaxadas para atender necessidades imediatas, a organização entende que é preciso fortalecer a responsabilidade individual e comunicar a todos os agentes a necessidade de vigilância permanente dos fundos públicos[3].
Na mesma linha, a OEA tem defendido que é primordial assegurar a existência de mecanismos de prestação de contas e acesso à justiça diante de possíveis violações, no contexto da pandemia, incluindo abusos por parte de atores privados e atos de corrupção ou em detrimento dos direitos humanos[4].
Nota-se, portanto, que a pandemia do coronavírus traz novos desafios referentes à transparência e à administração dos recursos públicos, predominando nas organizações mundo afora o entendimento de que, neste contexto, é necessário fortalecer os mecanismos de monitoramento de gastos e de responsabilização em casos de irregularidades – e não suavizá-los.
IV – Conclusão
Ex Positis, a ANAJURE entende que:
A) A Medida Provisória n. 966/2020 colide frontalmente com as disposições da Carta Magna, ao descartar a culpa como elemento gerador de responsabilização civil do agente público, padecendo de inconstitucionalidade;
B) O texto proposto pela MP representa um grave retrocesso no paradigma atual de compliance, combate à corrupção, boa governança, especialmente no contexto da Pandemia da COVID-19, onde se tem noticiado abusos, ilegalidades e atos de corrupção por parte de alguns gestores públicos;
C) Nos termos das diretrizes traçadas pelos organismos internacionais, em especial a OCDE, que o Governo Brasileiro intenta tomar parte, como símbolo do seu progresso e desenvolvimento institucional, o contexto da pandemia exige o fortalecimento dos mecanismos de transparência e de boa governança, bem como dos instrumentos legais de responsabilização dos agentes públicos.
A ANAJURE informa que a presente Nota será encaminhada ao Presidente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Brasília-DF, 14 de maio de 2020.
Dr. Uziel Santana
Presidente da ANAJURE
Dr. Felipe Augusto Carvalho
Diretor Executivo da ANAJURE
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[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. P. 583.
[2] https://www.un.org/en/un-coronavirus-communications-team/we-are-all-together-human-rights-and-covid-19-response-and
[3] https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=130_130879-b0e4qqfq56&title=Integridad-publica-para-una-respuesta-y-recuperacion-efectivas-ante-el-COVID-19
[4] http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf