O relacionamento do cristão com a cultura

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1. O conceito de cultura

Etimologicamente, a palavra provém do latim colere, que significa cultivar. Ela também deriva de agricultura, a atividade de preparar a terra para torná-la melhor do que era a princípio – arando, adubando e cultivando (SWEET, Leornard (org.). A igreja na cultura emergente, p.12). Em uma abordagem mais ampla, como nos lembra D. A. Carson, a definição pioneira mais importante, oriunda dos campos da história intelectual e da antropologia, talvez seja a de A. L. Kroeber e C. Cluckhon:

 

“A cultura consiste em padrões, explícitos e implícitos, de comportamento adquirido e transmitido por símbolos, constituindo a realização distintiva de grupos humanos, inclusive sua expressão em artefatos; o núcleo essência da cultura consiste em ideias tradicionais (i.e.. derivadas e selecionadas ao longo da história) e, especialmente nos valores a elas associados; sistemas culturais podem ser considerados, de um lado, produtos de ação, de outro, elementos condicionados de ação posterior”. (p. 13)

Sem aprofundar muito na conceituação do que seja cultura, e para os fins do nosso diálogo, assim como Michael Horton, utilizarei o termo no seu sentido mais amplo, referindo-me tanto à cultura popular (esportes, política, música popular e diversões etc) como à alta cultura (a horticultura, a literatura, as artes e a ciência, a música clássica, a ópera, etc). Isto é, cultura é tudo aquilo produzido pela humanidade, seja no plano concreto ou no plano imaterial, desde artefatos e objetos até ideais e crenças. Cultura é todo complexo de conhecimentos e toda habilidade humana empregada socialmente.

2. Cristo e cultura: a tipologia quíntupla de H. Richard Niebuhr

Uma das abordagens mais completas acerca desta temática foi feita por H. Richard Niebuhr no clássico Cristo e Cultura, escrito em 1951 e considerado “um dos livros cristãos de maior influência do século passado”, e que ainda continua produzindo impacto no ambiente da teologia; prova disso é que os estudos de autores recentes utilizam-se do livro de Niebuhr como ponto de partida, a exemplo de Cristo & Cultura: uma releitura (D. A. Carson), O cristão e a cultura (Michael Horton) e A igreja na cultura emergente (organizado por Leonard Sweet).

Cristo e Cultura, como afirmara o próprio Niebuhr, é na verdade um ensaio, sobre “a constante luta que a Igreja enfrenta, em dois planos – com o seu Senhor e com a sociedade cultural (com que vive essencialmente associada)”, como parte do resultado de muitos anos de estudo, reflexão e magistério, que tem o propósito de apresentar respostas cristãs típicas ao problema e assim contribuir para a compreensão mútua dos várias do conflito. Neste extenso e profundo ensaio, então, ele aborda a relação entre Cristianismo e civilização, apresentando a sua estrutura tipológica composta de cinco modelos explicativos, não sem antes relembrar que esse problema não era novo, visto que a perplexidade cristã tem sido perene e que o problema tem atravessado os séculos. Ele também recorda que as repetidas lutas dos cristãos com este assunto não produziram uma resposta cristã única, exclusiva, mas apenas uma série de respostas típicas que, em seu conjunto, para a fé, representam fases da estratégia da Igreja militante no mundo.

De acordo com Niebuhr, cultura é, em primeiro lugar, o “ambiente artificial e secundário” que o homem sobrepõe ao natural. Ela abrange a linguagem, hábitos, ideias, crenças, costumes, organização social, artefatos herdados, processos técnicos e valores. Esta “herança social”, diz Niebuhr, esta “realidade sui generis”, que os escritores do Novo Testamento tinham sempre em mente quando falavam do “mundo”, que é representada em muitas formas, e a que os cristãos como os demais homens estão inevitavelmente sujeitos, é o que queremos significar quando falamos de cultura. (p.33)

Em segundo lugar, cultura é realização humana:

“Nós a distinguimos da natureza pelo fato de vermos nela evidências de esforço e propósitos humanos. Um rio é natureza, um canal é cultura; uma peça bruta de quartzo é natureza, uma flecha é cultura; um gemido é natural, uma palavra é cultura. Cultura é a obra de mentes e mãos humanas. É aquela porção de herança do homem em qualquer lugar ou tempo que nos foi legada intencional e laboriosamente por outros homens, e não o que nos tem vindo por intermédio de seres não humanos ou através de seres humanos que agiram sem intenção de resultados ou sem o controle do processo. Ela inclui, portanto, linguagem, educação, tradição, mito, ciência, arte, filosofia, governo, lei, rito, crença, invenções e tecnologia. Além do mais, se uma das marcas da cultura é o fato de ela ser o resultado de realizações humanas passadas, a outra está no fato de que ninguém pode se apoderar dela sem esforço e realização de sua própria parte. Os dons da natureza são recebidos como são comunicados, sem intenção ou esforço consciente do homem; mas os dons da cultura não podem ser possuídos sem o empenho da parte do receptor. A linguagem deve ser laboriosamente adquirida; o governo não pode ser mantido sem esforço constante; o método científico deve ser reencenado e reorientado em cada geração. Mesmo os resultados materiais da atividade cultural são inúteis, a não ser que sejam acompanhados de um processo de aprendizado que nos capacite a usá-los com propriedade. Quer tentemos interpretar os sinais da cultura antiga ou resolver os problemas da civilização contemporânea, esta feição característica sempre despertará a nossa atenção: estamos lidando com aquilo que o homem produziu intencionalmente e com aquilo que o homem pode ou deve fazer. O mundo, na medida em que é feito pelo homem e orientado pelo homem, é o mundo da cultura”.

Na sequencia Niebuhr apresenta, baseado na sua análise histórica, os possíveis tipos de relacionamento que os cristãos podem ter com a cultura: Cristo contra a cultura, Cristo da cultura, Cristo acima da cultura, Cristo e a cultura em paradoxo e Cristo, o transformador da cultura.

Vejamos cada um desses modelos:

a) Cristo contra a cultura:

Esse primeiro tipo de relacionamento com a cultura foi comum entre os primeiros cristãos. A igreja primitiva, conforme Niebuhr, era ensinada a obedecer a Cristo, amar aos seus irmãos e a rejeitar o mundo, a exemplo do que se vê na exortação da primeira epístola de João: “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele”. Por isso, os cristãos são ensinados a deixarem a sociedade secular, seu materialismo e concupiscência, a fim de se preocuparem com a cidadania celestial. Segundo Niebuhr o representante mais explicito do relacionamento do tipo Cristo-contra-cultura no Cristianismo dos primeiros tempos, à parte dos escritores do Novo Testamento, foi Tertuliano. Em sua oposição ao pensamento secular, Tertuliano perguntou: “O que tem Atenas a ver com Jerusalém?”.

Como podemos perceber, esse modelo é exclusivista e eminentemente contracultural, em que se traça uma nítida separação entre a fraternidade dos filhos de Deus e o mundo, isto é, a sociedade fora da igreja. Outros exemplos desse tipo de relacionamento incluem os anabatistas do século 16, os cristãos Quakers, amish, monastérios etc.

Apesar das críticas, Niebuhr diz que “estas fugas e rejeições cristãs das instituições da sociedade têm sido, na história, de grande importância, tanto para a Igreja como para a cultura. Elas têm mantido a distinção entre Cristo e César, entre revelação e razão, entre a vontade de Deus e a vontade do homem. Elas têm provocado reformas tanto na Igreja como no mundo, muito embora não fosse este o seu propósito. Eis porque homens e movimentos desta espécie são sempre celebrados pelo seu heróico papel na história de uma cultura que eles rejeitaram” (p. 90).

b) O Cristo da cultura:

Em oposição ao primeiro modelo o Cristo da cultura advoga a acomodação e aceitação pelos cristãos ao ambiente cultural vigente. Aqui, busca-se a harmonização entre Cristo e a cultura, de modo que “não há tensão entre Igreja e mundo, entre as leis sociais e o Evangelho, entre as operações da divina graça e o esforço humano, entre a ética da salvação e a ética da preservação ou progresso”. Historicamente, esse tipo de relacionamento foi advogado pelo gnosticismo – que insistia em interpretar o Cristianismo como uma religião e não como uma igreja (entendida como simples associação religiosa), e Jesus como mais um deus, e não o Senhor da Vida – e posteriormente pelo liberalismo teológico, propriamente chamado de Protestantismo Cultural.

Atualmente, o Cristianismo da cultura é visto na teologia da igreja pós-moderna/emergente, podendo-se citar o seguinte excerto do livro O Deus de Barack Obama, de Stephen Mansfild:

“… com relação à religião, a maioria dos jovens dos Estados Unidos tem uma postura pós-moderna, o que significa dizer que eles encaram a fé de um modo parecido ao jazz: informal, eclético e, muitas vezes, sem um tema específico. Basicamente, costumam rejeitar uma religião organizada, privilegiando uma mescla religiosa que funcione para eles. Para esses jovens, não há nada de mais em construir a própria fé juntando tradições de religiões totalmente diferentes, e muitos formam sua teologia da mesma maneira como pegam um resfriado: por meio de contatos casuais com estranhos.”

c) Cristo acima da cultura:

Esta categoria (Cristo acima da cultura) rejeita as posições extremas anteriores e busca uma situação de centralidade (a Igreja do centro, como afirma Niebuhr), que seria a majoritária na história da igreja. Cabe destacar que a classificação feita por Niebuhr é um tanto quanto confusa, pois desta terceira categoria procederá as duas últimas. Talvez ajude a pensar nos três últimos tipos como (3) Cristo acima da cultura: tipo sintetizador; (4) Cristo acima da cultura: tipo dualista; (5) Cristo acima da cultura: tipo conversionista/tranformacionista.
O tipo sintetizador busca uma solução “tanto isso quanto aquilo”, não sendo possível dizer “Cristo ou a cultura”, pois em ambos os casos estamos tratando com Deus”, diz Niebuhr.

Exemplos dessa categoria são Clemente de Alexandria e Tomás de Aquino. Niebuhr diz que “não apenas a Igreja mas também a cultura tem uma divida imensa para com os sinteticistas, por estas e outras contribuições. Na história da civilização ocidental a obra de Clemente, Tomás e seus seguidores e companheiros tem tido uma influência imensa. As artes e ciências, filosofia, lei, governo, educação e instituições econômicas têm sido profundamente afetados por ela. Os homens deste grupo têm sido mediadores da sabedoria grega e da lei romana para a cultura moderna”.

d) Cristo e cultura em paradoxo:

Essa posição afirma a “dupla cidadania”. Para os dualistas, a questão fundamental não é a linha que deve ser traçada para estabelecer separação entre os cristãos e o mundo pagão ou secular, mas entre Deus e toda a humanidade. Nesse caso, nenhuma esfera deverá reger a outra, e nem atacar a outra. São somente esferas distintas de atuação, com propósitos diferentes

Desse modo, lei, Estado, e outras instituições são “como freios e diques contra o pecado, impedidores da anarquia, e não como agências positivas através das quais os homens em união social prestam serviço aos próximos, avançando rumo à vida verdadeira. Além disto, para. os dualistas, tais instituições pertencem inteiramente ao mundo temporal e passageiro”.
Niebuhr afirma a presença do dualismo em Paulo, Marcião e Lutero.

e) Cristo, o transformador da cultura:

Temos aqui a categoria do tipo conversionista, em que a cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Niebuhr diz que “o efeito da teoria de cultura do conversionista sobre o seu pensamento acerca da criação é considerável. Ele descobre lugar para uma resposta ordenada e afirmativa da parte do homem criado à obra criativa e ordenadora de Deus, muito embora a criatura possa fazer de má vontade a sua obra, na medida em que carpa o solo, cultiva a sua mente e organiza a sua sociedade, e muito embora possa administrar perversamente a ordem que lhe foi dada com sua existência”.

Ao explicar a posição do autor, Michael Horton diz que a soberania de Deus desempenha um papel importante nessa abordagem. Embora seja uma crítica severa demais dizer que os anabatistas na verdade não confiavam na intervenção soberana de Deus nos afazeres seculares, fica claro que eles não pretendiam ser vasos nessa empreitada. Porém, os cristãos transformacionais também não querem simplesmente “batizar” a cultura secular, mas transformar o mundo tornando-o melhor.

São exemplos desse tipo para Niebuhr, Agostinho, Calvino e F. D, Maurice.

Embora – como já afirmado – a obra de Niebuhr seja um dos livros cristãos de maior influência do século passado e apesar de ainda continuar sendo usada (a obra) como referencia na atualidade, várias críticas têm sido direcionadas à sua abordagem. Michael Horton (p. 46) diz que ela tende ao reducionismo, colocando vários movimentos ou indivíduos em categorias nitidamente demarcadas, numa espécie de manipulação da própria tipologia. De igual modo, D. A. Carson, apesar de reconhecer alguns pontos fortes no livro, critica o fato de Niebuhr eliminar seletivamente da sua tipologia alguns movimentos religiosos que considera inaceitáveis ou sectários (arianos, mórmons, p. ex.), ao tempo em que não elimina nenhum ramo do gnosticismo “cristão” ou até mesmo do liberalismo teológico. Além disso, Carson diz que o modo como Niebuhr utiliza as Escrituras é insatisfatório e acrescenta que alguns dos seus personagens exemplificativos não condizem com as categorias nas quais foram alocadas. Por seu turno, Leornard Sweet sustenta que Niebuhr desenvolveu seu estudo em um momento histórico em que a igreja tinha um lugar de muito mais honra na mesa, muito diferente do atual contexto de secularização, pós-religiosidade e pós-cristandade.

3. Cultura e Escrituras Sagradas

A definição do modo ideal como o cristão deve se relacionar com a cultura requer uma reflexão baseada nas Escrituras Sagradas, considerando sobretudo os três elementos fundamentais da cosmovisão cristã: Criação, Queda e Redenção. Essa tríade contraria o pensamento dualista (secular-sagrado) e fornece os elementos necessários para a construção da perspectiva cristã, além de servir de base para avaliar outras cosmovisões.

De certo modo, como defende Michael Horton (p. 47), as Escrituras parecem evidenciar a necessidade de misturar dois tipos de paradigmas: “Cristo e cultura em paradoxo” e “Cristo, o transformador da cultura”, porque este mundo é do Pai Celeste, e no entanto, aqui não é meu lar. Com efeito, ao longo do Antigo Testamento aprendemos que há dois reinos: a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, de modo que o reino e a cultura de Deus estão unidos enquanto a nação espelha o reino de Deus; mas quando Israel quebrou a aliança, os dois reinos mais uma vez foram divididos. No Novo Testamento – diz Horton – Jesus afirmou que “agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36), os crentes colocam suas esperanças numa pátria melhor, celestial (Hb. 11.16).

Nada obstante, somos também admoestados a evitar ver a cidadania num reino como antítese completa da cidadania e participação no outro, afinal o próprio Paulo afirmou: E não vos conformeis com este mundo (paradoxo) mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento (Rm. 12.2). Aliás, a palavra “mundo” possui vários significados na Bíblia. Kosmos, no grego, pode denotar a terra (mundo físico) (Mt 13.35; Jo 21.25; At 17.24); o gênero humano (mundo demográfico) (Mt 5.14; Jo 1.10; 3.16; 3.17); a atual condição da humanidade em oposição a Deus (mundo caído) (Jo 7.7; 8.23; 14.30; 1Co 2.12; Gl 4.3; 6.14; Cl 2.8). Portanto, o cristão precisa estabelecer a correta relação com essas diferentes concepções de mundo.

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Bibliografia

1- A igreja na cultura emergente, SWEET, Leornard (org.). Vida
2- Cristo e cultura, H. Richard Niebuhr. Paz e Terra.
3- Cristo e Cultura, CARSON, D. A, Cristo e Cultura: uma releitura. Vida Nova.

 

FONTE: Como Viveremos

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