ANAJURE se manifesta sobre Ação Civil Pública ajuizada pelo MPMG contra escola confessional de Itaúna/MG

A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais contra o Colégio Recanto do Espírito Santo, de Itaúna/MG.

I – Síntese fática

O Ministério Público de Minas Gerais justificou o ajuizamento de Ação Civil Pública (ACP) contra o Colégio Recanto do Espírito Santo com base em algumas representações recebidas pelo órgão que denunciavam a divulgação de discurso homofóbico pela escola.

As representações foram encaminhadas ao MP depois que o Colégio divulgou, em janeiro de 2022, um informativo onde alertava os pais sobre o uso de alguns símbolos que, no entendimento da direção da escola, estavam associados ao movimento LGBT, como o arco-íris e o unicórnio. Um trecho do documento afirmava o seguinte:

As principais ideologias anti-família têm feito de tudo para se instalar em nosso meio e utilizam, principalmente, os materiais infantis e estampas que parecem ingênuas. O arco-íris que é um símbolo de aliança de Deus com seu povo foi raptado pela militância LGBT, que o utiliza em suas bandeiras que têm, atualmente, seis cores: vermelho, laranja, amarelo, verde, anil e violeta.

Também tem sido muito presente no cotidiano infantil a figura do unicórnio. Ele é sempre apresentado como uma figura doce e encantadora. Sua origem é diversa, mas o perigo é o que ele representa atualmente, pois também é utilizado por personalidades para identificar alguém de ‘gênero não binário’, que não se identifica como homem, como mulher e nem mesmo como um transexual. Ou seja, não se enquadra em nada e vive totalmente sem padrões. Resumindo, é mais um símbolo contrário à lei natural, contrário aos planos de Deus. Um exemplo disso foi dado pela Burger King que lançou, em 2018, o Shake Unicórnio especialmente para a parada gay em São Paulo.

Após o recebimento das representações, o MP propôs ao colégio a resolução do caso pela via da autocomposição, sugerindo a adoção de medidas reparatórias. No entanto, a instituição educacional não reconheceu a existência de viés discriminatório no informativo que divulgou, recusando-se, portanto, a adotar qualquer medida reparatória.

O Ministério Público alegou que o informativo publicado contém “narrativa preconceituosa e discriminatória” que “não só atinge a dignidade desse grupo social, como também incita outras formas de violência contra esse grupo vulnerabilizado”. Argumentou, também, que o comunicado fere a dignidade das pessoas LGBT e presta um desserviço social pois “estimula a segregação e fomenta ideias estereotipadas e discriminatórias contra esse grupo social”.

Na concepção do órgão, “um número imensurável de pessoas foi associado a um suposto estado de antinaturalidade e contrariedade aos pressupostos da família e do divino, o que denota uma ideia de que tal grupo representa um risco moral e não se adequa aos padrões da sociedade, da família e da igreja católica, o que contraria a regra fundamental de uma sociedade plural, livre, justa e solidária, amparada em bases democráticas e cidadãs”.

Como resultado, o MP requereu: a condenação do colégio ao pagamento de indenização não inferior a 500 mil reais a título de dano moral coletivo, mencionando a reversão do valor ao movimento LGBT; a condenação do colégio à produção e divulgação de material contranarrativo no qual se retrate do comunicado publicado; a condenação do colégio à obrigação de não fazer, de forma que não publique novos informativos semelhantes ao divulgado.

II – Análise do caso

Inicialmente, pode ser útil recordar algumas disposições normativas sobre a liberdade religiosa. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, por exemplo, expressa que “toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino” (art. 18, item 1).

No âmbito nacional, destacamos a proteção conferida pela Constituição no art. 5º, inciso VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;” e no art. 19, inciso I: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”. Trata-se da proteção constitucional à liberdade religiosa e à laicidade estatal.

Como desdobramento da proteção à liberdade religiosa, a Lei n. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB) confere salvaguarda ao funcionamento de instituições de ensino qualificadas como confessionais, dotadas de orientação confessional e ideologia específicas (art. 19, § 1º, LDB). Isso significa que cidadãos religiosos podem se reunir em torno de uma instituição e conduzi-la a um funcionamento que se firme em valores e princípios condizentes com sua perspectiva religiosa.

Firmado nessas disposições, o Colégio Recanto do Espírito Santo emitiu um informativo com orientações para os pais de seus alunos sobre o uso de ícones que, na concepção de seus diretores, simbolizariam valores contrários aos sustentados pela instituição. O comunicado parte do pressupostos de que a escola, enquanto adepta de princípios católicos, visualiza a homossexualidade à luz de preceitos bíblicos que especificam a prática como pecado. Em razão disso, a instituição buscou instruir os pais de seus alunos a identificar ícones inseridos em materiais escolares infantis que são associados, de modo recorrente, ao movimento LGBT.

O colégio salienta que a perspectiva de identidade e de relacionamento adotada no âmbito do movimento LGBT é distinta da que compõe os valores da instituição, divergindo do que está contido nos textos sagrados cristãos. Ao ressaltar esse aspecto, contudo, a escola não incentiva a prática de nenhuma espécie de agressão contra pessoas LGBT.

Nesse aspecto, não parece haver qualquer incompatibilidade entre a postura da entidade e o que foi disposto pelo STF na ADO 26. A classificação feita pelo Ministério Público de que o informativo conteria discurso de ódio é decorrente de uma compreensão equivocada acerca de discurso de ódio e liberdade de pensamento. O órgão parece classificar como discurso de ódio quaisquer discordâncias acerca da pauta LGBT, como se o respeito fosse manifesto unicamente por meio da uniformidade de perspectivas e não pela manutenção de relações pacíficas mesmo em meio ao desacordo. A esse respeito, o STF destacou, na ADO 26, que a liberdade de pensamento abrange, também, ideias que gerem discordância e repúdio. Vejamos:

As ideias, nestas compreendidas as mensagens, inclusive as pregações de cunho religioso, podem ser fecundas, libertadoras, transformadoras ou, até mesmo revolucionárias e subversivas, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais.

O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade[1].

É de se imaginar que as visões cristãs sobre os princípios LGBT acabem desagradando o movimento, no entanto, é desarrazoado classificar como discurso de ódio toda fala que expresse discordância quanto aos valores LGBT. Proceder de tal modo, na verdade, representaria deturpar as bases da liberdade de expressão, que, nos termos do disposto pelo STF, protege a manifestação de ideias que geram discordância e repúdio. Ademais, não se verifica que o colégio tenha ultrapassado os limites do referido direito, visto que a orientação feita em nenhum momento estimula qualquer hostilidade às pessoas LGBT.

A pretensão do Ministério Público de Minas Gerais, embora se revista com ares de defesa do pluralismo, acaba por gerar efeito oposto, pois tem como finalidade impedir a manifestação de uma entidade confessional com base em seus preceitos. Trata-se de algo preocupante porque deixa a dúvida sobre a possibilidade dos cristãos – e não somente o colégio mineiro – poderem afirmar e instruir seus pares em conformidade com os valores bíblicos em relação a assuntos diversos, inclusive, a sexualidade. A interferência num caso como esse coloca em xeque a própria laicidade, visto que, por decorrência dela, não cabe ao Estado instituir ou embaraçar uma organização religiosa, o que abrange a sua autonomia teológica. Se, contudo, ficar a cargo do Estado dizer aquilo em que as organizações religiosas podem crer, ensinar e propagar ou não, é possível questionar até que ponto haverá uma laicidade real em vigor no país.

IV – Conclusão

Pelo exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE:

  1. Manifesta o seu entendimento de que o informativo publicado pelo Colégio Recanto do Espírito Santo não ultrapassa os limites delimitados na ADO 26 para a liberdade de expressão e de crença e, portanto, não configura discurso de ódio;
  2. Expõe sua preocupação com a interpretação adotada pelo Ministério Público de Minas Gerais, considerando os riscos dela decorrentes para a liberdade religiosa e para o pluralismo democrático;
  3. Informa que seguirá monitorando a demanda e que avaliará as medidas cabíveis.

Brasília-DF, 05 de maio de 2022.

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] Supremo Tribunal Federal. ADO 26. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em: 05 maio 2022.