Gazeta do povo: Aborto, família e drogas: atuações questionáveis da Defensoria Pública

A Vice-Presidente da ANAJURE, Dra. Edna Zilli, concedeu entrevista para a Gazeta do povo, comentando sobre a atuação da Defensoria Pública da União (DPU). Na ocasião, a Dra. Zilli defendeu o ponto de vista da ANAJURE, já manifestado em Nota Pública de apoio à criação do grupo de trabalho sobre a proteção ao nascituro (veja aqui).

“Entendemos que a DPU não tem cumprido o dever legal de proteger os indefesos. É válido defender todas as outras pautas. Mas, notadamente, não há alguém mais vulnerável do que o nascituro “, afirma a advogada.

Confira a reportagem completa abaixo, publicada originalmente na Gazeta do Povo (Veja aqui).

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Aborto, família e drogas: atuações questionáveis da Defensoria Pública

Enquanto de um lado a Defensoria Pública da União (DPU) tem exercido seu papel na defesa de grupos vulneráveis, de outro o órgão tem sido denunciado por sua “cultura de silêncio” frente a determinados temas. É o que apontam especialistas ouvidos pela reportagem, alegando que, sobretudo, grupos como o nascituro e famílias ficam à margem da proteção institucional da DPU.

Não seria legítimo afirmar, no entanto, que defensores, em particular, têm sido omissos quanto à defesa dos mais diversos grupos vulneráveis. O fato é que, na prática, embora tenham independência funcional, os profissionais não podem determinar quem serão seus assistidos.

“Defesa dos nascituros: omissão da Defensoria

Apontada pelos entrevistados como a mais notória omissão da Defensoria, a salvaguarda aos nascituros permanece sem o apoio institucional do órgão – muito embora esse grupo seja tutelado e dotado de direitos pelo ordenamento jurídico brasileiro e de tratados internacionais, aos quais o país outorgou status supralegal.

“Entendemos que a DPU não tem cumprido o dever legal de proteger os indefesos. É válido defender todas as outras pautas. Mas, notadamente, não há alguém mais vulnerável do que o nascituro “, afirma a advogada Edna Zilli, vice-presidente da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure).

A mesma Constituição Federal que incumbiu a Defensoria do amparo judicial e extrajudicial dos vulneráveis, por exemplo, é clara, em seu artigo 5.º, quanto à inviolabilidade do direito à vida. O Código Civil brasileiro ainda “põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

O Brasil, além disso, é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que estabelece, entre outras coisas, que ninguém deve ser privado da vida arbitrariamente, sendo esse um direito a ser protegido “pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”. O país conferiu status supralegal ao tratado.

Contudo, ainda não se vê uma atuação institucional da Defensoria em favor dos nascituros. Do contrário, o órgão tem adotado posições vigorosas em prol da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez – o aborto.

Em 2016, por exemplo, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) foi a própria autora da petição de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 5.581 ao Supremo, que solicitava, entre outros itens, a descriminalização do aborto por parte de mulheres contaminadas pelo zika vírus. No último dia 30 de abril, por unanimidade, a ação foi julgada prejudicada.

Em outro episódio, 2018, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro solicitou ingresso como amicus curiae à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 442, ação de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), de 2017, que pede a descriminalização do aborto, em qualquer caso, até a 12.ª semana de gestação. A ação está em trâmite no Supremo.

Outras defensorias no âmbito estadual também já vieram a público se posicionar favoráveis à descriminalização do aborto.

Deputada quer que Defensoria tenha grupo específico em prol de nascituros

À vista disso, a deputada Chris Tonietto (PSL), que representa a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto, enviou ofício à DPU exortando o órgão quanto à sua ausência institucional e solicitando sua atuação oficial no amparo aos nascituros. Em outras palavras, pede a criação de um grupo de trabalho (GT) voltado especificamente à causa.

Os GTs dão subsídio teórico ao defensor público-geral federal de modo que, em seguida, ele oriente a atuação dos defensores da “ponta”. Embora a orientação que parte dos grupos não seja vinculante, à medida em que é outorgada aos defensores independência funcional, as conclusões dos estudos indicam, de certa forma, a opinião institucional da Defensoria.

“Vemos com muito pesar a falta de um grupo de trabalho (GT) específico para essa causa [nascituros]. Portanto, o acesso à Justiça só será pleno quando todos os necessitados tiverem seu direito à defesa assegurado”, defende Edna, em nome da Anajure, que apoiou a proposta da Frente Parlamentar.

“Nossa posição está alinhada à proteção conferida pelos diplomas internacionais e nacionais à vida e ao nascituro”, afirma a associação. “A criação de um grupo temático referente à proteção do nascituro se demonstra oportuna, visto que permitirá um aprofundamento do debate e possibilitará à DPU o aperfeiçoamento de suas posições na temática, capacitando-a a melhor desempenhar o seu papel na defesa desse grupo vulnerável”.

Não obstante as Defensorias Públicas Estaduais e da União contemplem a defesa de vários grupos de pessoas vulneráveis, não há um só exemplo de grupo/núcleo especializado na defesa dos nascituros, o grupo social vulnerável por excelência”, afirma um especialista que pediu para não ser identificado.

Até a publicação dessa reportagem, a deputada Chris Tonietto afirmou não ter recebido retorno por parte da DPU. À Gazeta do Povo, a assessoria do órgão também não respondeu se pretende criar um GT em defesa dos nascituros.

“É preciso um debate interno na Defensoria para o amadurecimento das ideias, e não a imposição de um único lado. Há espaço para a defesa de todos os interesses”, disse um dos entrevistados que também pediu para não ser identificado. “Não há interesse em criar um ambiente democrático dentro da instituição, mesmo que a Constituição estabeleça que a DPU é de regime democrático; nos assustam muito os rumos que a instituição tomou.”

“Pessoas que defendem essas pautas têm medo de se manifestar. Tenho conhecimento de que alguns sofrem ameaças veladas”, afirma o especialista. Ao contrário de um promotor, por exemplo, o defensor pode ser demitido por decisão do conselho superior, pois não há vitaliciedade para o cargo.

Silêncio sobre defesa da “família”

O tema “família” também não é lembrado formalmente no escopo dos grupos de trabalho da Defensoria Pública, embora se tenha notícia de que defensores, em particular, atuem em prol de diferentes famílias vulneráveis. A DPU se limita a amparar juridicamente esse grupo apenas frente a conflitos fundiários e de moradia.

Em 2019, João Vicente Pandolfo Panitz, defensor público federal lotado em Santa Catarina, sugeriu à DPU, em um ofício, a criação de dois diferentes grupos de trabalho. Um deles, voltado especificamente à “Família e apoio à Vida”. O segundo pedido em questão sugeria a criação de um GT em prol dos profissionais de segurança pública.

No ofício, subscrito por outros 29 defensores, Panitz lembra que a Convenção Nacional dos Direitos Humanos estabelece a família como elemento natural e fundamental da sociedade a receber proteção especial do Estado. O documento não discrimina os arranjos familiares favoráveis ao amparo. “No pedido, em nenhum momento pedimos para criar um grupo voltado à família formada por homem e mulher. Seria um grupo aberto. Apenas citamos o ordenamento jurídico já existente”, explica Panitz.

“Permitimos que colegas que defendessem diferentes tipos de famílias, ou que trabalhassem com outras temáticas, pudessem participar e dar sua opinião”, afirma o defensor. “Mas acabamos tachados de misóginos e homofóbicos. Não sou contra a defesa de nenhum dos outros grupos, apenas acho que tem que ter espaço para todo mundo.”

Em resposta, Gabriel Faria Oliveira, defensor público-geral federal, a quem cabe chancelar o pedido, adotou medida raramente vista dentro da instituição: abriu referendo para que outros defensores se manifestassem sobre a proposta. A ação foi vista por alguns juristas como estratégica, à medida em que o aval ou não do pedido pudesse gerar indisposição entre o defensor público-geral e determinados grupos dentro do órgão.

A consulta aos defensores terminou em uma nota de repúdio assinada por 83 profissionais. “Vimos manifestar nosso completo repúdio à proposta de criação (…) descabida [do grupo voltado à família]”, escreveram. “O debate em torno da adoção de política institucional deve se dar com observância dos princípios e fins que regem nossa Instituição e não de acordo com convicções de ordem moral ou religiosa, ou ainda oportunismo político.”

No entendimento da DPU – mesmo com a tutela da Constituição –, a família não teria “personalidade jurídica”, razão pela qual sua proteção deve se dar na pessoa de seus membros, “estes, sim, titulares de direitos fundamentais”.

O argumento, no entanto, contradiz a atuação das próprias defensorias estaduais. Pelo menos 14 defensorias compreendem que a família é dotada do direito de proteção judicial e extrajudicial e, portanto, têm GTs voltados à causa. São elas as de Rondônia, Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul .

Para especialistas, a interpretação da DPU vai contra o próprio ordenamento jurídico brasileiro. Em um contexto de pandemia, um GT voltado à família seria imprescindível para subsidiar a atuação dos defensores, bem como a formulação e implementação de políticas voltadas para preservação e recuperação das unidades familiares em situação de vulnerabilidade.

“O simples fato de não se olhar a família juridicamente é bastante questionável. O artigo 226 da Constituição Federal preconiza que a família tem proteção especial do Estado. E, embora juristas possam interpretar isso de forma diferente – pois faz parte da hermenêutica jurídica –, [a tutela do Estado] é um fato inegável”, afirma um dos entrevistados que pediu para não ser identificado.

“Estamos enfrentando a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. No Brasil, a projeção é ter o pior PIB desde 1900; o desemprego vai ‘explodir’, casos de violência doméstica aumentaram”, diz. “Em um momento de exacerbação de vulnerabilidades que as famílias enfrentam, é bastante questionável não se dedicar um grupo de trabalho para se debater medidas de apoio a elas.”

Defesa da mulher também é alvo de questionamento

A atuação da Defensoria em prol das mulheres também tem sido questionada, sobretudo durante a pandemia. Recentemente, o grupo de trabalho instituído para a proteção das mulheres vítimas de violência focou esforços contra o que considera como linguagem “sexista” presente nos documentos oficiais da DPU.

Em nota técnica, o GT solicitou que a palavra “defensor” não seja mais utilizada em documentos oficias da DPU, pois, segundo o grupo, o termo “leva a crer que as mulheres não têm lugar nos órgãos de cúpula da instituição”.

“Em um momento de pandemia, a Defensoria deveria estar cuidando dos mais vulneráveis. Há notícia de mulheres sendo vítimas de violência em suas casas e mesmo de forças policiais coagindo de forma inconstitucional mulheres durante a pandemia”, afirma um dos entrevistados, que preferiu não ser identificado. “Por que a Defensoria não está defendendo institucionalmente essas mulheres?”, questiona ele – segundo o qual o GT apresenta como uma de suas finalidades “dar visibilidade às incontáveis violações de direitos de que são vítimas cotidianamente”.”

Defensoria do Rio já defendeu a descriminalização das drogas

No âmbito das defensorias públicas estaduais, os entrevistados citaram o que consideram como tendência a pautas consideradas permissivas no campo dos costumes por parte do órgão.”

“Em 2015, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro foi autora de um habeas corpus que pedia a descriminalização do uso de drogas. Defendia que usuários pegos com qualquer tipo de entorpecente não pudessem mais ser abordados pela polícia e levados à delegacia, para “impedir que muitas injustiças fossem cometidas”.

A instituição, dessa forma, passou a “orientar” todos os defensores em exercício a pedir automaticamente a inconstitucionalidade de qualquer abordagem de usuários de drogas no estado.

Não é, porém, o que a legislação vigente preconiza. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), o porte de entorpecentes para uso pessoal continua a ser crime, embora só possa ser punido com “advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

“Sem entrar no mérito da questão, isso é gravíssimo, um defensor público têm independência funcional constitucional. Não deve haver esse tipo de orientação”, afirma um dos entrevistados.

Neste caso, mesmo que haja um grupo de trabalho voltado ao tema, e que este disponibilize subsídio para a atuação do defensor, ele possui independência funcional para atuar como melhor entender.”

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