NOTA PÚBLICA sobre o julgamento da ADI 3239 pelo STF, que trata sobre a demarcação de terras quilombolas

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Nota. ANAJURE

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas EvangélicosANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais:

Considerando o retorno do julgamento (iniciado em 2012) em Plenário da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.239, agendado para 18 de outubro de 2017, quando será proferido o voto-vista do ministro Dias Toffoli;

Considerando ser esta demanda ajuizada pelo Partido Político Democratas (DEM) contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos;

Considerando as alegações do Requerente que o ato normativo impugnado invade esfera reservada à lei e disciplina procedimentos que implicam aumento de despesa, como o que determina a desapropriação, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de áreas em domínio particular para transferi-las às comunidades quilombolas;

Considerando ainda que a ação sustenta a inconstitucionalidade do critério de autoatribuição fixado no decreto para identificar os remanescentes dos quilombos e na caracterização das terras a serem reconhecidas a essas comunidades, o que seria inconstitucional e incompatível com o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT);

Considerando que a Procuradoria Geral da República opinou pela improcedência da ação e, até o momento, votaram o outrora relator, ministro Cezar Peluso (aposentado), pela procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 com efeito ex nunc (a partir do julgamento), e a ministra Rosa Weber, que diverge do relator e julga improcedente a ADI;

Considerando a forte participação social no tema debatido[1], as consequências em desfavor das comunidades quilombolas, a forte oposição de interesses, legítimos ou não, no resultado da demanda e a polarização política das discussões acerca de um debate jurídico;

Emite a presente Nota Pública, na qual se apresentam os fundamentos jurídicos basilares à manutenção e declaração de constitucionalidade do Decreto nº 4887/03, para garantir os direitos quilombolas ao reconhecimento de suas terras tradicionais, conforme são tratados no julgamento em comento.

I – SÍNTESE DOS ARGUMENTOS DA ADI 3239

A Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3239 foi ajuizada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL) e, hoje, Democratas (DEM), em face do Decreto nº 4.887/03, o qual “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.

Ocorre que “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade” (art. 2º, caput, e §1º), cuja indicação, para medição e demarcação, será feita pelos próprios beneficiários (art. 2º, §3º), além da possibilidade de desapropriação pelo INCRA (art. 13).

Neste sentido, o requerente indica que (i) houve uso indevido do instrumento formal, pois o Decreto nº 4.887/03, ao regulamentar o art. 86 do ADCT, ultrapassa os limites constitucionais da autonomia normativa – segundo o art. 84, IV e VI, alínea a, da CF/88 – ao dispensar a produção de lei stricto sensu, que seria o instrumento correto, para tal providência; (ii) o art. 68 do ADCT não abre hipótese para a desapropriação de terras alheias, para serem transferidas aos remanescentes de quilombos, mas apenas de emissão do respectivo título de propriedade, quando estes já estiverem na posse; (iii) seria indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos, para que fossem emitidos os títulos, em sentido contrário à auto identificação prelecionada pelo dispositivo combatido; (iv) sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição, visto que, inclusive, não seria necessária a apresentação de prova técnica e histórica, para o reconhecimento da propriedade.

Por estas razões, requer seja julgada procedente a presente ação, para declarar a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/03.

II – DOS VOTOS JÁ PROFERIDOS

I.A. Ministro Cezar Peluso

No início do julgamento, em 2012, o Ministro era o relator da ADI e o então presidente do STF, e proferiu seu voto pela procedência da ação e, portanto, pela inconstitucionalidade do decreto questionado. Entre as inconstitucionalidades apontadas pelo Ministro, está a violação do princípio da reserva legal, ou seja, que o Decreto 4.887/03 somente poderia regulamentar uma lei, jamais um dispositivo constitucional; e a desapropriação das terras, nele prevista, pois a desapropriação de terras públicas é vedada pelos artigos 183, parágrafo 2º, e 193, parágrafo único, da CF.

Teceu, ainda, considerações sobre a repercussão do seu voto, considerando que são pequenos os avanços no sentido de concretizar a previsão do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Isso porque, ponderou o Ministro, o caminho até o registro em cartório de tais áreas é “uma verdadeira via crucis”, porquanto envolve mais de 20 etapas; tanto que, atualmente, só 192 comunidades contam com título de propriedade, número que representa apenas 6% do total estimado. Diante disso, de acordo com o ministro, teria sido melhor que o Congresso Nacional tivesse editado uma lei, em vez de o Poder Executivo editar uma série de normas sobre o assunto, muitas vezes umas revogando as outras.

Entretanto, “em respeito ao princípio da segurança jurídica e aos cidadãos que, da boa-fé, confiaram na legislação posta e percorreram o longo caminho para obter a titulação de suas terras desde 1988”, decidiu modular os efeitos da decisão para “declarar bons, firmes e válidos” os títulos de tais áreas, emitidos até agora, com base no Decreto 4.887/2003.

I.B. Ministra Rosa Weber

Retomado o julgamento em 2015 com o voto-vista da Ministra Rosa Weber, Sua Excelência abriu a divergência e votou pela improcedência da ação, entendendo pela constitucionalidade do decreto presidencial, pois, segundo ela, o art. 68 do ADCT é autoaplicável e não necessita de lei que o regulamente, de modo que não houve invasão da esfera de competência do Poder Legislativo pela Presidência da República.

Ainda sobre o critério formal, para a Ministra a edição do decreto presidencial foi juridicamente perfeita, na medida em que apenas trouxe as regras administrativas para dar efetividade a direito que já estava assegurado no momento da promulgação da Constituição de 1988.

Ademais, sobre o critério de autoatribuição de uma identidade (critério subjetivo) para caracterizar os remanescentes das comunidades dos quilombos, a inconstitucionalidade foi rejeitada pela Ministra Rosa Weber, ao lembrar que este é o mesmo critério adotado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada no ordenamento jurídico brasileiro.

Também comentou que este procedimento não afasta a satisfação de critérios objetivos exigidos para o reconhecimento da titularidade do direito assegurado pelo artigo 68 do ADCT, pois “Mostra-se necessária a satisfação de um elemento objetivo: a reprodução da unidade social que se afirma originada de um quilombo há de estar atrelada a uma ocupação continuada do espaço ainda existente, em sua organicidade, em 5 de outubro de 1988”.

O julgamento, portanto, está temporariamente empatado e, após outro longo período, segue seu curso e retorna ao plenário, para que o Ministro Dias Toffoli possa proferir o seu voto-vista, sobre cujos fundamentos jurídicos a ANAJURE se posiciona a seguir.

III – DA INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL

O Capítulo II, do Tìtulo IV (Da Organização dos Poderes), da Constituição Federal discrimina as funções gerais do Poder Executivo, cuja segunda seção, limitada ao artigo 84, elenca a lista não exaustiva de “Atribuições do Presidente da República”. Dentre estas, há aquelas delegáveis e outras não, conforme disposto no respectivo parágrafo único; e há as que se caracterizem como típicas da Chefia de Estado, de Governo ou da Administração Federal. Neste ínterim, localizam-se os incisos IV e VI, com redação alterada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001, importantes à presente discussão:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(…)

IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

(…)

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

A dita “função regulamentar” do Poder Executivo não decorre de delegação de função legislativa, mas no desenvolvimento de “função normativa”. Desta feita, não é uma derrogação do princípio da divisão dos poderes[2], mas nela se situa.

Exatamente para manter a harmonia da separação dos poderes (arts. 2º e 60, §4º, III, da CF/88) é que este exercício está umbilicalmente atrelado aos termos da lei – geral,  abstrata e oriunda do Poder Legislativo – da qual deriva e à qual faz referência, sob pena de padecer de vício de legalidade (art. 5º, II, da CF/88). Sob tais termos, o ato normativo disposto no art. 84, IV, da CF/88 é nomeado de “decreto regulamentar” e por meio dele “o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo”.[3] Este é o caso presente e não assiste razão ao pleito do Requerente, senão vejamos.

Conforme já destacado pelo parecer da Procuradoria Geral da República no presente processo, “o Decreto nº 4.887/2003, ora impugnado, revogou expressamente o Decreto nº 3.912/2001 (art. 25), passando a figurar como a norma regulamentadora do art. 14, IV, “c”, da Lei nº 9.649/98 e do art. 2º, III, e parágrafo única da Lei nº 7.668/88”. Segue transcrição, respectivamente:

Decreto nº 4.887/2003:

Art. 25.  Revoga-se o Decreto no 3.912, de 10 de setembro de 2001.

Lei nº 9.649/98:

Art. 14.  Os assuntos que constituem área de competência de cada Ministério são os seguintes:

(…)

IV – Ministério da Cultura:

c) aprovar a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinar as suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto;

Lei nº 7.668/88:

Art. 2º A Fundação Cultural Palmares – FCP poderá atuar, em todo o território nacional, diretamente ou mediante convênios ou contrato com Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:

(…)

III – realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação.

Assim, o ato normativo cumpre a sua função constitucional, não inova na ordenamento legal, antes dele retira diretamente a sua validade jurídica e não diretamente do art. 68, do ADCT, da Constituição Federal, como alega o Requerente.

Entretanto, ainda que não houvesse lei precedente, mas permanecendo a necessidade de orientar, de maneira prática e detalhista, o exercício da função executiva, que é a sua razão de existir, dá-se causa aos “decretos autônomos”. O professor, agora Ministro da Corte Constitucional, Alexandre de Moraes, já em 2006, destacou que o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho encontrou tal hipótese na disciplina francesa em matéria de poder regulamentar[4]: “desde que não firam as normas constitucionais (às quais a jurisprudência do Conselho Constitucional equipara os princípios gerais de direito), as matérias remanescentes podem ser objeto de regulamentos autônomos”.

Ocorre que não há unanimidade doutrinária, nem jurisprudencial, sobre esta possibilidade jurídica, mas o Supremo Tribunal Federal tem, tradicionalmente, aceitado esta possibilidade e, mais ainda, sido favorável à hipótese de controle de constitucionalidade concentrado, em caso de haver indiscutível conteúdo normativo[5].

No presente caso, portanto, mesmo que o Decreto nº 4.887/03 fosse o único instrumento regulamentar, para a concretização do Art. 68 do ADCT da CF/88, ele tem conteúdo normativo específico e visa conceder efetividade a um elemento cultural elementar destes povos, suprindo uma hipotética vacância legal. Tal é a sua essencialidade que, em momento algum, o Congresso Nacional fez uso da sua competência exclusiva, para sustar possível irregularidade (art. 49, V, da CF/88). Ainda mais, como foi destacado pelo voto da Ministra Rosa Weber, porque se trata da consecução de direitos fundamentais.

Vale destacar que os dois julgados do STF, que foram consignados na petição inicial da presente ação, ambos entendem que o decreto autônomo então questionado ultrapassou sua competência, invadindo a esfera reservada a lei. Entretanto, vale atentar que tal se deu, no primeiro caso, por aumento de vencimentos, o que é explicitamente proibido por lei (art. 84, VI, a, da CF/88); e, no segundo caso, porque o dispositivo constitucional regulamentado exigia especificamente uma lei stricto sensu e não qualquer ato normativo, o que não ocorre com o art. 68, do ADCT. Andou, portanto, muito bem a Corte Constitucional nestes casos e estas hipóteses não se confundem com a presente.

Vale destacar que, apesar de todo este arcabouço normativo já referido, o Art. 68 do ADCT que, segundo a jurisprudência consolidada do STF, tem o mesmo status normativo-constitucional que os demais dispositivos constitucionais[6], conforme já denunciado pelo voto do Ministro Cezar Peluso, ainda se encontram sem efetividade, no que tange a garantir o pleno reconhecimento e acesso à terra dos remanescentes de quilombos.

Por todo o exposto, o referido decreto cumpre a exigência formal constitucional.

IV – DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL

Indica a petição inicial que o art. 68 do ADCT não abre hipótese para a desapropriação de terras alheias, mas apenas de emissão do respectivo título de propriedade, cujo critério deveria ser a comprovação da remanescência, por prova técnica e histórica, e não por descendência ou indicativo dos próprios interessados.

O art. 68, do ADCT deve ser interpretado à luz daquilo que ele é, qual seja, tanto quanto possível, uma norma transitória[7]. Isto significa que aos quilombos que estejam ocupando suas terras, quando no momento da promulgação do texto constitucional, é reconhecida a sua propriedade definitiva, mas, não significa, em qualquer hipótese, que aquelas cuja ancestralidade seja histórica e antropologicamente reconhecida posteriormente, após homologação do procedimento administrativo correspondente, não possam ter a titularidade transferida.

Tal direito foi constitucionalmente reconhecido a estas comunidades tradicionais tendo em vista o seu apego à territorialidade e, especialmente, a uso da terra como meio de sobrevivência agropecuária e, especialmente, de natureza e para subsistência familiar. Delimitar, portanto, por meio de uma exegese constitucional restrita, que não mais deveriam ser reconhecidas tais glebas, seria condenar estes povos a uma mudança cultural involuntária e deixar de cumprir um dever constitucional de proteção. Na verdade, por ser tratar de norma atinente a Direitos Humanos Fundamentais, esta deve ser interpretada ao ponto de garantir sua máxima efetividade[8], sob pena de ter modificada sua natureza.

Acerca do critério de autodefinição da própria comunidade, para caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos (art. 2º, §1º, do Decreto nº 4.887/03), é forçoso reconhecer que, apesar de ser este o mesmo padrão utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para a delimitação dos povos indígenas[9], e, como já ratificou a Ministra Rosa Weber em seu voto, é também a forma escolhida por outros órgãos internacionais, para finalidades semelhantes, ele não é o modo mais preciso e adequado, para a caracterização de um vínculo cultural, étnico e histórico, pois o seu excesso de subjetividade fragiliza o procedimento e oportuniza vícios por declarações inverossímeis, desvio de finalidades e corrupção.

Sobre o ponto de vista jurídico, não assiste melhor sucesso ao critério referido, pois um dos dispositivos supracitados, que serve de base legítima ao ato regulamentar comentado, dispõe que cabe à Fundação Cultural Palmares (FCP) a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos (art. 2º, III, da Lei nº 7.668/88), enquanto que o seu derivado prevê que a autodefinição deve ser atestada pela própria comunidade, restando apenas mero formalismo cadastral, de natureza consultiva, junto à Fundação Cultural Palmares (art. 3º, §4º, do Decreto nº 4.887/03), que deveria ser o efetivo responsável por tal reconhecimento, mediante critérios técnicos mais rigorosos e objetivos.

Tal divergência além de não criar critérios fixos que combatam desvios e vícios, ainda permite que, especificamente quanto a este item tratado, o ato normativo ultrapasse os limites da lei que lhe oportuniza e, na doutrina do também ministro do STF, Gilmar Mendes, fica clara a necessidade de retificação, pois a “distinção substancial reside no fato de que a lei pode inovar originariamente no ordenamento jurídico, enquanto o regulamento não o altera, mas tão somente fixa as ‘regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ele circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinada’ ”[10].

É de se admitir que, no tocante aos procedimentos de delimitação de propriedades, o Decreto nº 4887/03 cuidou de enumerar uma série de órgãos participantes, em uma teia de atos compostos e complexos, que estruturam um procedimento administrativo democrático – prevê, por exemplo, a presença de trabalhos e relatórios técnicos e hipótese para contraditório, mediante impugnação e contestação (arts. 3º, 7º e 8º). Tudo isto fundamenta o que foi destacado pelo Ministro Cezar Peluso, em seu próprio voto, que tal procedimento envolve várias etapas e é de difícil finalização.

Contudo, o critério primário de determinação de uma comunidade quilombola remanescente disposto na norma, deixando a prova do fato tão somente na afirmação da própria comunidade que almeja os benefícios de propriedade, não se apodera de razoabilidade constitucional, eis que delega ao próprio sujeito a imposição de critérios avaliativos, alheios a quaisquer parâmetros basilares ou corretivos, externos àquele sujeito. É dizer, a autodefinição corre o risco de se tornar uma prova suprema e intocável. Este, portanto, não pode ser um critério único, nem primário, devendo ser admitido apenas em casos quando outros meios de prova não sejam possíveis de apresentar, e ainda com cautela. Porém, essas são previsões que devem constar no regimento próprio referente à entidade responsável por tais providências de reconhecimento, qual seja, a Fundação Cultural Palmares – FCP.

Ao que parece, não se trata de uma norma que simplesmente faz uma transferência indiscriminada de propriedade, distribuindo indenizações aleatórias e tolhendo titulares de terras de seus direitos básicos. Entretanto, para que cumpra cabalmente a sua função, respeitando o bloco de constitucionalidade, os princípios gerais do direito e os requisitos formais necessários, carece de ser revisto o critério de definição dos remanescentes das comunidades dos quilombos, estando, assim, de acordo com o que enumera o jurista catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Dr. J. J. Gomes Canotilho[11], razão pela qual não pode ser completamente ejetado do ordenamento jurídico nacional.

Deve ser consignado, por fim, que não é o caso de afirmar que o Decreto nº 4887/03 é o ato normativo ideal, para garantir tais direitos. É válida, justa, lícita e constitucional a preocupação normativa em atender à vulnerabilidade das comunidades quilombolas, mas ainda assim, são necessários melhores parâmetros para a concreta identificação da comunidade – preferencialmente decorrente de lei, emanada do Poder Legislativo – formatando um procedimento mais seguro e verificando outros possíveis critérios mais robustos de identificação. Apesar desta crítica ser conveniente e recomendada, não é possível concluir pela inconstitucionalidade integral do decreto, que cumpre parcialmente a sua função ao regulamentar atividade no âmbito do Poder Executivo em garantir os direitos quilombolas ao reconhecimento de sua terra tradicional.

V – CONCLUSÃO E ENCAMINHAMENTOS

Ex positis, o Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE – Associação Nacional de Juristas Evangélicos entende que a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 deve ser parcialmente procedente, determinando a declaração parcial de inconstitucionalidade APENAS quanto ao art. 2º, §1º, e do art3º, §4º, do Decreto nº 4.887/03, retirando-os do ordenamento jurídico, em razão de estes terem ultrapassado os limites constitucionais da legislação que a precede e lhe dá fundamento.

Em assim sendo, deve prevalecer a modulação conforme disposto no voto do Ministro Cezar Peluso, para determinar o efeito ex nunc, sendo assegurada a titulação das terras obtidas com base neste regulamento e no critério de autodefinição pela própria comunidade, conforme procedimento interno fixado, mesmo que não haja ainda o registro dos títulos de propriedade nos respectivos cartórios imobiliários.

Ademais, devem ser obstaculizados e cancelados todos os procedimentos ainda em curso sobre estas mesmas bases, a não ser que por outros demonstrativos técnicos e objetivos possa ser feita prova da caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos, conforme disponha em norma específica da entidade competente para tal, qual seja, a Fundação Cultural Palmares – FCP.

No mais, a ANAJURE enviará às organizações representativas dos povos e comunidades tradicionais a Presente Nota Pública, a fim de esclarecer os seus líderes no tocante aos fundamentos jurídicos aqui descritos e analisados.

Era o que importava ser esclarecido e posicionado.

Brasília, 18 de outubro de 2017

Dr. Uziel Santana
Presidente do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE

Dr. Augusto Ventura
Diretor Jurídico da ANAJURE
 

[1] Do que destacamos a “Nota dos Servidores dos Serviços de Regularização de Territórios Quilombolas das Superintendências Regionais do INCRA e DFQ” (vide http://www.jb.com.br/pais/noticias/2017/08/16/stf-adia-julgamento-sobre-demarcacao-de-terras-quilombolas/)

[2] Quando o Executivo e o Judiciário expedem atos normativos de caráter não legislativo – regulamentos e regimentos, respectivamente – não o fazem no exercício da função legislativa, mas no desenvolvimento de “função normativa”. O exercício da função regulamentar e da função regimental não decorrem de delegação de função legislativa; não envolvem, portanto, derrogação do princípio da divisão dos Poderes.

[HC 85.060, rel. min. Eros Grau, j. 23-9-2008, 1ª T, DJE de 13-2-2009.];

[3] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006. P. 1302

[4] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2006. P. 1302.

[5] Para tanto, vide a jurisprudência indicada: ADI 2.439/MS, DJU 21.03.2002; ADI 2.155-MC/PR; ADI 3.673-MC, DJ de 03.03.206; ADI-MC 309, DJ 14.02.1992; ADI-MC 519, DJ 11.10.1991; ADI-MC 1.590, DJ de 15.08.1997; ADI 1.396, DJ de 07.08.1998; ADI-MC 435, DJ 06.08.1999; ADI-MC 3.936, DJ de 09.11.2007; ADI 3.389, DJ de 03.03.2006; ADI 1.308-RS, DJ de 04.06.2004; ADI 2.458-AL, DJ de 16.05.2003.

[6] “Os postulados que informam a teoria do ordenamento jurídico e que lhe dão o necessário substrato doutrinário assentam-se na premissa fundamental de que o sistema de direito positivo, além de caracterizar uma unidade institucional, constitui um complexo de normas que devem manter entre si um vínculo de essencial coerência. O Ato das Disposições Transitórias, promulgado em 1988 pelo legislador constituinte, qualifica-se, juridicamente, como um estatuto de índole constitucional. A estrutura normativa que nele se acha consubstanciada ostenta, em consequência, a rigidez peculiar às regras inscritas no texto básico da Lei Fundamental da República. Disso decorre o reconhecimento de que inexistem, entre as normas inscritas no ADCT e os preceitos constantes da Carta Política, quaisquer desníveis ou desigualdades quanto à intensidade de sua eficácia ou à prevalência de sua autoridade. Situam-se, ambos, no mais elevado grau de positividade jurídica, impondo-se, no plano do ordenamento estatal, enquanto categorias normativas subordinantes, à observância compulsória de todos, especialmente dos órgãos que integram o aparelho de Estado.” (RE 160.486, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 11-10-1994, Primeira Turma, DJ de 9-6-1995.)

[7] “(…) o alcance de normas constitucionais transitórias há de ser demarcado pela medida da estrita necessidade do período de transição, que visem a reger, de tal modo a que, tão cedo quanto possível, possa ter aplicação a disciplina constitucional permanente da matéria (…).” (ADI 644-MC, rel. min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 4-12-1991, Plenário, DJ de 21-2-1992.)

[8] MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. P. 122 – 158. MENDES, Gilmar Ferrreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 192 – 254.

[9] Esta metodologia é assim explicitada pelo próprio relatório do IBGE, Censo Demográfico 2010: “O reconhecimento étnico se pauta na conjugação de critérios definidos pela consciência da identidade indígena e de pertencimento a um grupo diferenciado dos demais segmentos populacionais brasileiros e pelo reconhecimento por parte dos membros do próprio grupo”. (IBGE. Censo demográfico : 2010 : características gerais dos indígenas : resultados do universo. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf>. P. 15).

[10] MENDES, Gilmar Ferrreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013

[11] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. P. 736 e 737.

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