Manifestação pública sobre a discriminação religiosa no cancelamento do curso “Parto e Espiritualidade Cristã” da USP

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A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) emite à sociedade brasileira a presente Manifestação Pública sobre o cancelamento do curso de extensão “Parto e Espiritualidade Cristã” da Universidade de São Paulo (USP).

1) Síntese Fática

Em 16 de janeiro de 2024, a Universidade de São Paulo (USP) cancelou um curso de extensão chamado “Parto e Espiritualidade Cristã” destinado a profissionais e estudantes de obstetrícia. O curso, coordenado pela Dra. Joyce da Costa Silveira de Camargo (PhD em Ciências de Enfermagem pela Universidade do Porto), propunha reflexões sobre a interseção entre a espiritualidade cristã e o processo de parto em suas diferentes fases, com aulas ministradas para a atualização de profissionais da área obstétrica e enfermagem, tendo em vista a humanização do atendimento através de uma abordagem holística que busca compreender a integralidade do paciente[1].

Em nota, a USP afirma que o cancelamento do curso ocorreu com o propósito de “zelar pela manutenção da Universidade de São Paulo como uma instituição pública e laica”[2]. Entretanto, percebe-se que tal afirmação, além de violar a carga valorativa do princípio constitucional da laicidade (art. 5º, VI, da Constituição Federal) e desrespeitar o pluralismo de ideias (art. 206, da Constituição Federal), também contradiz a conduta anterior da Universidade, que promoveu múltiplos cursos dedicados a temas de outras confissões religiosas.

Deve ser ressaltado, a princípio, que a USP, enquanto uma autarquia estadual de regime especial, possui autonomia administrativa e universitária para, conforme sua conveniência e oportunidade, adequar os cursos de extensão ofertados segundo seu próprio critério didático-científico (art. 207, CRFB)[3]. No entanto, a problemática que surge diz respeito não ao ato de cancelamento de um curso de extensão em si, mas da motivação para tanto por parte da universidade.

2) A violação à laicidade

A proteção dos direitos fundamentais é a característica basilar do Estado Democrático de Direito, sendo as instituições do Estado e o sistema jurídico projetados para assegurar o exercício pleno e efetivo das liberdades individuais e coletivas.

No que se refere à laicidade, em termos doutrinários, esta não se concretiza, por si própria, enquanto um direito fundamental; antes, ela atua como um princípio garantidor que possibilita a devida proteção a outros direitos fundamentais, como a liberdade religiosa, a liberdade de expressão, a liberdade de cátedra, etc.

Faz-se necessário, contudo, distinguir entre o modelo de laicidade adotado pela Constituição da República, também denominado de laicidade positiva ou aberta, e o laicismo restritivo vigente em países como a França. Este último se caracteriza pela hostilidade e perseguição às manifestações do fenômeno religioso no espaço público, buscando restringi-lo à esfera privada dos indivíduos, independentemente da confissão religiosa.

Em sentido diverso, a laicidade positiva, adotada pela Constituição Federal[4] em seu art. 19, I, qualifica-se por sua neutralidade benevolente para com o fenômeno religioso. Compreendendo-o enquanto dimensão essencialmente humana, o Estado Brasileiro, enquanto comunidade política secular, não sanciona qualquer doutrina ou organização religiosa, mas busca prover a liberdade e as condições necessárias para o florescimento social e privado das manifestações religiosas humanas ou de sua negação. Portanto, a laicidade não significa descrença ou extermínio do religioso da esfera pública; antes, simboliza a abertura do espaço público para a diversidade de crenças da comunidade.

A abordagem adotada de laicidade estatal envolve não apenas obrigações negativas, mas também positivas. No aspecto negativo, é vedado ao Estado promover ou subvencionar uma religião em detrimento das outras, adotar determinada confissão como oficial, impedir ou embaraçar qualquer manifestação religiosa. No viés positivo, por sua vez, a laicidade impõe ao Estado o dever de garantir a todas as confissões religiosas a sua expressão, seja esta privada ou pública (art. 5º, VI, CRFB)[5].

Assim, em decorrência dessa disposição benevolente, não há violação ao princípio da neutralidade religiosa quando o poder público busca viabilizar a prática e atendimento religioso aos fiéis, concretizada através de serviços de capelania religiosa em instituições estatais (art. 5º, VII, CRFB)[6], o ensino religioso confessional na rede pública de educação (art. 210, §1º, CRFB)[7], entre outros arranjos, sendo possível, ainda, a colaboração entre o Estado e organizações religiosas em prol do interesse público (art. 19, I, CRFB)[8]. De igual modo, não há violação da laicidade estatal quando entidades educacionais públicas promovem pesquisas e cursos acerca do fenômeno religioso nas diversas religiões, bem como sua interseção com as diversas áreas do conhecimento, como a saúde, psicologia, história, arte, e outras dimensões da vida humana.

O caso em tela, conforme exposto, viola o princípio da laicidade, tal como constitucionalmente previsto. Ao adotar uma compreensão distorcida e excludente do conceito de laicidade, a administração da USP impediu a exploração acadêmica de uma dimensão do fenômeno religioso – a interseção entre a espiritualidade cristã e o processo de parto – fundamentada tão somente em sua rejeição à presença do discurso religioso no espaço público da Universidade de São Paulo. Desse modo, é evidente a violação à neutralidade religiosa do Estado em face da manifesta hostilidade que busca excluir o fenômeno religioso do espaço da universidade.

3) Da conduta discriminatória da Universidade de São Paulo

Assim, questiona-se sobre a existência de possível caráter discriminatório do cancelamento do curso de extensão em “Espiritualidade Cristã e o Parto”. Deve-se ressaltar que esta não é a primeira ocorrência de cancelamento de eventos acadêmicos que abordam a interseção entre a fé cristã e áreas do conhecimento. Em 2014, a USP cancelou o Curso Faraday-Kuyper de Ciência, Tecnologia e Religião, que ocorreria na Escola Politécnica da USP, sob o argumento de que sua realização feriria a laicidade do Estado[9].

Poder-se-ia considerar o cancelamento do curso de extensão universitária, com base em objeções ideológicas laicistas, como uma ofensa à laicidade e à liberdade religiosa em sua hostilidade ao fenômeno religioso em geral. Contudo, uma consulta ao histórico da Universidade de São Paulo mostra que a promoção de cursos e atividades acerca da intersecção de áreas do conhecimento com outras religiosidades não foi vista como problemática em outras ocasiões.

A título exemplificativo, apenas no ano de 2023, a USP ofertou os seguintes cursos: “270400296 – A costura do sagrado: trajes de umbanda, candomblé e de folguedos derivados de ritos afro-brasileiros[10] e “80402270 – Cursos de Inverno da FFLCH 2023 – Mitologia dos orixás femininos na poesia[11], e No Caminho do Alabê[12], que aborda as manifestações musicais relacionadas ao culto dos orixás.  Em anos anteriores, pode-se, ainda, identificar a realização de cursos para promoção de técnicas de meditação budista aplicadas à saúde[13] em 2015, e mesmo a realização de cerimônias religiosas xintoístas pela reinauguração do Jardim Japonês da Universidade em 2018[14].

Ora, se o suposto caráter “laico” da instituição a impede de ofertar um curso de extensão sobre espiritualidade cristã e parto, a mesma compreensão deveria ser posta em prática no que tange a outros cursos com propostas diversas de intersecção entre o ensino e a religiosidade. Tal postura contraditória da USP torna visível a natureza discriminatória da medida, ofendendo não somente as garantias de isonomia estabelecidas pela Constituição Federal, como também o art. 20, da Lei nº 7.716/1989, que dispõe sobre o crime de discriminação religiosa[15].

Portanto, em que pese reconhecida relevância da espiritualidade no processo holístico que envolve o parto[16], não se pretende com a presente nota determinar qual curso deve ou não ser ofertado em âmbito acadêmico, mas requer-se que seja dispensado aos discentes e docentes um tratamento isonômico constitucionalmente devido, resguardado pelos direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro.

4) Conclusão

Pelo exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE se manifesta nos seguintes termos:

    1. Repudia a discriminação religiosa manifesta no cancelamento do curso de extensão em razão de sua exploração científica de temas relacionados à interseção entre o processo de parto e a espiritualidade cristã;
    2. Argui sobre a necessidade de um ambiente acadêmico estruturado no respeito mútuo e na diversidade de opiniões e perspectivas para o fomento de um espaço democrático de aprendizagem;
    3. Informa que enviará ofício à USP, repudiando a medida adotada e requerendo explicações e a apuração da devida responsabilidade, bem como adotará outras medidas cabíveis diante do caso.

Brasília-DF, 31 de janeiro de 2024.

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

 

[1]https://www.em.com.br/nacional/2024/01/6788344-usp-cancela-curso-sobre-parto-e-espiritualidade-crista.html

[2]https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/01/usp-cancela-curso-sobre-parto-e-espiritualidade-crista-que-citava-familia-tradicional.html

[3] Art. 207, CRFB: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

[4] Art. 19, I, CRFB: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

[5] Art. 5º, VI, CRFB: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

[6] Art. 5º, VII, CF: “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”.

[7] Art. 210, § 1º: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.

[8] Art. 19, I, CRFB: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

[9]Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/tubo-de-ensaio/preconceito-antirreligioso-na-usp/

[10]Disponível em: https://uspdigital.usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=270400296&cod_edicao=23001&numseqofeedi=1

[11] Disponível em: https://uspdigital.usp.br/apolo/apoObterCurso?cod_curso=80402270&cod_edicao=23001&numseqofeedi=1

[12]Divulgado pela USP em: https://jornal.usp.br/diversidade/cultura-ancestral-dos-orixas-difunde-metodos-antirracistas-com-dancas-e-musicas/

[13] Notícia disponível em: https://www5.usp.br/noticias/saude-2/fsp-forma-alunos-para-divulgar-tecnicas-de-meditacao-entre-servidores/

[14] Notícia disponível em: https://jornal.usp.br/institucional/jardim-japones-do-instituto-de-biociencias-reabre-apos-reforma/

[15] “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.

[16] MOLONEY, Sharon; GAIR, Susan. Empathy and spiritual care in midwifery practice: Contributing to women’s enhanced birth experiences. Women and Birth, v. 28, n. 4, p. 323-328, 2015; LINHARES, Carmen Heidi. The lived experiences of midwives with spirituality in childbirth: mana from heaven. Journal of Midwifery & Women’s Health, v. 57, n. 2, p. 165-171, 2012; CROWTHER, Susan A. et al. Spirituality and childbirth: An international virtual co–operative inquiry. Women and Birth, v. 34, n. 2, 2021.