O que aconteceu: O escritor Anderson França publicou texto, no site Metrópoles, incitando a discriminação aos evangélicos, através da responsabilização de toda a comunidade evangélica pelo caso Flordelis e por outras questões apontadas no artigo.
Onde: Online.
Quando: 28 de agosto de 2020.
Texto: (veja aqui)
Parecer da ANAJURE
I – Síntese fática
O escritor Anderson França publicou em sua coluna do site Metrópoles texto intitulado “todo castigo para crente é pouco”. Nele, o autor comenta o assassinato de Anderson do Carmo e atribui a responsabilidade pelas circunstâncias do caso a todos os evangélicos. Nas palavras dele: “Flordelis é mais que responsabilidade nossa, Flordelis é culpa nossa. Ela representa a igreja evangélica, em gênero, número e grau de homicídio qualificado”.
França faz questão de frisar que não se trata de algo que possa ser relacionado à prática de parcela dos evangélicos, mas à totalidade do grupo religioso: “Não existe aqui ‘nós’ e ‘eles’. Se você é crente e está lendo isso, saiba: sua mão está suja de sangue pela morte de Anderson do Carmo”.
No entendimento do autor, os crentes que não se engajam com o enfrentamento de líderes que distorcem o evangelho estão sendo coniventes com os abusos decorrentes de tais condutas e, portanto, inteiramente responsáveis. Nas palavras dele: “Todos nós, crentes, que não denunciamos e não impedimos que esses criminosos existissem no nosso meio, temos as mãos sujas com eles, e com eles temos parte”.
Afirma que os evangélicos tornaram “o Brasil um lugar insuportável, doentio, assassino, corrupto, mentiroso, cruel e sem piedade”.
Diante da problemática narrada, o autor apresenta, ao longo do texto, algumas soluções. A pauta de conduta proposta aos evangélicos envolveria a adoção de medidas jurídicas para, dentre outras, “impedir pastores de se elegerem, caçar o mandato de todos os religiosos evangélicos e construir uma proposta política de um evangelho que fica do lado do oprimido (…)”. Para a sociedade em geral, a mensagem passada é de estímulo à intolerância contra os evangélicos, sob a afirmação de que “todo castigo para crente é pouco” e de que “o que a sociedade está falando dos crentes é pouco, diante de tudo que crentes falaram e fizeram contra negros, gays, lésbicas, trans e pobres”.
É o relato.
II. Análise jurídica
II.I. Liberdade de expressão e limites legais
O direito à liberdade de expressão é amplamente consagrado no âmbito internacional e nacional.
Assim, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos preveem, respectivamente nos artigos 19 e 13, que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.
A Constituição Federal de 1988 dispõe que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, inciso IV, CFRB/1988). Também estabelece que é “livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX, CFRB/1988).
A tutela à manifestação do pensamento nos mais variados diplomas de direitos humanos e no rol de direitos fundamentais indica a sua relevância. Inegavelmente, a liberdade de expressão tem papel central na manutenção de um ambiente democrático e plural. Na conversação entre diferentes, torna-se possível o aprendizado, a reflexão e o enriquecimento mútuo. Ocorre que, nem sempre, o discurso é utilizado como mecanismo para o diálogo, sendo, muitas vezes, instrumentalizado para estigmatizar e legitimar agressões a determinados grupos. Nessas hipóteses, a legislação, seja de âmbito interno ou internacional, não compactua com o abuso do direito de expressão.
O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, respectivamente no art. 19, item 3, e no art. 13, item 2, estabelecem que a lei poderá fixar restrições à liberdade de expressão quando necessárias para (i) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; e (2) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.
Na seara nacional, temos a criminalização de condutas como a calúnia (art. 138, Código Penal de 1940), a difamação (art. 139, CP/1940) e a injúria (art. 140, CP/1940), que protegem a honra dos indivíduos perante fatos falsamente imputados, imputação de fatos ofensivos à reputação e ofensas à dignidade e ao decoro, respectivamente.
A Lei n. 7.716, de 1989, pune os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, tipificando as condutas de prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito (art. 20, caput). Inclusive, a Lei n. 7.716/1989 estabelece qualificadora ao tipo previsto no art. 20, dispondo, no § 2º, que o uso de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza altera as penas do caput para dois a cinco anos de reclusão.
Cite-se, também, importante precedente fixado pelo Supremo Tribunal Federal no chamado caso Ellwanger[1]. Na ocasião, a Corte assentou que “o direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”. Também restou fixado que:
As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de práticas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.
Assim, entendemos que a salvaguarda conferida pelos direitos fundamentais, no caso, especificamente a liberdade de expressão, não se confunde com uma proteção à prática de ilícitos, existindo, em nosso ordenamento, a reprimenda de eventuais abusos ocorridos.
II.II. Manifestações do Sr. Anderson França
Feita a síntese legal acima, algumas considerações sobre a conduta do Sr. Anderson França se tornam necessárias. Primeiramente, sustentamos que o escritor, assim como os demais brasileiros, possui a liberdade de expressão garantida constitucionalmente. Desse modo, ele pode tecer críticas ao que lhe aborrece, inclusive, buscando convencer outras pessoas do seu ponto de vista. Pode, também, manifestar-se de modo contramajoritário, sustentando ideias que produzam discordância ou, até mesmo, repúdio a outros grupos sociais. Também está no seu campo de possibilidades rejeitar práticas religiosas, teológicas e políticas de outros indivíduos, demonstrando a falhas em suas condutas.
O que o Sr. Anderson França realiza em seu texto, no entanto, ultrapassa os limites da mera manifestação de divergência. Para além da crítica, o jornalista estigmatiza todo um grupo religioso e, a partir disso, legitima ataques à comunidade evangélica. Destacaremos a seguir algumas práticas adotadas por França.
O escritor faz um arriscado movimento de culpabilização dos crentes pelos problemas enfrentados no Brasil, afirmando, por exemplo, que “nós, evangélicos, tornamos o Brasil um lugar insuportável, doentio, assassino, corrupto, mentiroso, cruel e sem piedade” e que “(…) nós temos responsabilidade e CULPA no que está acontecendo no Brasil de 2020”. Além da responsabilidade atribuída abstratamente, França confere aos evangélicos a culpa por acontecimentos específicos, como o assassinato de Anderson Carmo: “se você é crente e está lendo isso, saiba: sua mão está suja de sangue pela morte de Anderson do Carmo”.
O esforço argumentativo do jornalista se volta, assim, para a construção de um estigma que dê base para agressões aos evangélicos, num movimento que em muito se alinha à incitação à discriminação. O raciocínio é: se todo evangélico é assassino, corrupto e mancomunado com figuras reprováveis, todo castigo perpetrado pela sociedade é pouco.
Além de legitimar agressões, o autor também manifesta a pretensão de excluir evangélicos da esfera pública, afirmando que está na hora de “impedir pastores de se elegerem” e de “cassar o mandato de todos os religiosos evangélicos”. Esse tipo de aspiração, além de antidemocrático e discriminatório, é inconstitucional, uma vez que a Constituição da República assegura que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal e recusar-se ao cumprimento de prestação alternativa, fixada em lei (art. 5º, VIII, CF/88). Assim, considerando que o ordenamento jurídico brasileiro confere direitos políticos aos cidadãos sem preterir ninguém por razões religiosas, não há que se falar de “impedir pastores de se elegerem” ou de “cassar o mandato de todos os religiosos evangélicos”. Ilegalidades e iniquidades cometidas por evangélicos na seara política não podem ser combatidas pela via do autoritarismo.
No fim, o intuito do jornalista é formar adeptos de sua práxis, o que lhe é plenamente possível. Para isso, contudo, tem se utilizado da via do constrangimento e da estigmatização, atribuindo crimes aos que não se alinham à sua perspectiva ideológica (quando afirma, por exemplo, que todos os crentes têm o sangue de Anderson do Carmo nas mãos). Mais do que isso, porém, o Sr. Anderson França, de forma avessa ao pluralismo político (art. 1º, inciso V, CRFB/88), tem apresentado razões para a legitimação de agressões aos que não abraçam as práticas políticas que ele considera eficazes. Nesse sentido, indicamos abaixo parte de um texto publicado pelo jornalista em sua página do Facebook, no dia 18 de agosto de 2020, em que ele sustenta que se os evangélicos não se opuserem a pessoas como Silas Malafaia, com protestos e manifestações de repúdio, há a chance de serem agredidos na rua e de o agressor estar coberto de razão. Leia nas próprias palavras do escritor:
“(…) Vários de vocês me dizem que estão com medo de sair com a Bíblia na mão, medo de serem atacados na rua. Eu só posso dar um conselho:
Vamos todos até a igreja de Silas Malafaia, na Rua Montevidéu, 900, Vila da Penha, Rio de Janeiro, e vamos cercar a igreja, e dizer ao Malafaia que ele está impedido de falar por nós. E fazer isso até que ele entenda. E apenas nós, crentes, podemos dar limites a um que causa escândalo.
A Palavra diz:
“ao que causa escândalo, melhor seria se lhe amarrasse uma âncora ao pescoço, e fosse jogado no fundo do mar”.
Quem disso isso foi Jesus, amado. Não tem perdão pra todo mundo não, que Deus não é otário.
Só os evangélicos que se levantarem agora para impedir que esse homem nos mate, só estes podem apaziguar os ânimos entre nós e a sociedade. Malafaia não tem qualquer poder sobre nós. E os seus seguidores precisam ser impedidos de representar qualquer denominação protestante.
É isso, ou você pode ser agredido na rua, com uma Bíblia na mão, e atenção:
Há chances da pessoa que te agredir estar coberta de razão (…)”[2] (Grifo nosso).
Ocorre que, assim como a Constituição Federal não condiciona o exercício de direitos políticos à adoção de uma determinada postura religiosa, não existe nenhuma exceção no ordenamento jurídico brasileiro, nem em diplomas internacionais, que autorize ou legitime agressões à integridade física por razões ideológicas ou religiosas, muito menos pela passividade em aderir às práticas de pressão política sugeridas por quem quer que seja.
Ainda assim, há uma condescendência com esse tipo de raciocínio, o que deixa transparecer a hostilidade já existente contra os evangélicos. Afinal, como seria a reação se o título do texto mencionasse outro grupo religioso ou social que não os evangélicos? Façamos um exercício:
“Todo castigo para ___________ é pouco”.
Substitua a lacuna por um grupo minoritário ou por outro segmento religioso. A frase se torna discriminatória? Digna de repúdio?
Em síntese, o que se extrai do artigo produzido pelo Sr. Anderson França é o seguinte: (1) uma estratégia de culpabilização generalizada dos evangélicos pelo cometimento de crimes e de toda sorte de males que assolam o Brasil, (2) com a finalidade de legitimar todo castigo aos que são crentes, (3) culminando, não somente nas agressões sugeridas, mas numa campanha de exclusão do evangélico da esfera pública. A combinação de tais elementos evidencia uma postura intolerante, antidemocrática e discriminatória, havendo a possibilidade de que, em sede de investigação judicial, possa se amoldar à conduta prevista no art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/2020, qual seja, a prática, induzimento ou incitação à discriminação por razões religiosas, com utilização de meios de comunicação social, os quais amplificam o alcance das manifestações feitas pelo jornalista.
III. Conclusão
Pelo exposto, a ANAJURE (1) sustenta que a proteção à liberdade de expressão não contempla práticas que estigmatizam pessoas e/ou grupos com a finalidade de legitimar agressões; (II) informa que entrará em contato com o jornalista Anderson França a respeito dos seus pronunciamentos recentes acerca dos evangélicos, solicitando a retirada ou modificação das publicações feitas, além da retratação quanto às afirmações discriminatórias tratadas neste parecer; e (III) comunica que seguirá acompanhando os desdobramentos do caso.
___________________
[1] HC n. 82.424, 19/03/2004.
[2] Disponível em: https://www.facebook.com/DinhoEscritor/posts/1396673063876819. Acesso em: 03 set. 2020.