O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a decisão em sede de tutela de urgência proferida pela 4ª Vara Cível de Taguatinga em sede da Ação Civil Pública nº 0708412-98.2023.8.07.0001, que determinou a retirada de pregação religiosa da internet por suposto discurso de ódio.
I – Síntese fática
Em 19 de fevereiro de 2023, o pastor norte-americano David Eldridge, durante o Congresso Geral da União de Mocidades das Assembleias de Deus de Brasília (UMADEB), proferiu sermão religioso onde falou de práticas que corresponderiam a “fazer uma reserva no inferno”.
Segundo o pregador, conforme sua doutrina religiosa, haveria um lugar “reservado no inferno” para aqueles que praticam condutas como homossexualidade, bissexualidade, transgeneridade, entre outras, aludindo a punições divinas para essas práticas após a vida, conforme o trecho do sermão abaixo:
“Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno, toda drag queen tem uma reserva no inferno. Você, rapaz, que está usando calça apertada, que é um espírito de homossexual, você vai pro inferno. Você, moça, que quando sai da sua casa a sua saia é tão curta e tão apertada, você sabe o que está fazendo? Você tem uma reserva no inferno.”
Frente à pregação religiosa em questão, as associações Aliança Nacional LGBTI e Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas ajuizaram a Ação Civil Pública nº 0708412-98.2023.8.07.0001 junto à 4ª Vara Cível de Taguatinga em face da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Brasília, almejando a condenação da igreja por danos morais coletivos, bem como a remoção do conteúdo da pregação vinculado ao site.
Em 2 de junho de 2023, o juízo responsável pela ação deferiu a tutela de urgência, determinando a remoção do vídeo do sermão proferido pelo pastor das redes sociais da igreja e do evento, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por dia.
Frente aos fatos apresentados, a ANAJURE emite a presente Nota Pública.
II – Da proteção à liberdade religiosa
A liberdade religiosa é direito fundamental amplamente resguardado por diferentes textos normativos. Essa vasta proteção está relacionada à relação íntima entre espiritualidade e dignidade da pessoa humana, considerando o papel exercido pela religião ao conferir norte, significado e identidade aos seus adeptos. Compreendendo isso, o art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que:
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.
De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece, em seu art. 18, item 1:
Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica preceitua nos seguintes termos:
Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado (grifo nosso).
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, traz a seguinte disposição:
Art. 5º. (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Cabe recordar que a proteção constitucional à liberdade religiosa abrange tanto o aspecto interno (forum internum) quanto o aspecto externo (forum externum) da religião. Aquele diz respeito à liberdade que o indivíduo tem de aderir ou mudar de religião. Esse processo de formação de convicções está ligado ao forum internum do indivíduo, ou seja, à sua esfera íntima de existência.
Igualmente importante o aspecto externo desse direito, que diz respeito à manifestação da religião. De fato, qualquer convicção profundamente assentada levará inevitavelmente a manifestações práticas de várias maneiras, que foram resumidas pela Declaração Universal de Direitos Humanos na forma de “ensino, prática, culto e observância”.
III. Exceção do discurso religioso na criminalização da homofobia (ADO 26)
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 (ADO 26) deteve como objetivo primário questionar a suposta omissão do Congresso Nacional em editar lei específica que criminalizasse condutas discriminatórias em virtude de práticas consideradas homofóbicas ou transfóbicas. Sob a relatoria do Min. Celso de Mello, a suprema corte brasileira compreendeu que tais tipos de violência são traduzidas como expressões de racismo, ajustando-se aos preceitos da Lei nº 7.716/1989 (Lei de Discriminação Racial).
O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, reconheceu que a repreensão penal à homotransfobia não deve restringir ou limitar o exercício da liberdade religiosa. Como visto, enquanto uma garantia fundamental, a liberdade de religião, atrelada à liberdade de expressão, é fundamento essencial em uma comunidade plural e democrática.
Segundo o voto do Min. Alexandre de Morais, a liberdade de expressão religiosa compreende:
“não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos – políticos, filosóficos, religiosos – e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo”.
Pontua-se, a partir do exposto, que não cabe ao Estado utilizar seu poder coercitivo com o propósito de persuadir alguém a manifestar qualquer prática religiosa ou a mudar a forma como a pratica. A crença, enquanto ato interno do indivíduo, e o credo, enquanto manifestação externa da crença, estão apartados do âmbito de atuação da autoridade governamental[1].
Nesse sentido, como assevera Jónatas Machado, o Estado Constitucional não pode intervir nas decisões de fé individual e no cumprimento das obrigações religiosas assumidas de forma livre pelas pessoas, mesmo quando envolvam a participação em comunidades religiosas minoritárias ou impopulares[2]. Percebe-se que, para o pleno exercício da liberdade, é necessário que o Estado respeite a esfera de soberania da comunidade religiosa ao não interferir na interpretação e vivência de seus dogmas e preceitos de fé.
Em termos práticos, isso significa que não será tipificada, como crime de homotransfobia, a afirmação de contradição entre os princípios éticos e morais defendidos por uma convicção religiosa e aqueles adotados por indivíduos que adotaram práticas homossexuais em suas vidas. Afinal, em sentido contrário, estar-se-ia aniquilando o pluralismo de ideias e crenças no cenário nacional.
Reconhecendo a realidade exposta, o STF, no julgamento da ADO nº 26, garantiu aos fiéis e ministros os direitos de: (1) pregar e divulgar livremente o seu pensamento; (2) externar suas convicções em conformidade com os seus livros sagrados; (3) ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica; (4) buscar e conquistar prosélitos; e (5) praticar atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, seja coletiva ou individualmente, conforme manifesta o acórdão do julgado:
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero” (grifos nossos).
IV. Da liberdade de expressão e do discurso de ódio
De fato, a proteção à liberdade religiosa não alberga em seu interior a liberalidade para discursos que promovam espécies de tratamento desumano, degradantes ou que incentivem a violência contra quaisquer grupos sociais. A ANAJURE, como realizado anteriormente, repudia qualquer discriminação, hostilidade ou violência em razão de gênero ou orientação sexual.
Entretanto, faz-se de suma importância diferenciar entre liberdade de expressão/religião e discurso de ódio. A incompreensão dos termos citados é danosa ao Estado Democrático, uma vez que pode gerar a supressão de um em virtude do alargamento do outro.
O STF, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 134.682, de relatoria do Min. Edson Fachin, assegurou que o discurso discriminatório somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis, quais sejam: “uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior”.
Logo, à luz do conteúdo transcrito, é preciso que todas as etapas sejam cumpridas para que o discurso seja considerado discriminatório. O mesmo não se dá com o discurso religioso legítimo, visto que, como menciona André Ramos Tavares[3], este envolve a concepção de que determinada crença há de ajudar o terceiro a alcançar um nível mais elevado de bem-estar, de salvação, não implicando esta conduta em discriminação, mas em manifestação de boa vontade do fiel para com seu interlocutor.
V. Análise do caso concreto
Ao considerar os fatos, percebe-se conduta atípica por parte do pastor estrangeiro. A fala do religioso não pode ser caracterizada como discurso de ódio, não havendo promoção de violência ou discriminação, mas sim a declaração daquele que crê ser o juízo divino sobre os que praticam determinadas condutas. Deste modo, o discurso protegido em tela se encontra plenamente abrangido pelo direito à liberdade de expressão religiosa.
Nota-se que o agente do caso é líder religioso, dedicado à pregação de sua fé evangélica pentecostal. Convidado a ministrar em um culto público realizado em congresso religioso de uma denominação religiosa específica, voltou-se aos próprios cristãos em sua fala. Assim, ainda que os dizeres possam provocar certo grau de animosidade por parte de grupos específicos, não se infere qualquer intento violento direcionado a quaisquer pessoas ou grupos sociais.
Como expresso no próprio voto do Min. Relator Celso de Mello na ADO nº 26,
“não constitui demasia assinalar, neste ponto, que a divulgação objetiva de fatos ou de narrativas religiosas não basta, só por si, para configurar hipótese de ilicitude, civil e/ou penal, pois jamais se pode presumir o intuito doloso de ofender subjacente à exposição descritiva veiculada pelos líderes e pregadores religiosos com apoio no magistério contido nos Livros Sagrados”.
Portanto, a pregação realizada pelo pastor não constitui discurso de ódio que promova a supressão ou redução da dignidade dos outros indivíduos. Antes, protegido pela decisão da ADO nº 26, o conteúdo de sua fala encontra guarida no direito à liberdade de expressão e de crença. Possíveis discordâncias fazem parte da sociedade plural e democrática, constitucionalmente prevista no Brasil, devendo ser discutidas no âmbito público, mas não judicial.
É descabida, assim, a decisão liminar em análise, que suprimiu a liberdade de divulgação da prédica religiosa do pastor David Eldridge e da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Brasília. Considerando a legislação pátria e os precedentes apontados, inexiste qualquer “fumaça do bom direito” (fumus boni juris) no pleito proposto pelas associações autoras. De igual modo, não há “perigo na demora” (periculum in mora) que justifique a tutela pretendida, posto que não existe risco de dano irreparável a direitos subjetivos na divulgação de discurso religioso lícito.
Não obstante o exposto, surpreende que o juízo da 4ª Vara Cível de Taguatinga tenha, em sede da decisão em análise, trazido em sua fundamentação argumentos de caráter religioso, buscando fazer um juízo doutrinário do sermão proferido, conforme o trecho abaixo:
“Além disso, a divulgação de vídeos do evento contendo o suposto discurso de ódio contra comunidade específica, baseadas em supostas interpretações religiosas que em grande parte também não refletem o espírito cristão, podem em tese fomentar atitudes discriminatórias e de violência por parte dos fieis contra pessoas integrantes da comunidade LGBT+, o que não se admite.” (grifo nosso).
O trecho da decisão acima colacionado viola a laicidade estatal ao efetuar em sua fundamentação um juízo subjetivo da magistrada acerca da correção e acerto teológico-doutrinário das declarações do líder religioso. Não é lícito ao Estado avaliar ou julgar a adequação das interpretações doutrinárias de grupos religiosos, ou se determinada declaração “reflete o espírito cristão”.
Tal conduta do juízo, além de violar a liberdade de consciência e crença e o livre exercício dos cultos religiosos, também levanta questionamentos quanto à imparcialidade da magistrada que introduziu suas próprias crenças e avaliações religiosas no juízo quanto ao mérito do caso em tela.
Pelo exposto, observa a inadequação da decisão liminar em análise que, sem fundamento jurídico adequado, termina por suprimir a liberdade de expressão e de culto do líder religioso e da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Brasília, violando a laicidade estatal e a garantia constitucional à liberdade religiosa.
IV – CONCLUSÃO
Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE se manifesta nos seguintes termos:
A) Repudia qualquer tentativa de repressão aos direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, do pastor David Eldridge;
B) Repudia a decisão liminar proferida, visto que seu conteúdo viola frontalmente o direito à liberdade de expressão religiosa no Brasil, restringindo a esfera eclesiástica de constituir e proclamar seus dogmas e credos livremente, como assegura a Constituição Federal.
Brasília-DF, 23 de junho de 2023
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] GEORGE, Robert. Making men moral: civil liberties and public morality. Oxford: Clarendon Press, 1993. p. 43. Com efeito, o exercício da religião, pela natureza desta, consiste primeiro que tudo em actos internos voluntários e livres, pelos quais o homem se ordena directamente para Deus; e tais actos não podem ser nem impostos nem impedidos por uma autoridade meramente humana” (Dignitatis Humanae, 3).
[2] MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo) ateísmo. Livraria do Advogado Editora, 2021. p. 145.
[3] TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 3, n. 10, p. 17-47, 2009.