Parecer sobre o Documento Final da Conferência Nacional de Educação para a elaboração do novo Plano Nacional de Educação 2024-2034

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A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) emite à sociedade brasileira o presente Parecer sobre o teor do Documento Final da Conferência Nacional de Educação para a elaboração do novo Plano Nacional de Educação 2024-2034.

1) Síntese fática

A ANAJURE, no dia 19 de janeiro, ao lado de seus parceiros, publicou uma Manifestação Pública sobre o Documento Referência que seria debatido na Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2024. Na oportunidade, diversas seções foram apontadas como problemáticas não somente do ponto de vista da moral da população brasileira, como também a partir de uma perspectiva jurídica.

Em que pese a emissão da manifestação citada, bem como de ter atuado na função de Observadora na CONAE, a ANAJURE expressa sua profunda preocupação com os termos que foram mantidos, reformulados e acrescidos na conferência ao Documento Final, resultado da deliberação conclusiva da CONAE, que servirá de base para o novo Plano Nacional de Educação. Nesse sentido, emite esta atualização da primeira manifestação pública, renovando a denúncia de diversos pontos nocivos aprovados na conferência.

2) CONAE, PNE e Documento Final

Em 12 de setembro, foi publicado o Decreto Lei 11.697/23, convocando extraordinariamente a CONAE de 2024, agendada para ocorrer de 28 a 30 de janeiro de 2024 em Brasília – DF. O tema central do evento foi “Plano Nacional de Educação 2024-2034: Política de Estado para assegurar a educação como um direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”.

O Plano Nacional de Educação (PNE), citado no tema, é um instrumento de fundamental importância para a educação brasileira, na medida em que fundamenta as políticas educacionais que vigorarão no território nacional pela próxima década. Assim, uma vez estruturado, necessita de aprovação pelo Congresso Nacional e, respectivamente, de sanção pela Presidência da República.

A conferência citada foi promovida pelo Ministério da Educação (MEC) e precedida por conferências estaduais, distritais e municipais, coordenadas pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). O evento teve como suposto propósito “contribuir para a apresentação do novo PNE, válido pelo decênio 2024-2034”.

Além de diagnosticar a situação educacional, seus resultados incluíram diretrizes, metas e estratégias para a próxima década. A CONAE tem objetivos específicos, como avaliar a implementação do PNE atual, subsidiar a elaboração do próximo PNE 2024-2034 e contribuir para identificar desafios e necessidades educacionais.

A CONAE, conforme disposto no art. 2º do Regimento Geral da Conae (RGC), “possui caráter deliberativo e apresentará um conjunto de propostas para subsidiar a apresentação e a implementação do novo Plano Nacional de Educação – PNE […]”. Para tanto, de acordo com o art. 1º, § 1º, do RGC, o debate será “orientado pelo Documento Referência[1].

Desse modo, o Documento Referência, elaborado pelo FNE, detém sua importância no fato de que serviu para orientar as deliberações da CONAE, culminando, a partir da consolidação do Documento-base na conferência, na elaboração do Documento Final, objeto da deliberação final da CONAE. Este documento foi entregue pelo Fórum Nacional de Educação (FNE) ao Ministério da Educação (MEC), concedendo subsídios para o Projeto de Lei do PNE a ser enviado ao Congresso Nacional.

Nota-se que o Documento Final aprovado na CONAE não se concretiza enquanto o Plano Nacional de Educação 2024-2034. Antes, como dito, aquele concede as bases para o texto formulado pelo MEC a ser debatido como Projeto de Lei no Congresso Nacional.

Pontua-se que o Documento Final encontra-se dividido em sete eixos, que apresentam uma contextualização conceitual e histórica de cada temática. Após a elucidação de cada eixo, existem as respectivas proposições, aptas a consolidarem os assuntos abordados. Por fim, para cada proposição, é elencado um conjunto de estratégias com a finalidade de colocá-las em prática. Os eixos são os seguintes :

  • Eixo 1 – O PNE como articulador do Sistema Nacional de Educação, sua vinculação aos planos decenais estaduais, distrital e municipais de educação, em prol das ações integradas e intersetoriais, em regime de colaboração interfederativa;
  • Eixo 2 – A garantia do direito de todas as pessoas à educação de qualidade social, com acesso, permanência e conclusão, em todos os níveis, etapas e modalidades, nos diferentes contextos e territórios;
  • Eixo 3 – Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade – equidade e justiça social na garantia do direito à educação para todos e o combate às diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência;
  • Eixo 4 – Gestão democrática e educação de qualidade – regulamentação, monitoramento, avaliação, órgãos e mecanismos de controle e participação social nos processos e espaços de decisão;
  • Eixo 5 – Valorização de profissionais da educação – garantia do direito à formação inicial e continuada de qualidade, ao piso salarial e carreira e às condições para o exercício da profissão e saúde;
  • Eixo 6 – Financiamento público da educação pública, com controle social e garantia das condições adequadas para a qualidade social da educação, visando à democratização do acesso e da permanência; e
  • Eixo 7 – Educação comprometida com a justiça social, a proteção da biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia de uma vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da pobreza.

Segundo o próprio Documento Final (p. 17), “tais eixos buscam reunir as necessárias diretrizes, estratégias, proposições e ações indispensáveis para conformação de políticas de Estado para a educação nacional, tendo por referência as lutas históricas, movimentos e produções encaminhadas pela sociedade e governos que ratificam uma visão democrática e republicana de educação para o país […]”.

De igual forma, menciona (p. 16), “é tarefa de todos e todas, portanto, seguir reafirmando a defesa da democracia, da vida, dos direitos sociais e da educação e, neste contexto, de políticas democráticas de Estado, por meio da construção de um projeto de nação soberana e de Estado Democrático, ancorado em um PNE fruto de amplo pacto social”.

O Documento Final, como visto, ressalta diversas vezes a necessidade de elaborar concretas políticas de Estado para a educação nacional no PNE, que, como consequência, não deverão ser alteradas pela natural modificação política de futuros governos.

Todavia, o Documento Final afasta-se da imparcialidade esperada das políticas de Estado. O Documento propõe para a educação nacional a imposição de concepções ideológicas radicais e controversas, contrárias às presentes disposições da legislação nacional e à vontade da parcela majoritária da população. Em diversos trechos, o Documento manifesta predileções partidárias–ideológicas, adotando tom mais condizente com propostas partidárias de governo do que com um documento estatal que visa orientar a elaboração de políticas públicas. Cite-se, a título exemplificativo, os seguintes trechos:

  • Os retrocessos na agenda nacional, ao longo de 2016 e 2022, acentuaram políticas, programas e ações neoliberais, ultraconservadoras, como expressões hegemônicas do ideário da extrema direita” (p. 14).
  • “Entre 2019 e 2022, intensificaram-se ações e políticas que impingiram fortes obstáculos e retrocessos à democracia, à participação social e à garantia dos direitos sociais (p. 14).
  • De tal forma que se consolidou-se como espaço estratégico em defesa do Estado democrático de direito e de contraposição aos inúmeros retrocessos produzidos a partir do golpe de 2016” (p. 15).
  • A conjuntura política atual, após a eleição de um governo do campo democrático-popular, resultado de ampla coalizão, indica, portanto, a retomada do Estado Democrático e de Direito, para a construção de políticas públicas de Estado direcionadas à garantia dos direitos sociais, a exemplo da educação” (p. 15).
  • Dessa forma, é necessário garantir que as reformas educacionais não cedam a pressões reducionistas de interesses privados e oriundas de um modelo que enxuga o papel do Estado, como as agendas neoliberais que cresceram nos últimos anos no campo educacional” (p. 66).
  • Na mesma linha, se faz urgente a contraposição efetiva do Estado, nas suas diversas esferas federativas, às políticas e propostas ultraconservadoras, garantindo a desmilitarização das escolas, o freio ao avanço de processos e tentativas de descriminalização da educação domiciliar (homeschooling); às intervenções do movimento Escola Sem Partido e dos diversos grupos que desejam promover o agronegócio por meio da educação […]” (p. 67).
  • “A defesa do encarceramento e da internação, assim como a realização dessa prática pelo judiciário, reflete o ideário higienista da sociedade brasileira, sendo considerada uma estratégia de ressocialização, um “benefício”, uma forma de corrigir o adolescente, e a internação é o tratamento indicado […](p. 90).
  • […] Como afirma o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, o direito é uma tecnologia de controle e racialização de corpos negros e por isso a crítica à branquitude deve ser encarada como um exercício incômodo, mas necessário para ser possível avançar na promoção de justiça racial e na reumanização de sujeitos que foram coisificados ao longo da nossa história” (p. 90).
  • No entanto, a virada conservadora, e governos de extrema direita, tomaram as pautas da diversidade, como um ataque direto às pautas de “costumes” gerando retrocessos nos campos político, jurídico e social” (p. 123).

 O documento, contudo, não se limita a trazer trechos de teor ideológico-partidário no tocante à política nacional. Em diversos momentos, o texto insere disposições e conceituações que buscam promover nas políticas públicas educacionais a chamada “ideologia de gênero” (abordagens pós-estruturalistas da teoria crítica e queer aplicadas a questões de sexualidade e gênero) e perspectivas restritivas da laicidade que ocasionaram graves violações à liberdade religiosa das escolas confessionais.

 3) Ideologia de Gênero

É mister destacar que a Constituição Federal prevê que a educação é um dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade (art. 205, CF), tendo como princípios, dentre outros, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF); o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF) e a gestão democrática do ensino público (art. 206, IV, CF). Tais princípios são reproduzidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (art. 3º).

Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aponta como dever da família, da comunidade e da sociedade em geral assegurar a efetivação dos direitos referentes à educação, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4º, ECA).

Destaca-se, mais, que compete aos diferentes entes federados a elaboração de políticas públicas em matéria de educação (art. 22, XXIV; art. 24, IX, CF), cabendo à União a coordenação da política nacional de educação (art. 8º, § 1º, LDB) e a elaboração do Plano Nacional de Educação (art. 9º, I, LDB). Aos Estados (art. 10, III, LDB) e Municípios (art. 11, I, LDB), cabe elaborar e executar políticas e planos educacionais específicos, de acordo com o plano nacional.

Assim, destacamos a elaboração da Lei nº 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação, na qual o Congresso Nacional, legítimo representante do Povo brasileiro, democraticamente rejeitou o estabelecimento da ideologia de gênero no Plano Nacional de Educação, por certo carregada de uma semântica ideológica que não corresponde aos mores maiorum civitatis da nação brasileira. Esta foi uma legítima e democrática opção do Legislador nacional.

A tentativa de impor aos estudantes – crianças e adolescentes – novas teorias que repercutem nos valores morais da sociedade brasileira suscita sérias reflexões sobre sua aplicabilidade no Sistema Nacional de Educação. Em primeiro lugar, sobre a teoria de gênero em si, pelo seu caráter controverso e que exige uma ampla e profunda discussão sobre suas premissas, fundamentação científica, conclusões, e limites de aplicabilidade. Ademais, há que se considerar, de igual modo, os limites entre as responsabilidades de família e escola na educação das crianças sobre temas morais.

Os principais tratados, pactos e declarações de direitos humanos internacionais estabelecem que é tarefa da família a formação moral das crianças e adolescentes[2]. Trata-se, portanto, de um direito humano fundamental assentado no princípio da dignidade da pessoa humana[3]. Assim, a mera tentativa de o Estado imiscuir-se em assuntos da órbita privada e familiar dos indivíduos já se configura em grave violação de direito.

A ideia de uma prevalência estatal diante de assuntos sobre os quais, frise-se, os pais devem preponderar, demonstra uma desvirtuação do papel do Estado, que, ao extrapolar a esfera política, sufoca a soberania parental em matérias que a própria legislação deixou ao alvedrio da família. A teoria de gênero, portanto, contraria um costume e direito já consolidado na sociedade brasileira e em todo o mundo: a primazia dos pais na educação moral – e aqui se incluem ensinos sobre sexualidade – dos filhos.

Nobres propósitos de combater preconceitos jamais poderão justificar a prática de abusos contra crianças – pessoas em desenvolvimento, que demandam proteção integral (art. 6º, do ECA e art. 227, da CF/88) – e o desrespeito ao direito dos pais na formação moral dos filhos.

Pontua-se que, como dito, enquanto que o atual PNE, por decisão democrática, calou-se no que diz respeito à ideologia de gênero, o Documento Final é repleto de menções a tal construto teórico. A valorização, o debate e a promoção da diversidade de orientações sexuais é algo continuamente incentivado ao longo do texto, repercutindo em suas proposições e estratégias para o PNE.  Dentre os trechos identificados, pode-se citar: 

  • A próxima década na educação deve ser pavimentada no exercício, em todas as instituições, espaços e processos, do respeito, da tolerância, da promoção e valorização das diversidades (étnico-racial, religiosa, cultural, geracional, territorial, físico-individual, de deficiência, de altas habilidades ou superdotação, de gênero, de orientação sexual, de nacionalidade, de opção política, dentre outras) (p. 11). 
  • 3.2. Implementar, assegurar estruturalmente, e garantir […] uma política educacional que seja antirracista (com efetiva implementação da Lei nº 10.639, de 2003), antixenofóbica, antimachista, antimisógino, antimilitarista e antiautoritária, antietária, anticolonial, antiexploração, antisexista, antiLGBTQIAPN+fobia e anticapacitista (p. 56).
  • 613. 10.17. Garantir a realização do registro da autodeclaração dos(das) adolescentes acerca da cor/raça, bem como a identidade de gênero e orientação sexual (p. 111).
  • A defesa do direito à educação deve estar atrelada à defesa dos direitos humanos de diferentes grupos, coletivos e movimentos, entre eles feministas, indígenas, negros, povos do campo, das águas, e das florestas, quilombolas, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência, TGD, TEA, altas habilidades/ superdotação, pessoas surdas, surdocegas, ambientalistas, para a construção de uma cultura e ambientes educativos negros e antirracistas, com igualdade de gênero, anticapacitistas, de convivência inter-religiosa, e superação de toda forma de fundamentalismo, xenofobia, sexismo, misoginia, LGBTQIAPN+fobia, segregação, discriminação, entre outros (p. 120).
  • Garantir e reconhecer o direito à educação de todos(as) os(as) bebês, crianças, adolescentes, jovens, adultos(as), idosos(as), por meio de políticas de equidade que permitam o acesso, permanência, aprendizagem e conclusão em todas as etapas e modalidades da educação básica e do ensino superior. As políticas também devem considerar as diversidades de raça/ cor, etnia, gênero, orientação sexual […] (p. 123).
  • 1.2. Prover e garantir a oferta de formação inicial e continuada dos(as) profissionais da educação básica voltada para […] educação sobre gênero e orientação sexual, com recursos públicos e por meio de programas e políticas pensados pelo Estado (p. 127).
  • 2.4. Inserir na avaliação de livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), de maneira explícita, critérios eliminatórios para obras que veiculem preconceitos à condição social, regional, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, identidade de gênero, linguagem, condição de deficiência ou qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos humanos (p. 131).
  • 2.6. Inserir e implementar na política de valorização e formação dos(as) profissionais da educação, a discussão de raça, etnia, gênero e diversidade sexual, na perspectiva dos direitos humanos, adotando práticas de superação do racismo, machismo, sexismo, LGBTQIAPN+fobia, capacitismo, e contribuindo para a efetivação de uma educação antirracista, laica, anticapacitista e não LGBTQIAPN+fóbica (p. 131).
  • 2.11. Incentivar e apoiar financeiramente pesquisas sobre gênero, orientação sexual e identidade de gênero […] (p. 131).
  • 2.17. Desenvolver e ampliar programas de formação inicial e continuada em sexualidade e diversidade, visando a superar preconceitos, discriminação, violência sexista e LGBTQIAPN+fobia no ambiente escolar, e assegurar que a escola seja um espaço pedagógico livre e seguro para todos(as), garantindo a inclusão e a qualidade de vida (p. 132).
  • 2.24. Desenvolver políticas e programas educacionais, de forma intersetorial, que visem à implementação do PNE, em articulação com as Diretrizes Curriculares Nacionais, com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBTQIAPN+, a Lei Brasileira de Inclusão e Estatuto da Igualdade Racial (p. 133).
  • 2.27. Desenvolver ações conjuntas e articuladas pelo diálogo e fortalecimento do FNE com as diferentes Comissões Nacionais, da Igualdade Racial, Direitos Humanos, Educação Escolar Indígena, Educação do Campo, EJA, educação especial na perspectiva de Educação Inclusiva, LGBTQIAPN+, dentre outros (p. 133).
  • 2.30. Estimular a criação de linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação do Brasil que visem ao estudo da diversidade étnico-racial, ambiental, do campo, de gênero e orientação sexual […] (p. 133).
  • 2.50. Garantir o direito ao nome social aos estudantes com idade inferior aos 18 anos, sem necessidade de anuência dos pais e mães […].
  • 1.4. […] É fundamental efetivar o alcance dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS/ ONU), nas redes públicas e privadas de educação, com acompanhamento do SNE […][4].
  • 1.8. Garantir o cumprimento imediato, integral e efetivo, em todos os entes federados, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental (Resolução CNE/ CP nº 2/ 12) […].
  • 2.1. Efetivar e garantir a transversalidade da EDH nas políticas públicas, estimulando o desenvolvimento institucional e interinstitucional das ações previstas no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) nos mais diversos setores[5].

4) Liberdade religiosa das Escolas Confessionais

O Documento Final menciona em múltiplos momentos sobre a proteção da laicidade. Todavia, questiona-se a abrangência de significado que o termo possui à luz da construção do texto como um todo. Afinal, segundo o próprio Documento, é ressaltado que:

  • 254. Um Estado laico é uma manifestação do secularismo em que o governo estatal mantém uma posição oficial de imparcialidade em relação a assuntos religiosos, não demonstrando apoio ou oposição a qualquer religião. A educação pública, portanto, deve seguir o preceito fundamental da laicidade. As instituições educacionais privadas ou comunitárias podem qualificar-se como confessionais, atendidas a orientação confessional e a ideologia específicas, o que não dá o aval de a educação qualificar-se como doutrinária. 
  • Uma educação democrática […] exige que os níveis, etapas e modalidades da educação básica, bem como a educação superior, se pautem pelo princípio da laicidade, entendendo-o também como um dos eixos estruturantes de uma educação pública e democrática. Desde os projetos político-pedagógicos e planos de desenvolvimento institucionais até o cotidiano das instituições de ensino, da gestão e da prática pedagógica, a laicidade é um princípio constitucional, fundante da educação com qualidade social, pública, gratuita e inclusiva para todas as pessoas. Nenhum projeto, política ou instituição educacional pode se pautar no proselitismo e na intolerância religiosa. Além de ir contra os princípios constitucionais do Estado de Direito, instituições e profissionais da educação que ferem o princípio da laicidade do ensino caminham na contramão de todos os avanços nacionais e internacionais dos direitos humanos e da educação em direitos humanos […].

É necessário compreender o significado de laicidade e sua repercussão para as escolas confessionais. Matéria relevante, sobre esse ponto, analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2017, versa sobre a manutenção do ensino religioso confessional em escolas públicas através do julgamento da ADI 4.439. O STF reconheceu que o art. 210, § 1º, da Constituição Federal, autoriza o ensino religioso confessional nas escolas públicas; bem como estipula o fato de as crianças e os adolescentes possuírem direito subjetivo ao ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina dos horários normais das escolas públicas de nível fundamental, ministrado conforme suas confissões religiosas.

Menciona-se que a Suprema Corte brasileira procedeu de modo correto, uma vez que não se pretende, em nenhum momento, a supremacia de determinada denominação religiosa, mas tão somente o direito à liberdade de consciência e de religião, expressa por meio da educação através das instituições de ensino confessionais e do ensino religioso, que detém dimensão doutrinária voltada a uma religião específica, sendo o componente intelectual da formação religiosa.

É preciso distinguir entre laicidade (laicidade positiva ou aberta) e laicismo (laicidade restritiva). A laicidade, como dito, impõe ao Estado não só uma obrigação negativa, mas também positiva. No aspecto negativo, significa que este não pode promover ou subvencionar uma religião em detrimento das outras, adotar determinada confissão como oficial, ou impedir a manifestação de qualquer visão religiosa. No viés positivo, por sua vez, a laicidade impõe ao Estado o dever de garantir, a todas as confissões religiosas, a sua expressão, seja esta privada ou pública. Portanto, ao garantir o ensino religioso nas escolas, o Estado de forma alguma viola o seu caráter laico; pelo contrário, garante-o.

Essa laicidade positiva frente ao fenômeno religioso, adotada pela Constituição Federal em seu art. 19, I, difere do o laicismo, que se manifesta enquanto proceder caracterizado pela perseguição e restrição  da religiosidade, que busca reduzi-la ao espaço privado da vida humana. Dessa forma, dizer que as instituições privadas e comunitárias que se qualificam como confessionais não podem “doutrinar” e, como consequência, realizar o “proselitismo” é uma nítida violação à liberdade religiosa, garantida no art. 5º, VI, da Constituição Federal, e da liberdade de ensino dessas instituições (art. 19, §1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).

Como ressalta o Documento ainda, escolas confessionais e profissionais que buscassem “doutrinar” ou realizar o proselitismo estão contra os princípios constitucionais do Estado de Direito, ferindo a laicidade e caminhando em direção contrária aos “avanços nacionais e internacionais dos direitos”. Ora, como visto, é nítido que a laicidade expressa no Documento está muito distante daquela prevista na Constituição Federal e em outros documentos internacionais de direitos humanos, que protegem a manifestação pública da crença religiosa.

No que tange à liberdade religiosa, é relevante lembrar do julgamento pelo STF da ADO 26, que reconheceu que a repreensão penal à homotransfobia não deve restringir ou limitar o exercício da liberdade religiosa.

Conforme julgado, enquanto uma garantia fundamental, a liberdade de religião, atrelada à liberdade de expressão, é fundamento essencial em uma comunidade plural e democrática. Isso significa a liberdade de: (1) pregar e divulgar livremente o seu pensamento; (2) externar suas convicções em conformidade com os seus livros sagrados; (3) ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica; (4) buscar e conquistar prosélitos; e (5) praticar atos de culto e respectiva liturgia.

Assim, aplicado ao contexto das escolas confessionais, nota-se que a liberdade religiosa protege uma vasta gama de doutrinas e preceitos que podem ser arguidos e ensinados no contexto escolar sem qualquer violação de direitos humanos ou necessidade de perseguição contra as instituições e professores.

5) Outros problemas

            Além da ideologia de gênero e de políticas laicistas em relação ao ensino religioso nas escolas públicas e privadas, outros pontos do Documento Final se apresentam como problemáticos à luz do estipulado no texto. Menciona-se: conselhos e comitês fiscalizadores; desqualificação das escolas privadas e de suas liberdades constitucionais; apoio à promoção de formação em direitos humanos a partir “coletivos e movimentos” nas instituições de ensino; críticas ideológicas ao agronegócio; avaliação ideológica de desempenho dos professores; dentre outros:

  • 9.6. Estabelecer políticas direcionadas ao acompanhamento, supervisão e avaliação da EaD, visando resguardar a qualidade da oferta e combater todas as formas de desqualificação da educação e de financeirização, privatização, terceirização e transferência de responsabilidades do Estado na educação à iniciativa privada, e contra todos os ataques aos direitos trabalhistas e previdenciários de seus profissionais (p. 109).
  • Especialmente no Brasil pós-pandemia, e pós governo de extrema direita, durante os últimos anos, o que se viu foi a não efetivação de um conjunto de políticas e diretrizes voltadas à garantia da educação inclusiva, e um ataque sistemático à diversidade e a todos os seus movimentos e coletivos, na contramão das suas principais lutas e avanços sociais conquistados […]. Na educação, materializaram-se um conjunto de políticas educacionais de base ultraconservadoras como a educação domiciliar (homeschooling), militarização das escolas, e intervenções do movimento Escola Sem Partido, do agronegócio e retomada da privatização da educação. 
  • 2.48. Criar mecanismos para assegurar o encerramento das atividades do programa nacional das escolas cívico-militares, em todos os estados e municípios da federação em atendimento ao Decreto nº 11.611, de 19 de julho de 2023, e às normas constitucionais que definem a competência exclusiva da União para legislar sobre princípios e diretrizes do sistema educacional (p. 134).
  • Ressalta-se, assim, a importância da garantia da gestão democrática também para a rede privada de ensino, tanto de educação básica como superior, haja vista que a materialidade dessa concepção nas redes de ensino pública e privada é essencial para a garantia e a manutenção das ideias e processos democráticos (p. 142).
  • É necessário superar a ideia, posta em prática em alguns estados e municípios, de modificar os planos de carreira em função do piso salarial para introduzir remuneração por mérito e desempenho, em detrimento da valorização da formação continuada permanente e da titulação ou, ainda, de vincular a remuneração a resultados de desempenho dos educandos e professores nas avaliações internas e externas em âmbito municipal, estadual, distrital, federal e internacional, nos testes próprios ou nacionais.
  • Garantir que a nomeação de diretores(as) se dê mediante eleição direta e com participação da comunidade escolar e educacional. Assegurar o caráter público e democrático da gestão da escola pública, vedando a participação de empresas, entidades filantrópicas, religiosas e militares na gestão escolar (p. 153).
  • 2.19. Criar, implementar e assegurar mecanismos de monitoramento, avaliação e regulamentação das escolas e instituições educativas da rede privada, referentes à oferta da educação básica, técnica e superior, nas suas diversas etapas e modalidades, bem como garantir, por meio de leis específicas, o respeito aos marcos regulatórios e que integrem o Sistema Nacional de Educação. 
  • […] Os princípios que devem orientar a formação de professores(as) da educação básica e da educação superior são necessariamente os mesmos, independentemente do lócus dessa formação, seja nas IES públicas ou nas IES privadas.
  • 2.4. Instituir, impulsionar e apoiar, em todas as instituições educativas do país, programas e ações de formação em direitos humanos de diferentes grupos, coletivos e movimentos, visando a constituir valores e ambientes educativos e sociais […] (p. 205).

Menção honrosa, dentre os pontos polêmicos e ideológicos citados, merece a instituição do Sistema Nacional de Educação (SNE). A princípio, o SNE foi cogitado para ser uma articulação administrativo-colaborativa dos sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em prol da educação brasileira.

Sem examinar, neste momento, possíveis pontos positivos ou negativos de sua operabilidade técnico-jurídica no cenário nacional, deve ser ressaltado que o Documento Final busca instrumentalizar o SNE conforme suas pautas político-partidárias para atingir objetivos escusos. Por exemplo, através de alterações das orientações curriculares, almeja promover visões LGBTQIAPN+ por meio de políticas de formação de professores e de investimento de infraestrutura para este fim: 

  • 3.1. Garantir e implementar, na instituição do SNE, condições que assegurem uma educação fundamentada no respeito aos direitos humanos como premissa de formação cidadã […] tendo como perspectiva o direito à diversidade e à acessibilidade em todas instâncias. Além disso, busca-se garantir permanência e formação para a educação em direitos humanos, com orientações curriculares articuladas para combater o racismo, o sexismo, o machismo, o capacitismo, a xenofobia, a LGBTQIAPN+fobia […]. De tal modo que sejam assegurados o debate, o respeito e a valorização da diversidade étnicoracial, de gênero e de orientação sexual, dos povos originários, dos povos tradicionais […] (p. 56).
  • A consolidação de um SNE deve ter, como um dos horizontes estratégicos, a urgente necessidade de superação das desigualdades sociais, étnico-raciais, de gênero e relativas à diversidade sexual (p. 37).
  • [O Sistema Nacional de Educação deve prover, ademais:] y) condições institucionais que permitam o debate e a promoção da diversidade étnico-racial, e o respeito aos demais, independente de gênero e orientação sexual, por meio de políticas de formação e de infraestrutura específicas para este fim (p. 41).

Este alinhamento ideológico pode ser mais uma vez visto na perspectiva de que o SNE deve ser “coerentes com os avanços do campo histórico, social, cultural e educacional de luta pela democracia e alinhados com os avanços políticos daquelas e daqueles que sempre lutaram e ainda lutam pelas pautas emancipatórias na perspectiva da justiça social […]” (p. 125). Ora, qual o propósito de propagar a ideologia sem que exista algum mecanismo de controle e fiscalização apto a corrigir eventuais “desvios”:

  • 1.12 Consolidar, na lei do SNE e, em consequência, nas leis e regulamentos próprios dos respectivos sistemas, os conselhos nacional, estaduais, distrital e municipais, plurais e autônomos, com funções deliberativas, consultivas e propositivas, fiscalizadoras e de controle social […] (p. 54).
  • […] Em relação à educação privada, a regulação pelos órgãos de Estado precisa atender às regras e normas estabelecidas pela legislação e pelo SNE, em consonância com os demais sistemas de ensino (p. 161).

 6) Conclusão

Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, em seu compromisso em defesa dos direitos fundamentais, em especial, a liberdade religiosa e educacional, manifesta-se nos seguintes termos:

a) Ressalta preocupação com as diretrizes, metas, proposições e estratégias apresentadas no Documento Final para a elaboração do Plano Nacional de Educação 2024-2034, especialmente no que se refere aos apontamentos contrários à liberdade religiosa das escolas confessionais e à tentativa de adoção e institucionalização de teorias críticas e pós-estruturalistas de gênero no sistema educacional brasileiro;

b) Convoca os representantes do Congresso Nacional à mobilização e adoção das medidas necessárias à elaboração coerente do Plano Nacional de Educação 2024-2034, que respeite direitos e garantias fundamentais, com a consequente revisão dos trechos problemáticos destacados na presente manifestação;

c) Informa que encaminhará a presente manifestação às autoridades responsáveis e representantes pertinentes.

Brasília-DF, 21 de março de 2024

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

Colaboradores do Programa de Apoio a Instituições de Ensino Confessionais (PAIEC):

Matheus Carvalho
Leonardo Balena
Gabriela Moura
Joshua Blake
Lucas Vianna
Gizelle Eishila
Leonardo Balena
Gabriela Moura
Joshua Blake
Lucas Vianna
Débora Dittrich
Ana Paula Lopes
Kelly Moraes
Débora Lourenço
Danielle Ferreira
Gabriel Peluso
Gabriel Casaroli
Débora Dittrich
Ana Paula Lopes
Kelly Moraes
Débora Lourenço
Danielle Ferreira
Gabriel Peluso
Gabriel Casaroli

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[1]https://www.gov.br/mec/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conferencias/conae-2024/documento-referencia.pdf

[2] Por exemplo: o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prescreve em seu artigo 13 que o direito dos pais de direcionar a educação moral dos filhos de acordo com as suas próprias convicções se enquadra no direito humano fundamental à liberdade, demandando respeito e proteção. De igual modo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 12, item 4, estabelece que: “Artigo 12.4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”.

[3] A Constituição Federal, da mesma forma, é enfática ao reconhecer a família como sendo a base da sociedade, devendo ser respeitada sua primazia na educação, inclusive moral, dos filhos menores (arts. 226, 227 e 229).

[4] A citação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, no objetivo 5 (igualdade de gênero), salienta, no tópico 5.6, o “acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos”.

[5] O plano mencionado, na p. 33, ponto 9, ressalta a inclusão no currículo escolar de temáticas relativas à orientação sexual e identidade de gênero.