* Este texto faz parte do novo livro da ANAJURE 'Refugiados no Brasil'.
Apesar de, na atualidade, o tema “Refugiados” estar ocupando boa parte do noticiário em nível mundial, todos sabemos que o instituto jurídico do refúgio pode ser considerado recente. Entretanto, o drama dos refugiados é antigo e sempre existiu ao longo da história.
De uma maneira sintética, podemos entender que o refugiado é uma pessoa ou grupo de pessoas que são perseguidos por questões políticas, raciais, religiosas ou que tenham fugido dos seus países porque as suas vidas, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.
Diante de tais fatos, neste livro procuramos abordar as diversas formas de perseguição, e em alguns momentos, de maneira específica, a perseguição à igreja cristã. Também analisamos algumas perspectivas de direito e bíblicas, bem como trouxemos o testemunho de alguns casos reais de refugiados, a fim de que possamos fazer uma aplicação prática para a vida da igreja.
Certamente Deus tem algo a ensinar ao mundo com os refugiados, mas de uma forma cristalina podemos perceber que existem ensinamentos práticos que precisam penetrar no coração da Igreja Brasileira.
Uma coisa é certa, entendemos que a propagação do evangelho se deu, em muitos casos, em virtude da perseguição, o que podemos perceber na narrativa de Atos dos Apóstolos 8:3-4: “e Saulo assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando homens e mulheres, os encerrava na prisão. Mas os que andavam dispersos iam por toda a parte, anunciando a palavra.”
Concluímos, então, que a perseguição gerou a propagação do evangelho, onde os perseguidos passavam a anunciar por toda parte a sua fé. Mas não queremos entrar no mérito da motivação da perseguição religiosa, isto é, não vamos discutir aqui se os fatos que culminaram com a perseguição tiveram uma perspectiva puramente religiosa ou estavam contaminados com os interesses políticos da época. O que importa para nós é observarmos que a mensagem ou a conduta dos cristãos à época levou a uma perseguição que acompanhou a igreja cristã por muitos anos.
Não apenas o conhecimento, mas a prática dos ensinamentos de Cristo sempre levou a Igreja a incomodar o mundo, que ao se deparar com o testemunho de um homem comum, como Pedro, chamavam-no de iletrado: “vendo a coragem de Pedro e de João e percebendo que eram homens comuns e sem instrução, ficaram admirados e reconheceram que eles haviam estado com Jesus.” (Atos 4:13); e ao se deparar com o testemunho de um fariseu dos fariseus, como foi Paulo, chamavam-no de louco: “A esta altura Festo interrompeu a defesa de Paulo e disse em alta voz: “Você está louco, Paulo! As muitas letras o estão levando à loucura!”(Atos 21:24).
William Hendriksen[1] afirma que quando há o desenvolvimento da fé dos filhos de Deus, a tal ponto que venha a manifestar-se exteriormente, de tal maneira que aqueles que não participam com eles da mesma experiência começam a notar, então o resultado é a perseguição.
Assim sendo, não há qualquer forma para se evitar a perseguição religiosa à igreja cristã, pois é uma consequência clara e indiscutível da prática do evangelho e, ainda mais, em muitos casos é difícil até justificar o que leva a Igreja a ser perseguida.
Sobre este tema, John Stott[2] afirmou: “Na verdade, alguns tomam a iniciativa de opor-se a nós e, particularmente, de nos injuriar e perseguir. Não por causa de nossas fraquezas ou idiossincrasias, mas “por causa da justiça” e “por minha causa”, isto é, porque não gostam da justiça, da qual sentimos fome e sede, e porque rejeitam o Cristo que procuramos seguir. A perseguição é simplesmente o conflito entre dois sistemas de valores irreconciliáveis”.
John Wesley também observou a questão da perseguição: “Há, porém, uma perseguição que alcança todo verdadeiro filho de Deus. É a que Jesus descreve com as seguintes palavras: ‘Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo o tipo de calúnia contra vocês’. Essa perseguição não pode falhar. É o distintivo do discipulado. É um dos selos do chamado de Deus.”[3]
No que diz respeito à perseguição religiosa, entendemos então que a mesma é inevitável, e podemos até lembrar-nos da introdução ao livro “Direito de Liberdade Religiosa no Brasil e no Mundo”[4] onde falamos que o compromisso com a propagação do evangelho é IRRENUNCIÁVEL. Logo, a perseguição é inevitável e acima de tudo uma beatitude (bem-aventurados).
Por outro lado, é importante pensarmos também na atitude da Igreja no acolhimento aos perseguidos, aos refugiados, aos imigrantes e, nesta ocasião vale salientar, de TODOS os perseguidos, sejam por questões de ordem política, racial, religiosa ou por conflitos internos em seus países, que tenham posto em risco as suas vidas, segurança ou liberdade, tendo em vista a violência generalizada.
Estamos diante de um cenário sem precedentes quando passamos a analisar numericamente a quantidade de pessoas em busca de refúgio. Como exemplo da proporção global dos refugiados, estima-se que já por volta de 1993 existiam cerca de 7 milhões de refugiados na Ásia, 5,5 milhões na África, 4,5 milhões na Europa, e por volta de 2 milhões no continente americano.[5] Em 2013, o número de pessoas forçadas a deixar suas casas por conta de guerras ou perseguição superou a marca de 50 milhões pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com a agência de refugiados da ONU.[6]
Diante de tais fatos, em uma perspectiva cristã, podemos entender que a Igreja tem a oportunidade de colocar em prática muitos valores cristãos ensinados nas Sagradas Escrituras.
Em primeiro lugar, a Igreja não pode condicionar a prática do bem! O amor divino é incondicional e aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor!
Além disso, a Igreja não pode fechar os olhos a uma crise mundial em que várias pessoas, de várias nações, por motivos diversos, estão sendo tratadas de forma desumana, sem misericórdia, sem amor e muitas vezes meramente como parte de uma estatística.
O Deus do cristianismo amou o homem apesar de saber das suas falhas, limitações, e muitas vezes do perigo que representava em virtude de suas práticas abomináveis, diversas e humanamente imprevisíveis.
O amor ao próximo está acima de ideais, crenças e preconceitos, pois “o verdadeiro amor lança fora todo o temor”.
A Igreja cristã não tem nada a perder quando serve a um Deus soberano que nunca se omitiu na história da humanidade.
O surgimento do Estado Islâmico e o crescimento do terrorismo têm levado alguns grupos a pensarem na concessão de refúgio de uma forma seletiva, onde alguns defendem que países europeus têm o direito de não acolhê-los, bem como alguns cristãos temem o acolhimento de refugiados de outras religiões, principalmente os muçulmanos, por razões diversas.
Temer as consequências da prática do amor é não ter entendido o gesto de amor de Cristo pelo homem, incondicional, inexplicável, “escândalo para os judeus e loucura para os gregos”.
A Igreja cristã tem uma grande oportunidade para demonstrar na prática o seu discurso, acolhendo aqueles que não têm pátria, não tem destino e qualquer esperança de mudança.
Falamos que são bem-aventurados os perseguidos, mas de igual forma também são os que agirem com misericórdia: “Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia.” (Mateus 5:7).
É especial a citação desta bem-aventurança por Jesus, pois não especifica a que grupo de pessoas estaria se referindo e a quem os seus discípulos deveriam agir com misericórdia.
Segundo John Stott[7], Jesus “Não indica se está pensando principalmente naqueles que foram derrotados pela desgraça, como o viajante que ia de Jerusalém a Jericó e foi assaltado e a quem o bom samaritano “demonstrou misericórdia”; ou se pensa nos famintos, nos doentes e nos rejeitados pela sociedade, dos quais ele mesmo costumava apiedar-se; ou ainda naqueles que nos fazem mal, de modo que a justiça clama por castigo, mas a misericórdia concede perdão. Nosso Deus é um Deus misericordioso e dá provas de misericórdia continuamente; os cidadãos do seu reino também devem demonstrar misericórdia”.
Tasker[8] afirma que “os misericordiosos são aqueles que estão conscientes de serem indignos recipientes da misericórdia de Deus e que, não fosse por sua misericórdia, eles não seriam apenas pecadores, mas pecadores condenados. Consequentemente esforçam-se por refletir no seu convívio com outros algo da misericórdia que Deus mostrou para com eles. E quanto mais fazem isto, mais a misericórdia de Deus se estende a eles.”
“Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé”. (Gálatas 6:10).
Diante de tais fatos, não podemos pensar em outra atitude que não seja de uma ação efetiva da Igreja Cristã no sentido de manifestar misericórdia a todos que estejam ao seu alcance, e não apenas aos domésticos da fé.
Falamos por muitos anos e continuamos a proclamar que o Brasil é um “celeiro de missões”, pois temos enviado ao longo das décadas milhares de missionários aos mais diversos cantos do mundo. Entretanto, devemos ter a mesma ousadia e fé para proclamarmos que o Brasil deve ser um destino para os refugiados, pois tem um povo acolhedor, amável e acima de tudo uma Igreja forte.
Willian Hendriksen[9], com base no Evangelho de Lucas 6:38, atribui à misericórdia a qualidade de semente de ouro e afirma que onde ela é semeada, efetua-se uma colheita abundante. “Dai, e ser-vos-á dado; boa medida, recalcada, sacudida e transbordando vos darão; porque com a mesma medida com que medirdes também vos medirão de novo.”
Somos chamados para agir com misericórdia, pois fomos alcançados pela infinita misericórdia de Deus.
Que não apenas o Brasil, mas a Igreja de Deus no Brasil possa ser reconhecida com um “Lugar de Refúgio”.
Teremos nesta obra a oportunidade de conhecer o Instituto Jurídico do Refúgio, bem como a oportunidade de sermos impactados por testemunhos marcantes de pessoas que em virtude de suas convicções religiosas e a escolha de permanecerem fieis as mesmas, foram alvo de perseguições terríveis, mas encontraram no Brasil um Lugar de Refúgio.
“E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que, quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.” (Mateus 25:40).
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Dr. Jonas Moreno – Diretor para Assuntos de Refugiados e Ajuda Humanitária da ANAJURE, Jurista, Servidor do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, Especialista em Direito Público pela ESMAPE/PE, Pastor da Aliança das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil e Membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB/PE.
[2]Hendriksen, William, Comentário do Novo Testamento, Mateus. 2010: p.344
[3]Stott, John R.W. A Mensagem do Sermão do Monte. 2008: p.42.
[4]Wesley, John, O Sermão do Monte, 2012:p.106.
[5] ANAJURE, O Direito de Liberdade Religiosa no Brasil e no Mundo. 2014: p.11
[6] VARESE, Luis. Dia mundial do refugiado: refúgio, migração e direitos humanos. p. 02.
[7] Portal de notícias BBC Brasil. ONU: número de refugiados é o maior desde a Segunda Guerra Mundial. 20 de junho de 2014. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140619_refugiados_entrevista_hb
[8] Stott, John R.W, A Mensagem do Sermão do Monte. 2008: p.37.
[9] Tasker, R.G.V ,Mateus, Introdução e Comentário. 1980: p.49.
[10] Hendriksen, William, Comentário do Novo Testamento, Mateus.2010: p.341