Palavras-chave: princípios constitucionais; liberdade religiosa; laicidade.
Nos dias atuais, vez por outra, deparamo-nos com tentativas de interpretação do art. 19, I, da Constituição de 1988, que assegura ser vedado aos entes político-administrativos da República “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Alguns estudiosos (e aplicadores do Direito) tem defendido que o sistema insculpido no dispositivo suso referido proíbe qualquer tipo de manifestação religiosa na esfera política. É o que escreve, por exemplo, a procuradora do município de São Paulo, Simone Coutinho, no artigo “O Estado laico e a reforma do Código Eleitoral”. Segundo ela, dever-se-ia garantir “a eficácia plena do secularismo na ação estatal”, dando vigência a “normas que proíbam qualquer tipo de influência das crenças na atividade política e administrativa do país.” Os Poderes Legislativo e Executivo, nessa toada, “devem ser exercidos com absoluta independência das religiões” e, por isso, restariam proibidas as “bancadas religiosas” ou mesmo partidos com as siglas “cristão”, “judeu” ou “católico”.
O próprio Supremo Tribunal Federal, a seu turno, no julgamento da ADPF nº 54, no qual se definiu pela possibilidade de abortamento de fetos anencéfalos, não permitiu que entidades religiosas – ou, noutros termos, que defendem valores religiosos – figurassem nos autos como amicus curiae. Contudo, o Ministro Gilmar Mendes, na oportunidade, defendeu que os argumentos de tais entidades “podem e devem ser analisados pelo Estado que, apesar de ser laico, deve buscar a cooperação mútua com as diversas confissões religiosas.”
Ademais, também em razão de uma novel interpretação acerca da laicidade, em novembro de 2012 o Procurador da República Jefferson Aparecido Dias ajuizou uma ação civil pública requerendo fosse excluída a expressão “Deus seja louvado” das notas de Real.
Esses são apenas alguns dos casos em que, recentemente, o “princípio da laicidade” foi invocado para restringir a atuação da religião no tecido social. Contudo, o que vem a ser, efetivamente, um Estado laico? Como garantir que a liberdade religiosa, direito humano assegurado no art. XVIII da Declaração Universal, continue presente nesse contexto?
Historicamente, apenas a Constituição de 1824 manteve uma religião como oficial, qual seja, a Católica Apostólica Romana, dando continuidade ao que ocorria no Brasil Colônia. Com a proclamação da República, em 1889, fez-se necessária a edição de uma nova carta política. Dessa vez, rompendo a relação Estado-Igreja, a Constituição de 1891 traz um Estado laico e ateu, sem religião oficial ou menção de “Deus” em seu texto preambular.
Por sua vez, a Constituição de 1934, surgida a partir da adoção de uma democracia social proposta pela Revolução de 1930 (em contraposição ao liberalismo), expõe o teísmo estatal ao reconhecer que Deus é digno de confiança. A Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, impõe ao país o regime do Estado Novo, com inspirações fascistas. O nome de Deus é banido da Carta Magna e conserva-se a liberdade religiosa.
Restaurada a democracia liberal, em 1945, e com a deposição de Getúlio Vargas e instalação da Assembléia Constituinte, promulga-se a Constituição de 1946. Retorna-se ao teísmo estatal, sendo declarada a proteção de Deus. A Constituição de 1967, editada após o Golpe Militar de 1964, apenas invoca a proteção de Deus, ao contrário da anterior, que a declarava. Preservam-se a liberdade religiosa (art. 150, §§ 1º e 5º), a laicidade e a possibilidade de colaboração (art. 9º, II). Por fim, a Constituição de 1988 volta a declarar a proteção de Deus.
Assim, as alterações preambulares, mormente as operadas nas Constituições de 1891 e 1937, demonstram que o teísmo insculpido é referente ao Estado, e não como valor da sociedade ou religiosidade do povo. Não se pode cogitar que, no intervalo de pouco mais de três anos (julho de 1934 a novembro de 1937), a sociedade brasileira tenha perdido sua confiança em Deus, retomada após quase nove anos (setembro de 1946). Dessa feita, apenas nestas duas Constituições (1891 e 1937) o Estado não se revela teísta.
Seguindo a Constituição da República de 1988 quanto ao teísmo estatal, todas as Constituições Estaduais e a Lei Orgânica Distrital declaram (Acre, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, Tocantins) ou invocam (Alagoas, Amapá, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Roraima, São Paulo, Sergipe) a proteção de Deus em suas disposições preambulares. Importa frisar que a Constituição acreana foi promulgada, originalmente, sem declaração teísta em seu preâmbulo, o que motivou a ADI 2076-5/AC, julgada improcedente. Ocorre que, em 08 de dezembro de 2000, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 19 (publicada no Diário Oficial do Estado em 19 de junho de 2002), que alterou o dispositivo para nele incluir a expressão “sob a proteção de Deus”.
Dessa feita, Estado laico é aquele que não adota uma religião oficial (Estado não confessional, ao contrário do ocorrido na Constituição do Império de 1824), que trata indistintamente partidários de todas as religiões e que veda interferências diretas destas na condução da res publicae. Contudo, a proibição de interferências não se confunde com a vedação de influências, já que as decisões políticas, principalmente sobre alguns temas, como a liberação de pesquisas com células-tronco ou a legalização do aborto, invariavelmente, são tomadas, também, considerando as manifestações dos vários grupos religiosos. E, convém repisar, a própria Carta Magna aloca a possibilidade de “colaboração de interesse público” entre o Estado e os cultos religiosos e igrejas.
Portanto, não há como abolir a religião da dinâmica estatal, como querem alguns propositores de um novo prisma de Estado laico. A fim de resguardar a não adoção de uma religião oficial (CRFB/88, art. 19, I) e, ao mesmo tempo, não infringir a liberdade de manifestação religiosa (CRFB/88, art. 5º, VI), resta imperioso que as religiões tenham o direito de se postarem no campo público como mais uma voz do processo democrático.
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Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Penais e em Direito e Relações Familiares, Mestrando em Ciência da Religião e Membro do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE. Contato: [email protected]
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