O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre episódios recentes de restrições à imprensa em decisões judiciais.
1. Síntese fática
Nos últimos dias, dentro do contexto do pleito eleitoral de 2022, notícias sucessivas de decisões judiciais restringindo a publicação de conteúdos têm vindo a público. Os fundamentos para esses pronunciamentos variam, havendo, em alguns casos, a alegação de que o conteúdo cuja remoção foi determinada caracteriza “fake news” ou “desordem informacional”.
Por meio desta Nota, serão destacadas algumas decisões recentes e os seus impactos, realizando-se algumas considerações acerca da compatibilidade delas com a proteção do direito fundamental à liberdade de expressão, uma das liberdades civis objeto da atuação da ANAJURE.
2. Liberdade de expressão e de informação jornalística
A liberdade de expressão é amplamente protegida no âmbito internacional e nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu art. 19 que: “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. De modo semelhante, dispõem o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – PIDCP (art. 19) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13). A Constituição Federal de 1988 fixa que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, inciso IV).
A exemplo dos outros direitos fundamentais, no entanto, a liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser limitada pela lei quando necessário ao respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, à proteção da segurança nacional, da ordem, da saúde e da moral pública (art. 19, item 3, do PIDCP e art. 13, item 2, CADH).
No âmbito da literatura jurídica, José Afonso da Silva[1] explica que a liberdade de pensamento envolve o contato do indivíduo com os seus semelhantes, de forma que, nesse diálogo, exteriorize as suas concepções intelectuais. Sarlet[2] desenvolve a ideia de que protegê-la significa defender, também, a dignidade da pessoa humana, sobretudo no que se refere à autonomia do indivíduo, bem como a própria democracia, visto que a liberdade de expressão é uma condição imprescindível para a existência do pluralismo político.
Um dos desdobramentos da proteção a esse direito é que “não se pode impor a ninguém uma conduta ou obrigação que conflite com sua crença religiosa ou com sua convicção filosófica ou política”[3]. Outra decorrência da liberdade de expressão é a tutela da comunicação. Segundo Silva[4], as formas de comunicação possuem os seguintes princípios como norte:
(a) observado o disposto na Constituição, não sofrerão qualquer restrição que seja o processo ou veículo por que se exprimam; (b) nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística; (c) é vedada toda e qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística; (d) a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade; (…)
Nesse sentido, é possível falar também de uma “liberdade de informação jornalística”, que “alcança qualquer forma de difusão de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo de comunicação”. Especificamente a esse respeito, a Constituição Federal dispõe:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Cumpre destacar que o rol das disposições constitucionais elencadas no Art. 220, §1 que podem mitigar o exercício da liberdade de imprensa são a vedação do anonimato (inciso IV); direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV).
Na esteira desses fundamentos, o Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento da ADPF 130 sobre a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal de 1988 por manifesta incompatibilidade material, tratou profundamente sobre a liberdade de expressão e de imprensa reforçando que:
“o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas.”
Após tais considerações, vale analisar a adequação de algumas decisões recentes proferidas pelo Judiciário que impactaram o exercício da liberdade de expressão e de informação jornalística.
3. Decisões judiciais de remoção de conteúdo e a liberdade de expressão
Um levantamento do Estadão indicou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), desde o início da pré-campanha eleitoral, determinou a remoção de cerca de 334 publicações em redes sociais[5]. Em alguns casos, as remoções têm gerado manifestações de órgãos da sociedade civil, especialmente de entidades que congregam jornalistas.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) manifestou o seu protesto contra a decisão do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do TSE, que determinou a remoção de uma publicação feita pela Gazeta do Povo. No texto, a Gazeta informava: “Ditadura apoiada por Lula tira sinal da CNN”, numa referência ao regime vigente na Nicarágua[6]. Na visão da ANJ, é possível limitar a liberdade de expressão caso se identifique algum abuso, mas não se pode censurar a imprensa[7].
Em linha semelhante, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) ressaltou o risco de publicações desinformativas, mas também salientou a preocupação com decisões determinam o que um jornal pode ou não divulgar, afirmando que há outras medidas, distintas da remoção de conteúdo, que podem ser adotadas pelo Judiciário[8].
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) também manifestou preocupação com decisões recentes que impactaram a veiculação de conteúdos jornalísticos, afirmando que “as restrições estabelecidas pela legislação eleitoral não podem servir de instrumento para a relativização dos conceitos de liberdade de imprensa e de expressão, princípios de nossa democracia e do Estado de Direito”[9].
Os Conselhos Seccionais do Rio Grande do Sul, Goiás e de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil destacaram em suas redes sociais que “a liberdade de imprensa é valor inegociável”[10] e que “limitar assuntos a serem tratados por veículo de comunicação durante campanha eleitoral por ordem judicial coloca em risco a liberdade de imprensa”[11].
Além da remoção determinada pelo TSE quanto à matéria publicada pela Gazeta do Povo, o Tribunal também tem sofrido questionamentos da imprensa pela ordem feita à Jovem Pan acerca de falas de seus apresentadores sobre Luís Inácio Lula da Silva. Quanto ao caso, o TSE determinou que a emissora se abstenha de “promover novas inserções e manifestações referentes à situação jurídica do político, a quem se referiram como ‘descondenado’ e ‘ex-presidiário”’[12].
Conforme indicado no tópico 2 desta nota, a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Por isso, comporta limitações em casos excepcionais, como previsto no PIDCP. Ocorre que, nos casos em comento, não somente houve uma limitação como um esvaziamento da liberdade de expressão, mais especificamente, de imprensa. Isso acontece porque nas duas hipóteses as controvérsias decorrem mais de questões ideológicas do que de aspectos atinentes à veracidade das publicações.
No caso noticiado pela Gazeta, realmente houve a derrubada do sinal da “CNN en Español”[13], com a discussão se centrando na existência de um apoio ou não do candidato petista ao regime nicaraguense. Já no que diz respeito aos termos utilizados pela Jovem Pan, há que se considerar que existem debates acerca do significado das decisões do STF sobre a inocência de Lula, com grupos que defendem sua inocência, pelo fato de não haver condenação válida, e outros que sustentam que o ex-Presidente apenas não teve os seus atos definitivamente apreciados.
Diante da existência de visões diferentes, é natural que a imprensa reflita esse desacordo explicitando uma perspectiva ou outra. No entanto, não cabe ao Judiciário definir o que será tido como verdade ou não, especialmente quando as controvérsias são de ordem ideológica.
Além desses casos, a posição do TSE também foi posta em debate após a determinação do Tribunal de desmonetizar o canal do Brasil Paralelo e de adiar a divulgação de documentário preparado pela empresa, agendada para 24/10[14]. A argumentação da Corte relacionou aspectos atinentes à desinformação e aos impactos financeiros de atividades de pessoas jurídicas durante o pleito eleitoral.
Nesse caso, as duas medidas propostas não estão previstas no rol anteriormente elencado do art. 220, § 1º, da Constituição. No caso do documentário, a postergação de sua divulgação – quando sequer se tem conhecimento do teor da produção – é medida não prevista em lei e que substitui outras possibilidades contidas na legislação, como a concessão posterior de direito de resposta.
Conclui-se, portanto, com o entendimento de que se, por um lado, há a necessidade de lidar com a problemática da desinformação, por outro, é preciso ter cautela para que a liberdade de expressão não seja violada.
4. Conclusões
Pelo exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE:
a) Manifesta-se em defesa da liberdade de expressão e de imprensa, ressaltando a necessidade de que os tribunais brasileiros evitem a adoção de decisões que se confundam com censura;
b) Repudia a crescente interferência do TSE na liberdade de expressão e imprensa, desprezando os meios restritivos constitucionalmente estabelecidos, por exemplo, as responsabilidades ulteriores, o direito de retificação e/ou resposta, evitando a censura prévia.
c) Informa que seguirá acompanhando os desdobramentos das decisões judiciais durante o presente pleito eleitoral, e tomará as ações cabíveis para preservação das liberdades civis fundamentais.
Brasília-DF, 22 de outubro de 2022.
Assessoria Jurídica da ANAJURE
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais em espécie. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[3] SILVA, op. cit.
[4] SILVA, op. cit.
[5]https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/10/15/tse-remove-das-redes-sociais-334-postagens-sobre-presidenciaveis.htm
[6]https://www.gazetadopovo.com.br/republica/associacao-nacional-de-jornais-condena-censura-tse-a-gazeta-do-povo/
[7] Ibid.
[8]https://www.abraji.org.br/noticias/abraji-expressa-preocupacao-com-decisoes-do-tse-sobre-retirada-de-conteudo-mesmo-diante-de-possivel-desinformacao
[9] https://www.instagram.com/p/Cj5rLXDMKmn/
[10] https://www.instagram.com/p/Cj8mWy9vPne/
[11] https://www.instagram.com/p/Cj8NEVwrvkO/
[12]https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/e-mentira-que-homem-em-gravacao-da-radio-jovem-pan-trabalhe-para-a-justica-eleitoral/#
[13]https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/governo-da-nicaragua-tira-sinal-da-cnn-en-espanol-do-ar/
[14] Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE nº 11527: https://consultaunificadapje.tse.jus.br/consulta-publica-unificada/documento?extensaoArquivo=text/html&path=tse/2022/10/18/15/59/46/f21fe948e12dea0b8cd952d26da852e7652a7ee6a6ef33235102d585751068f5