Sobre a (im)parcialidade do Supremo: a questão do aborto

ANAJURE
Entre os dias 3 e 6 de agosto, haverá a audiência pública no Supremo Tribunal Federal a respeito da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, que é objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol). No início deste ano, o STF lançou o seu Boletim de Jurisprudência Internacional, sendo em junho publicada a sua terceira edição (vide), tratando do aborto. Diante da proximidade deste em relação à audiência pública, uma reflexão se faz necessária a respeito do seu conteúdo, suas fontes e, sobretudo, do caráter simbólico que ele carrega.

O Boletim de Jurisprudência Internacional do STF é uma publicação bimestral que procura trazer temas de relevância internacional e que, provavelmente, estejam em pauta para julgamento. Seu objetivo seria o de “levantar e sistematizar, para fins de comparação decisões do Supremo, de tribunais internacionais e de cortes constitucionais e supremas cortes estrangeiras sobre o tema selecionado[1]”. Isto é, aparentemente, apenas informativo.

Nesta terceira edição, ao todo, o boletim traz o resumo de 39 decisões, sendo: seis decisões de órgãos internacionais (Corte Interamericana de Direitos Humanos, Tribunal Europeu de Direito do Homem, Comissão Europeia de Direitos do Homem); e 33 de tribunais nacionais (Alemanha, Argentina, Bélgica, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Croácia, Eslováquia, Espanha, Estados Unidos, França, Hungria, Irlanda do Norte, Itália, Macedônia, México, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido).

Em linhas gerais, alguns aspectos desse boletim merecem uma parada reflexiva, dentre eles destacamos: 1) o quadro geral de jurisprudências; 2) as fontes referenciadas, que não foram muitas — diga-se de passagem —, das quais trataremos de duas: um livro e um site; 3) e a presença do HC 124.306 nos julgados do STF.

Fazendo uma síntese do cenário jurisprudencial descrito, podemos dizer que a ampla maioria das decisões apresentadas eram favoráveis à interrupção voluntária da gestação, algumas com restrições apenas em relação ao período máximo para a sua realização, e outras limitando-a a situações específicas, como o risco de morte para a mãe ou gravidez gerada por violência sexual. Apenas três decisões em sentido claramente contrário foram elencadas, uma da Corte Suprema de Justiça da Costa Rica, uma da Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina e outra do Tribunal Constitucional do Chile, sendo estas duas últimas acerca da proibição, fabricação e distribuição e uso da pílula do dia seguinte.

Dentre as fontes referenciadas tem-se a obra El aborto en el derecho transnacional: Casos y controvérsias, editada por Rebecca J. Cook, Joanna N. Erdman e Bernard M. Dickens (eds.), que se propõe a fazer uma discussão abrangente em termos geográficos, mas não na pluralidade de perspectivas. Ou seja, todos os capítulos das quatro partes que compõem o livro assumem (in)diretamente uma defesa (da descriminalização) do aborto.

Por exemplo, um dos capítulos é da lavra do ministro Luís Roberto Barroso, intitulado El aborto en el debate público brasileño: Estrategias jurídicas del embarazo anencefálico. Na introdução, os editores, ao resumirem a contribuição do ministro, expõem que: el autor explica cómo este caso extremo otorgó la oportunidad de superar la demanda moral más crucial en contra del aborto: la potencialidad vital del feto. Barroso explora el papel positivo de la estrategia judicial en la superación de tabúes en torno al aborto en Brasil y en la reafirmación de los derechos de las mujeres al aborto[2] (grifo nosso).

O site citado como referência foi o da organização Center for Reproductive Rights, mais especificamente um mapa que eles desenvolvem para demonstrar onde o aborto é permitido ou proibido em todo o mundo. Quem puder entrar na página da instituição logo perceberá o seu notório matiz progressista. Até o momento em que este texto estava sendo escrito, havia uma campanha contra a nomeação do juiz Brett Kavanaugh — de viés mais conservador —, afirmando que esta poderia acarretar um risco ao direito constitucional ao aborto. Se você ler a visão dessa organização, verá, dentre outras causas, que eles lutam por um mundo onde toda a mulher seja livre para decidir se ou quando ter filhos. Traduzindo, que (também) tenham direito ao aborto, que entendem ser um direito humano das mulheres.

Acerca da presença do HC 124.306 (da 1ª Turma) entre os julgados do STF, é perceptível o caráter precário deste em relação aos demais (a ADI 3.510 e a ADPF 5.498), por não representar o entendimento majoritário da corte e por ter sido uma flagrante exacerbação da causa de pedir. Não era isso que, prima facie, estava em discussão, contudo, a manifestação singular do ministro Barroso, que foi muito além do pedido, foi tomada como se fosse um julgado semelhante aos outros.

Tratava-se de um pedido para a revogação da prisão preventiva dos impetrantes que trabalhavam numa clínica de aborto na cidade de Duque de Caxias (RJ). Por óbvio, tratava-se de um estabelecimento clandestino, uma vez que a prática (ainda) é tipificada como crime em nosso país. Muito além de analisar os requisitos legais da prisão — o que brevemente afirmou inexistirem —, o ministro Barroso entendeu que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto até o terceiro mês de gravidez seriam inconstitucionais e violariam os direitos fundamentais das mulheres. Afirmou que seria necessário fazer uma interpretação conforme dos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, que definem o crime de aborto, excluindo a incidência do que denomina de interrupção voluntária da gestação quando realizada nos primeiros três meses de gestação. Isso devido a uma (pretensa) violação de diversos direitos fundamentais da mulher, como também do princípio da proporcionalidade. Ao final, as prisões foram relaxadas de ofício, sendo considerado o HC incabível.

Limitando-nos a discorrer sobre estes três aspectos do boletim que foram anteriormente apresentados, é patente a ausência de neutralidade, ou melhor, de imparcialidade do Supremo Tribunal Federal na feitura da publicação. É perceptível da leitura a predileção por um dos lados da controvérsia, e este é o nosso ponto: deve o nosso tribunal constitucional assumir posições morais em questões (também morais) controvertidas, para além dos autos, como neste boletim, e assim fortalecer determinados discursos?

Não houve neste boletim um tratamento jurisprudencial equitativo. Reconhece-se, de fato, que há uma tendência internacional pró-descriminalização do aborto, ou pró-interrupção voluntária da gravidez, mas o quadro pintado notoriamente deu uma ênfase muito maior às decisões nesse sentido. Como se uma minoria ínfima de países (sem expressão) ainda mantivessem leis mais restritivas com relação ao aborto, o que (ainda) não é verdadeiro.
Com relação às fontes utilizadas, não questionamos de modo algum a livre manifestação das ideias que defendem. A dificuldade que se encontra é quando uma instituição pública se baseia em fontes claramente enviesadas. Ainda que os dados ali descritos sejam fidedignos, a sua escolha já traz, implicitamente, um posicionamento. Isso é visto, em alguma medida, nas ditas faculdades de humanas, onde professores tendem a usar referenciais bibliográficos que estejam mais alinhados com o seu espectro ideológico. Se na academia esse comportamento já é digno de críticas, quanto mais numa publicação do STF, que deveria ser imparcial diante da responsabilidade que possui em dirimir por vezes controvérsias morais a partir dos limites do Direito.

A presença do HC 124.306[3] entre os outros julgados — que fazem parte do controle abstrato de constitucionalidade e que por isso exigiram uma cognição absolutamente distinta — nos parece inadequada. Ademais, porque somente neste, indo muito além dos méritos do caso, há a manifestação mais radical de todas a respeito do aborto, presente no voto-vista de um único ministro e que, “aleatoriamente”, coincide com o pedido do Psol na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442. Não, essa decisão não representa o entendimento da corte, não possui efeitos vinculantes ou erga omnes, trata-se de um posicionamento isolado de um ministro, ainda que com alguma acolhida na 1ª Turma. Além disso, não se pode olvidar que se trata de um ministro que assume abertamente a defesa parcial de um dos lados da controvérsia desde os tempos de advogado e que a mantém, não obstante estar numa posição absolutamente diversa daquela — a qual requer certas limitações ético-institucionais.

Note-se que, ao contrário do que se diz, ambas as posições no caso do aborto são morais e se justificam a partir de determinados sistemas de crenças. O processo de secularização vivenciado no Ocidente limitou o uso de discursos religiosos como justificação das regras sociais na esfera pública, mas não as regras em si, o que seria um contrassenso. Em outras palavras: o fato de ser considerado inadequado o uso do argumento de que “o aborto é incorreto por contrariar a lei de Deus” não o torna correto, tampouco impede que esta mesma defesa seja feita a partir de outros pressupostos — ainda que seus defensores venham a possuir livremente suas crenças religiosas, da mesma sorte que também as possuem aqueles que sustentam um entendimento diverso. Há algo de falacioso que impede um debate real de ideias, pois se eleva um lado a um status de superioridade (artificial), em vez de permitir um confronto por seus próprios méritos argumentativos. Perceber essa realidade na academia é quase um truísmo, mas observar seu espelhamento em instituições públicas, em específico em um boletim do STF, deve nos causar alguma perplexidade.

Boletim de Jurisprudência Internacional, que teria apenas um caráter informativo, possui também um aspecto formativo, compondo o nosso imaginário social (Charles Taylor). Ou seja, contribui para que determinados posicionamentos deixem de ser vistos apenas como plausíveis ou razoáveis e passem a estar num patamar mais elevado no debate público, pois se tornam também desejáveis.

Esperamos que o Supremo não entre nesta guerra cultural de narrativas. Ele é o guardião, e não o senhor do texto constitucional, muito menos o dono da razão em questões morais controvertidas. Temos outros foros na democracia com maior legitimidade para dirimir adequadamente esses dilemas que exigem muito mais do que audiências públicas. Enquanto isso, almejamos que o STF aja com discrição e imparcialidade, nos autos e fora dele, e, sobretudo, que se porte e decida como reza a Constituição.
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Texto: ConJur, por Daniel Ortiz

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