Nota Pública sobre a aplicação de procedimentos de transição de gênero em crianças e adolescentes

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE –, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a aplicação de procedimentos de transição de gênero em crianças e adolescentes.

I – Síntese fática

Por ocasião do Dia da Visibilidade Trans, cuja comemoração ocorre no dia 29 de janeiro, foram publicadas diversas matérias acerca da temática. Uma, em especial, chamou atenção ao tratar de procedimentos de transição de gênero realizados em crianças. A página do G1 em São Paulo publicou uma matéria com o seguinte título: “280 crianças e adolescentes trans fazem transição de gênero no HC da USP; veja vídeos com o que eles contam sobre esse processo”[1].

No texto, há a informação de que cerca de 380 pessoas se submetem ao referido procedimento no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, havendo, dentre elas, 100 crianças na faixa de idade de 4 a 12 anos e 180 adolescentes de 13 a 17 anos.

Atualmente, o assunto é regulado por meio da Resolução n. 2.265/2019 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre “o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero”[2]. Essa Resolução traça algumas diretrizes quanto aos procedimentos possíveis de transição de gênero a depender da faixa etária. Nesse sentido, estabelece que menores de 18 anos não podem se submeter a procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero (art. 11). A hormonioterapia, por sua vez, é viabilizada apenas para os maiores de 16 anos (art. 9º). Existe, ainda, a prática do bloqueio hormonal, que poderá ser aplicada a partir da puberdade, sendo sujeito às regras de protocolos de pesquisa aprovados pelo sistema CEP/Conep em face de seu caráter experimental (art. 9º, § 2º).

Não obstante a existência de regulação por parte do Conselho Federal de Medicina, a temática traz algumas preocupações quanto às crianças e adolescentes, conforme se exporá adiante.

II – Riscos dos procedimentos de transição de gênero para crianças e adolescentes

Dentre os procedimentos citados acima como aplicáveis a crianças e adolescentes, por força da Resolução n. 2.265/2019, há a hormonioterapia/hormonização e o bloqueio da puberdade. A hormonização busca elevar os níveis de hormônios associados ao gênero oposto ao do indivíduo, de forma que ele possa desenvolver características do gênero com o qual afirma se identificar[3]. Os bloqueadores da puberdade são remédios que restringem temporariamente as mudanças ocorridas no corpo durante o processo de puberdade[4].

A utilização de bloqueadores da puberdade em crianças e adolescentes que se identificam como transgênero é justificada alegando-se prejuízos decorrentes da incompatibilidade entre o sexo biológico e a identidade de gênero[5].

No entanto, há controvérsias acerca dos efeitos da utilização desses medicamentos. Isso acontece porque a supressão de hormônios gera consequências sobre o desenvolvimento dos ossos, do cérebro e de outras partes do corpo[6].

Uma pesquisa realizada com 56 pessoas transgênero, com idade entre 10 a 19 anos, identificou uma associação entre o uso de bloqueadores da puberdade e uma densidade óssea menor[7]. Alguns médicos têm a expectativa de que essa perda óssea será compensada após a suspensão do uso do medicamento, no entanto, dois estudos indicaram que pacientes submetidos ao procedimento não se recuperaram por inteiro da perda óssea sofrida[8]. Uma análise feita pelo The Times, com base em 7 estudos realizados na Holanda, no Canadá e na Inglaterra com 500 adolescentes transgênero constatou que, durante o uso dos bloqueadores, não houve ganho de densidade óssea[9]. O risco presente nesse cenário é que a aparição de prejuízos para a estrutura óssea pode demorar anos para se tornar evidente, podendo ocasionar fraturas[10].

Uma criança de Nova Iorque se submeteu ao procedimento de bloqueio da puberdade por dois anos. No início do terceiro ano, contudo, uma radiografia detectou uma queda significativa da densidade óssea, com alguns ossos chegando aos níveis que seriam comuns em casos de osteoporose[11].

Outro receio associado aos bloqueadores da puberdade se refere ao desenvolvimento mental do indivíduo, pois os hormônios sexuais influenciam as habilidades sociais e de autorreflexão do ser humano[12]. Na Inglaterra, o Gender Identity Development Service (Gids)[13] informou que ainda não há dados sobre os efeitos psicológicos dos bloqueadores de puberdade e que não se sabe em que medida eles afetam o desenvolvimento do cérebro[14].

O National Health Service[15] (NHS), do Reino Unido, afirmou que ainda não há informações suficientes sobre os efeitos de longo prazo dos bloqueadores[16]. Em linha semelhante, o National Institute of Health and Care Excellence (NICE)[17] declarou que há poucos estudos sobre os bloqueadores e que alguns dos existentes estão sujeitos a vieses[18]. O American College of Pediatricians[19] (ACPEDs) menciona a ausência de estudos de longo prazo que demonstrem a segurança do uso de bloqueadores da puberdade, alertando para o risco de sua utilização[20].

Além do desconhecimento quanto aos efeitos desses medicamentos, outro aspecto que gera debates é a sua ministração a crianças e adolescentes, pessoas ainda em fase de desenvolvimento de suas ideias e convicções. O caso de um brasileiro demonstra os riscos existentes nisso: Robert Diego decidiu, aos 15 anos, sujeitar-se a procedimentos de transição de gênero, mas, tempos depois, desejou reverter o processo, algo que só foi possível quando ele já tinha 27 anos[21]. Na Inglaterra, a jovem Keira Bell chegou a processar o NSH depois de realizar procedimento de transição, aos 16 anos, argumentando que a equipe médica não questionou de forma satisfatória a sua decisão[22].

O que se percebe, até aqui, é a existência de um cenário onde: (1) o uso de bloqueadores tem sido associado a riscos para a estrutura óssea; (2) faltam mais estudos para se conhecer a amplitude de efeitos colaterais decorrentes do uso desses medicamentos; e (3) há relatos de casos em que adolescentes iniciaram procedimentos de transição e posteriormente se arrependeram. Tais pontos colocam em xeque a adequação da realização desses procedimentos em crianças e adolescentes.

Nesse sentido, é útil relembrar algumas disposições da legislação brasileira acerca da criança e do adolescente. A Constituição Federal de 1988, por exemplo, estabelece para a família, a sociedade e o Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente direitos como a vida, a saúde e a educação (art. 227, caput). Semelhantemente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define a proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes com base na perspectiva de que isso contribuirá para o desenvolvimento físico, moral, espiritual e social deles (art. 3º, caput).

Ao dispor sobre o direito à saúde, o ECA menciona a necessidade da efetivação de políticas públicas para que as crianças e adolescentes tenham um desenvolvimento sadio (art. 7º). Esse desenvolvimento sadio fica sob risco quando as crianças e os adolescentes são submetidos a procedimentos, como os que utilizam bloqueadores da puberdade, cujos efeitos ou não são totalmente conhecidos ou trazem prejuízos para a saúde, a exemplo das restrições ao desenvolvimento ósseo.

Dessa forma, também há a inobservância do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, um dos mais relevantes do sistema de proteção do ECA, “que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde mental, estrutura emocional e convívio social”[23].

Nota-se, portanto, além dos riscos à saúde das crianças e dos adolescentes, a incompatibilidade desses procedimentos com a lógica que fundamenta o ECA.

IV – Conclusão

Assim, pelo exposto, a ANAJURE (1) manifesta o seu repúdio à promoção de procedimentos de transição de gênero para crianças e adolescentes, considerando os possíveis riscos para o desenvolvimento humano deles; (2) comunica o encaminhamento da presente Nota ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina.

Brasília-DF, 03 de fevereiro de 2023

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] Disponível em: https://g1.globo.com/google/amp/sp/sao-paulo/noticia/2023/01/29/280-criancas-e-adolescentes-trans-fazem-transicao-de-genero-no-hc-da-usp-veja-videos-com-o-que-eles-contam-sobre-esse-processo.ghtml. Acesso em: 01 fev. 2023.

[2] Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2265. Acesso em: 01 fev. 2023.

[3] Disponível em: https://www.crfmg.org.br/site/uploads/areaTecnica/20220408[100302]Nota_Tecnica_001-22_Hormonizacao_em_pessoas_trans.pdf. Acesso em: 01 fev. 2023.

[4] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/01/16/o-que-sao-bloqueadores-de-puberdade-e-por-que-estao-no-centro-de-controversia.htm. Acesso em: 01 fev. 2023.

[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2022/11/bloqueadores-suspendem-a-puberdade-mas-ha-um-custo.shtml. Acesso em: 01 fev. 2023.

[6] Ibid.

[7] Disponível em: http://admin.endocrine.org/news-and-advocacy/news-room/2022/longer-treatment-with-puberty-delaying-medication-leads-to-lower-bone-mineral-density. Acesso em: 01 fev. 2023.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2022/11/bloqueadores-suspendem-a-puberdade-mas-ha-um-custo.shtml. Acesso em: 01 fev. 2023.

[9] Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/11/14/health/puberty-blockers-transgender.html. Acesso em: 01 fev. 2023.

[10] Ibid.

[11] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2022/11/bloqueadores-suspendem-a-puberdade-mas-ha-um-custo.shtml. Acesso em: 01 fev. 2023.

[12] Ibid.

[13] Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero.

[14] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/01/16/o-que-sao-bloqueadores-de-puberdade-e-por-que-estao-no-centro-de-controversia.htm. Acesso em: 01 fev. 2023.

[15] Serviço Nacional de Saúde.

[16] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/01/16/o-que-sao-bloqueadores-de-puberdade-e-por-que-estao-no-centro-de-controversia.htm. Acesso em: 01 fev. 2023.

[17] Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Assistência.

[18] Disponível em: https://www.bbc.com/news/health-56601386. Acesso em: 01 fev. 2023.

[19] Colégio Americano de Pediatras.

[20] Disponível em: https://acpeds.org/transgender-interventions-harm-children. Acesso em: 01 fev. 2023.

[21] Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/esterilidade-danos-psiquicos-riscos-criancas-transicao-de-genero/. Acesso em: 01 fev. 2023.

[22] Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/epoca/destransicao-aquece-debate-sobre-mudanca-de-genero-25295076. Acesso em: 01 fev. 2023.

[23] STJ – REsp: 1587477 SC 2016/0051218-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 10/03/2020, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/08/2020.