O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE –, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a situação da liberdade religiosa na Nicarágua.
I – Violações à liberdade religiosa na Nicarágua
Desde 2018, as tensões entre a Igreja Católica e o governo nicaraguense se elevaram, como resultado do acolhimento oferecido em templos católicos a manifestantes que foram feridos durante a realização de protestos contrários ao regime do Presidente Daniel Ortega[1].
A partir disso, a Igreja Católica passou a enfrentar violações diversas, como ataques e profanações a templos, expulsão de missionários, prisão de membros do clero e o exílio de padres, bispos e seminaristas[2].
As violações também alcançaram o âmbito das comunicações. Em 2021, o governo fechou o canal de televisão da Conferência Episcopal da Nicarágua e em agosto de 2022 determinou o encerramento das atividades de cinco emissoras de rádio vinculadas à Igreja Católica[3].
Uma estimativa da organização de direitos humanos ‘Nicarágua Nunca Más’ aponta que mais de 50 líderes religiosos deixaram o país desde os protestos que eclodiram em 2018. Além desses, 222 presos políticos, dentre eles religiosos, que se encontravam detidos foram expulsos compulsoriamente para os Estados Unidos no início de fevereiro de 2023. A situação também tem impactado evangélicos, que tiveram cerca de 50 igrejas fechadas nos últimos anos[4]. As estratégias de intimidação levadas a efeito nos últimos tempos ainda envolveram o monitoramento de missas por policiais disfarçados de civis e o interrogatório de fiéis sobre o teor das pregações[5].
Em virtude de medidas como essas e de outras graves violações, como execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, torturas e restrições à liberdade de expressão e de crença, um relatório da Human Rights Watch, após monitoramento feito desde 2018, concluiu que o governo nicaraguense cometeu crimes contra a humanidade[6].
Nos últimos dias, novas violações ocorreram. Em fevereiro deste ano, o governo Ortega proibiu as procissões públicas do Caminho da Cruz, de modo que os rituais realizados durante a Quaresma e a Semana Santa deverão ser feitos nas igrejas, e não em áreas públicas[7].
Nesta semana, no dia 07, o governo estabeleceu o fechamento de duas universidades ligadas à Igreja Católica, sob alegação de descumprimento da lei. No dia anterior, o governo havia determinado o fechamento dos principais sindicatos do país. Outras entidades confessionais também tiveram o seu funcionamento interrompido, como a Caritas Nicarágua e a Caritas Diocesana de Jinotega, ambas ligadas à Igreja Católica. No caso delas, houve o anúncio de que havia ocorrido uma “dissolução voluntária”[8].
Em meio a esse cenário, a ANAJURE aproveita para emitir a presente Nota Pública.
II – Proteção à liberdade religiosa
A liberdade religiosa é direito fundamental amplamente resguardado por diferentes textos normativos. Essa vasta proteção está relacionada à relação íntima entre espiritualidade e dignidade da pessoa humana, considerando o papel exercido pela religião ao conferir norte, significado e identidade aos seus adeptos. Compreendendo isso, o art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, da ONU, dispõe que:
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.
De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 (PIDCP), ao qual a Nicarágua manifestou adesão em 12 de março de 1980[9], estabelece, em seu art. 18, item 1:
Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica/1969, ratificado pela Nicarágua[10], preceitua nos seguintes termos:
Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado (grifo nosso).
Cabe pontuar que a liberdade religiosa tem um aspecto interno (forum internum) e um aspecto externo (forum externum). Aquele diz respeito à liberdade que o indivíduo tem de aderir ou mudar de religião. Esse processo de formação de convicções está ligado ao forum internum do indivíduo, ou seja, sua esfera íntima de existência. Igualmente importante o aspecto externo desse direito, que diz respeito à manifestação da religião. De fato, qualquer convicção profundamente assentada levará inevitavelmente a manifestações práticas de várias maneiras, que foram resumidas pela DUDH na forma de “ensino, prática, culto e observância”.
Os relatos referentes à situação na Nicarágua evidenciam múltiplas afrontas ao exercício da liberdade religiosa. A própria adesão a uma fé é limitada por condutas intimidatórias de agentes do governo. Nesse cenário, o exercício de um aspecto básico da liberdade religiosa, como o proselitismo, é inviabilizado, uma vez que nem mesmo nos templos religiosos os ministros têm encontrado liberdade para pregar conforme suas convicções.
A restrição à manifestação da fé também tem ocorrido mediante o fechamento de veículos de comunicação de natureza confessional, contrariando a possibilidade de ensino e propagação da própria crença. A proibição de realização de procissões é igualmente nociva, visto que mina a publicização de convicções religiosas. Nesse sentido, o Comentário Geral n. 22 do Comitê de Direitos Humanos da ONU[11], interpretando o art. 18 do PIDCP, explica que “o conceito de culto se estende aos atos rituais e cerimoniais com os quais se manifestam diretamente as crenças”, bem como “a prática e o ensino da religião ou das crenças incluem atos que são parte integrante da forma como os grupos religiosos levam a cabo suas atividades fundamentais”.
A inadequação das restrições relatadas pode ser identificada, ainda, à luz da própria Constituição da Nicarágua de 2021[12], cujo artigo 69 traz a seguinte previsão:
Artigo 69.º Todas as pessoas, individual ou coletivamente, têm o direito de manifestar as suas crenças religiosas em privado ou em público, através do culto, da prática e do ensino.
Ninguém pode furtar-se à observância das leis, nem impedir outros de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres, invocando convicções ou disposições religiosas. (Grifo nosso).
As detenções e os exílios, por sua vez, violam não apenas a liberdade religiosa como também outros direitos, a exemplo da liberdade de expressão e do direito de ir e vir. Com isso, há um choque com o que se pretendeu ao consagrar a liberdade religiosa no art. 18 do PIDCP, visto que o referido dispositivo, conforme explicitado pelo Comentário Geral n. 22, “proíbe medidas coercitivas que possam prejudicar o direito de ter ou adotar uma religião ou crença, incluindo o uso ou ameaça de força ou sanções penais (…)”[13]. Mais uma vez, há nova violação ao texto constitucional nicaraguense, visto que o art. 29 da referida norma prevê a proibição de medidas coercitivas que possam prejudicar o exercício da liberdade religiosa:[14].
Artigo 29.º Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência, de pensamento e de professar ou não uma religião. Ninguém pode ser sujeito a medidas coercivas que prejudiquem esses direitos ou ser forçado a declarar o seu credo, ideologia ou crença. (Grifo nosso).
A perseguição instalada também é incompatível com o disposto no art. 27 da Constituição de Nicarágua, no qual se consagra o princípio da igualdade entre os cidadãos, vetando-se qualquer discriminação:[15]
Artigo 27 Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção. Não haverá discriminação por motivo de nascimento, nacionalidade, credo político, raça, sexo, idioma, religião, opinião, origem, posição econômica ou condição social.
Os estrangeiros têm os mesmos deveres e direitos que os nicaraguenses, exceto os direitos políticos e os estabelecidos na lei; eles não podem intervir nos assuntos políticos do país.
O Estado respeita e garante os direitos reconhecidos nesta Constituição a todas as pessoas que se encontrem em seu território e estejam sujeitas à sua jurisdição. (Grifo nosso).
De modo geral, a postura adotada pelo governo nicaraguense contraria não somente as normas já citadas, mas o compromisso assumido pelo país em âmbito internacional a partir da ratificação de diferentes diplomas que resguardam a proteção à liberdade religiosa, como a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados[16] (art. 4); a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (artigo 5, VI)[17]; a Convenção sobre os Direitos das Crianças[18] (art. 14); e a Convenção para Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes[19] (art. 12).
Em meio a essas diversas afrontas ao exercício de direitos fundamentais, urge que entidades da sociedade civil e de outras nações busquem se engajar com a proteção de garantias básicas dos nicaraguenses.
III – Conclusão
Assim, pelo exposto, a ANAJURE (1) comunica que enviará a presente Nota à Embaixada brasileira na Nicarágua, ao Ministério das Relações Exteriores, ao Presidente da República Federativa do Brasil e à Embaixada nicaraguense no Brasil solicitando a adoção de medidas para a proteção da liberdade religiosa de cidadãos do país, especialmente aqueles que eventualmente se desloquem para o Brasil em busca de refúgio; (2) informa que acompanhará o caso nas instâncias internacionais competentes.
Brasília-DF, 13 de março de 2023
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
Dr. Mário Freitas Júnior
Diretor Jurídico da ANAJURE
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[1] https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/nicaragua-fecha-duas-universidades-ligadas-a-igreja-catolica.ghtml
[2] https://aleteia.org/2023/03/03/ortega-bans-lenten-and-easter-processions-in-nicaragua/
[3] https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/nicaragua-fecha-duas-universidades-ligadas-a-igreja-catolica.ghtml
[4] https://english.elpais.com/international/2023-03-09/fear-and-anxiety-follow-nicaraguan-faith-leaders-into-exile.html
[5] https://english.elpais.com/international/2023-03-09/fear-and-anxiety-follow-nicaraguan-faith-leaders-into-exile.html
[6]https://valor.globo.com/mundo/noticia/2023/03/09/governo-da-nicaragua-cometeu-crimes-contra-a-humanidade-diz-hrw.ghtml
[7] https://www.vaticannews.va/en/church/news/2023-02/nicaragua-ortega-bans-easter-processions-and-attacks-bishops.html
[8] https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/03/nicaragua-fecha-duas-universidades-ligadas-a-igreja-catolica.ghtml
[9] https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?chapter=4&clang=_en&mtdsg_no=IV-4&src=IND
[10] https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm
[11] https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CCPR%2FC%2F21%2FRev.1%2FAdd.4&Lang=en
[12] http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.nsf/09cf45d6fc893868062572650059911e/94bccaa76eb625bd062588e90054d69d?OpenDocument
[13] https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CCPR%2FC%2F21%2FRev.1%2FAdd.4&Lang=en
[14] http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.nsf/09cf45d6fc893868062572650059911e/94bccaa76eb625bd062588e90054d69d?OpenDocument
[15] http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.nsf/09cf45d6fc893868062572650059911e/94bccaa76eb625bd062588e90054d69d?OpenDocument
[16] https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/convention-relating-status-refugees
[17] https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/international-convention-elimination-all-forms-racial
[18] https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/convention-rights-child
[19] https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/international-convention-protection-rights-all-migrant-workers