HOMOFOBIA E IGREJA – A Decisão do STF sobre Equiparação de Homotransfobia ao Crime de Racismo e os Reflexos para a Igreja

Por: James Andris Pinheiro l @jamespinheiro.adv

Ao tratar de matéria tão incerta no Direito brasileiro, já apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), necessário se faz que esse breve texto tenha início mencionando a Constituição da República de 88. De acordo com o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A legalidade possui tamanha relevância que, se negligenciada, pode significar não somente o abandono dos princípios que regulamentam as relações jurídicas, mas também o início de um Estado totalitário. Assim, enquanto constitui uma garantia aos particulares, representa, simultaneamente, um limite à Administração Pública, que só pode e só deve fazer o que estiver previsto na lei. Estas garantias são o sustentáculo do Estado Democrático de Direito, frequentemente alvo de incompreensões.

A LEI 7.716/1989 (Lei do Racismo).

Ao dispor sobre o tema, inicialmente é necessário mencionar as previsões legais referentes ao que comumente chamamos de crime de racismo.

A lei 7.716/ de 05 de janeiro de 1989, dispôs em seu artigo primeiro:

 “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

A referida lei, que é de 1989, foi alterada pela Lei 9.459, de 1997. Anteriormente, o artigo primeiro só previa a tipificação, ou seja, só considerava crime a discriminação ou preconceito por raça ou cor. A alteração de 1997 modificou o texto legal para abranger, também, a discriminação ou preconceito em razão da etnia, religião ou procedência nacional como crime.

Mister aduzir ainda, para introduzir a exposição sobre a decisão do STF, que o Direito Penal brasileiro não adota princípio ou sistemática de considerar tipo penal por analogia, para que haja um crime, dentre outros elementos, é necessário que se verifique a tipicidade, ou seja, a previsão legal deve ser expressa e precisamente definir o tipo penal, em suma, dizer qual ato é considerado, à luz do direito, um crime. Não basta interpretar ou aplicar analogicamente outro fato.

Uma expressão latina muito utilizada nos cursos e na prática do direito: nullum crimem, nulla poena sine previa lege, em tradução livre podemos dizer: não há crime sem lei prévia que o defina e nem pena sem que haja previsão em lei. Mantém-se o princípio da legalidade em matéria de Direito Penal, expressão que consta da Constituição da República de 1988, em seu artigo Art. 5º, XXXIX.

A referida lei de 1989 e suas alterações regulamentam circunstâncias diversas nas quais se configura o racismo. Abaixo listo parte do que consta da norma:

1 – Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos.

2 – Negar ou obstar emprego em empresa privada.

3 – Deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores.

4 – Impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional.

5 – Proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário.

6 – Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.

7 – Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau.

8 – Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar.

8 – Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público.

10 – Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público.

11 – Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades.

12 – Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos:

13 – Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido.

14 – Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas.

15 – Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.

A DECISÃO DO STF NA ADO 26 E AS SUAS INCOMPATIBILIDADES PERANTE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O STF decidiu em junho de 2019, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin, que as condutas homofóbicas e transfóbicas se enquadram na tipificação da Lei de Racismo – Lei 7.716/89. O Supremo declarou a mora do Legislativo em editar norma sobre a matéria e fixou que as previsões da Lei 7.716/89 seriam aplicadas enquanto não houvesse regulamentação pela via parlamentar.

Conforme já exposto, no entanto, não há crime sem lei que o defina nem pena sem prévia cominação legal (Art. 5º, XXXIX, CF/88). Ainda assim, houve, por meio judicial, a criminalização da homofobia, o que torna a decisão do STF suscetível a críticas, especialmente no que diz respeito ao princípio da legalidade e da separação dos poderes, visto que a tipificação de condutas compete ao Legislativo.

Não obstante tais críticas e o debate instalado na sociedade acerca do ativismo judicial, proferida a decisão pelo Supremo, faz-se necessário apresentar algumas considerações quanto aos reflexos do entendimento firmado na ADO 26 sobre o exercício da liberdade religiosa, o que se fará no tópico a seguir.

LIMITES E POSSIBILIDADES APLICÁVEIS ÀS IGREJAS APÓS O JULGAMENTO DA ADO 26

Primeiramente, o tipo penal descrito na Lei 7.716/89 e suas alterações descrevem precisamente o que deve ser considerado crime e o que pode levar uma pessoa a ser condenada, se verificados os elementos, inclusive a autoria, por discriminação ou preconceito racial, de cor, de etnia, religião ou procedência nacional. Não é o sentimento de indignação ou comoção nacional que define o crime, mas tão somente a norma penal.

Segundo, algumas ponderações essenciais sobre a decisão do STF. A ADO 26, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão foi proposta pelo PPS – Partido Socialista Brasileiro e teve como amicus curiae algumas instituições, dentre elas o GRUPO DE ADVOGADOS PELA DIVERSIDADE SEXUAL – GADVS e a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS – ANAJURE. AMICUS CURIAE é uma expressão latina que significa literalmente amigo da corte. Serve para designar uma instituição que pode oferecer elementos que auxiliem na decisão dos tribunais, por afinidade ou conhecimento da matéria a ser decidida, para assuntos que sejam considerados relevantes de grande impacto para a sociedade como um todo. A referida ADO 26 considera assuntos que interessam aos grupos de defesa de direitos de homossexuais e transexuais e da liberdade religiosa, o que justifica a presença das duas instituições acima listadas como amicus curiae, junto ao STF.

Em sua decisão, o plenário do STF reconheceu que há uma omissão do Congresso Nacional na deliberação de norma sobre a matéria, crimes de homofobia e transfobia, sendo este o principal fundamento da referida ADO, visto que se existisse lei sobre o assunto não haveria necessidade do questionamento junto ao STF.

Dos 11 ministros, 8 votaram pela aplicação do disposto na lei de racismo para casos de homofobia, ou seja, aqueles fatos seriam enquadrados como crimes se praticados em razão da condição sexual. De forma simples, é como se o STF alterasse o artigo primeiro da Lei 7716/89, acrescentando:

“Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e contra homossexual ou transexual”.

Evidentemente a parte em negrito é apenas uma exemplificação, o que teria redação própria dada por setores técnicos de redação legislativa, in casu.

A decisão do STF aprovou o voto do relator da ADO, min. Celso de Melo, elaborada em três pontos centrais:

1 – Até que o Congresso Nacional edite lei específica, condutas homofóbicas ou transfóbicas se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/89,

2 – A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio.

3 – A tese estabelece que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis.

CONCLUSÃO

Ao tecer algumas considerações finais sobre a matéria, é necessário aduzir que a Constituição da República, em seu Art. 5°, inciso XL, dispõe que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Neste caso não há que falar em crime se o fato ocorreu em data anterior à decisão do STF. Na mesma linha, deve-se considerar que a lei penal não retroage, salvo para benefício do réu, de forma que o entendimento fixado pela Corte não se aplica a casos pretéritos.

Ademais, frise-se que as igrejas continuam tendo a liberdade de ensinar sobre o pecado à luz dos seus fundamentos teológico doutrinários, desde que não profiram discurso de ódio. A reprovação da conduta homossexual ou transexual pela igreja como pecado não se torna crime, sob pena de claro atentado a um princípio e a um dispositivo constitucionais: liberdade religiosa (Art. 5º, inciso VI, CF/88). Significa que a decisão do STF não só não poderá restringir como não poderá alcançar a liberdade religiosa. Do contrário, o guardião da Constituição, contraditoriamente, violaria o imperativo constitucional. Aqui, torna-se relevante destacar o que a decisão do STF dispôs quanto ao respeito às convicções religiosas e à expressão da fé na ADO 26:

A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professa, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.

A Corte, mencionando a liberdade de expressão, ainda realçou que a manifestação de opiniões que gerem discordância ou, até mesmo, repúdio, por si só, não indica o cometimento de crime passível de sanção penal, sendo imprescindível que seja assegurado o respeito ao pluralismo e à tolerância. Vejamos nos termos postos pelo Supremo:

O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. O casoUnited States v. Schwimmer” (279 U.S. 644, 1929): o célebre voto vencido (“dissenting opinion”) do Justice OLIVER WENDELL HOLMES JR.. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento – e, particularmente o pensamento religioso – não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância”.

Finalmente, o Estado brasileiro está vinculado ao princípio da Publicidade, um dos princípios insertos na Constituição da República, segundo o qual o ato público só terá eficácia após a publicação oficial. Neste caso, não houve ainda a publicação do acórdão da decisão do STF, de 13 de junho de 2019. Isso significa que tal decisão ainda não se aplica na prática. Entretanto, apesar de não ter publicação, o que abriria prazos para eventual interposição de recursos, o Cidadania, antigo PSS, interpôs recurso de Embargos de Declaração alegando obscuridade na decisão aqui tratada e requerendo que o STF esclareça alguns pontos da decisão e não que reforme a decisão.

Pelo aqui exposto, podemos afirmar que qualquer atentado ou exposição ilegal da liberdade religiosa por órgãos, instituições ou veículos de comunicação, sob a alegação de criminalização da divulgação de ensinamentos religiosos, nos termos da lei, poderá ser reprimida ou ensejar a devida reparação civil ou responsabilização criminal por parte daqueles que derem causa.

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James Andris Pinheiro é advogado, mestre em Direito e apresentador do Programa Advocacy (@programaadvocacy) da Rede Super de Televisão.

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* O presente texto representa as opiniões e ideias do autor, estando sob sua responsabilidade.