VIA REVISTA TEOLOGIA BRASILEIRA
1) Considerando o cenário jurídico e político do País, o senhor acredita que o evangelicalismo e o exercício da liberdade religiosa no Brasil estão, realmente, ameaçados? O que há de realidade e alarmismo nesse sentido?
O cenário constitucional e legal do nosso país ainda nos é favorável. Ainda vivemos sob a égide do conjunto de liberdades civis fundamentais conquistadas na Constituição Federal de 1988, entre essas, em especial, a liberdade religiosa, de culto e de expressão. Agora, o “ainda” da minha resposta não é sem razão. Porque, como explico no meu livro Um cristão do direito num país torto (2012), com a ascensão ao poder de um partido ainda mais notadamente à esquerda, o modelo democrático de liberdades proclamado em nossa Constituição passou a sofrer sérias tentativas do que chamamos no Direito de capitis deminutio, isto é, de relativização e ruptura. O exemplo maior disso foi e continua sendo o PL 122, proposto pelo PT. Num momento em que, mundialmente, no âmbito da Ciência do Direito, advoga-se a tese do “direito penal mínimo”, isto é, uma diminuição dos tipos de conduta que se caracterizam como um delito, porque justamente se sabe que a pretensão punitiva do Estado não resolve o problema da criminalidade ou da discriminação, o Governo Federal fomenta e investe na aprovação de um projeto de lei que na sua primeira versão chegou a prever a prisão de pastores que pregassem que a homossexualidade é pecado. O projeto ainda previa o fechamento de igrejas por até três meses. Isso é realmente preocupante, além de ser uma aberração jurídica. Combate-se discriminação com políticas públicas educacionais, não com pena de prisão.
Agora, como jurista cristão, tenho também uma avaliação mais crítica de alguns movimentos ativistas no meio evangélico, porque, sem muito discernimento espiritual e material das situações políticas em que vivemos, propõem uma espécie de guerra santa, levando muita gente, pela desinformação, a, com suas ações e palavras, dar razão a quem nos chama de promotores do hate speech (discurso de ódio) e de outras formas de discriminação para com os que não acreditam nos nossos valores. É preciso saber que vivemos num Estado Democrático de Direito e sob a égide de uma cultura que não mais está completamente fundada nos valores cristãos. Para a liderança cristã evangélica, as palavras de ordem devem ser “informação e discernimento”, porque ainda temos muitas liberdades asseguradas. O ponto é saber exercê-las.
2) Que considerações e lições os líderes e a Igreja evangélica do nosso país podem tirar, no sentido do que o senhor disse antes, no caso envolvendo o Deputado Marcos Feliciano que se diz perseguido simplesmente pelo fato de ser evangélico? Realmente, a liderança cristã do nosso país deve tomá-lo como modelo de ação?
O caso do Deputado Marcos Feliciano é, indubitavelmente, um paradigma para todos os que, como nós da ANAJURE, militam em defesa das liberdades civis fundamentais — de todos, não só dos cristãos. É um paradigma porque serve como exemplo de “o que se pode e se deve fazer” e “o que não se pode e não se deve fazer”. O Deputado, talvez pela sua inabilidade e pouca experiência política — é de se ressaltar que ele está no primeiro mandato — naquele momento cometeu erros impensáveis para um parlamentar evangélico. Então, a forte oposição recebida não foi pelo simples fato de ele ser evangélico.
Seja como for, quanto a este caso, para conhecimento geral, já que o Deputado em outro contexto fez uma crítica pública a ANAJURE, dizendo que nós não o ajudamos, isso não procede. O parlamentar nos procurou, foi bem atendido, e o nosso Conselho Diretivo Nacional, sob recomendação do Conselho Consultivo, aprovou a sua defesa no caso. Ficou, então, convencionado com o Deputado que: primeiro, ele deveria sair totalmente da exposição midiática (em parte provocada pelos graves erros no discurso dele); segundo, eu mesmo disse ao parlamentar que politicamente seria improvável que ele saísse da Comissão por pressão do movimento LGBT, mas que isso poderia vir a acontecer no caso de procedência e condenação nos dois processos que havia no Supremo Tribunal Federal contra ele. Então, ficou acordado que ele nos remeteria cópias desses processos para fazermos sua defesa jurídica. Do mesmo modo, designamos um jurista da ANAJURE para fazer a sua defesa jurídico-política nos bastidores do Congresso Nacional. Tudo isso está documentado e nossa parte do acordo foi cumprida. Mas o que aconteceu é que infelizmente da parte do deputado nada foi cumprido. Ao contrário, o parlamentar logo após disso divulgou um vídeo, neste padrão alarmista e pouco sábio de que falamos acima, acentuando e provocando o clima de guerra santa que já estava instalado no País, inclusive se portando como uma espécie de “grande defensor do Evangelho”, como se Cristo precisasse exclusivamente dele ou de qualquer um de nós para que as portas do inferno não prevaleçam contra Sua igreja. Por isso mesmo, à época, pessoalmente, posicionei-me contra este tipo de atitude.
A Bíblia nos mostra que os que viverem piedosamente em Cristo serão perseguidos e não que a perseguição traz piedade. É de se ressaltar também que havia outros nomes evangélicos naquele momento que poderiam ter ficado no lugar dele na Comissão. Então, a pergunta que se faz é: o apego ao cargo de presidente da Comissão era pela defesa do seu direito de ali ficar, pensando no bem em geral do movimento político evangélico no Congresso, ou por um egoístico interesse eleitoreiro pela exposição midiática que se teve? O Senhor que sonda mentes e corações certamente o sabe muito bem. Seja como for, graças a Deus que ele permaneceu e está fazendo um bom trabalho, porque ao menos se tem impedido o avanço de grupos antidemocráticos e anticristãos nesta importante Comissão. Certamente, este fato deve ter o ajudado a amadurecer enquanto político e cristão.
3) Vivemos hoje no seio da Igreja evangélico um certo “ativismo social” que, infelizmente, em alguma medida, lembra o mesmo “ativismo esquerdista, ateísta ou laicista” que tanto combatemos. É como se muitos dos chamados ativistas cristãos estivessem usando as mesmas armas e discursos, só que em lados opostos. Qual a análise que o senhor faz deste fenômeno?
Lamentavelmente, o chamado ativismo cristão tem enveredado por caminhos não muito bons. Se é bem verdade que precisamos sim de grupos políticos de pressão em esferas como a do Congresso Nacional (e nós na ANAJURE apoiamos e defendemos muitos desses, v.g., Brasil sem Aborto), é triste constatar que muitos dos chamados ativistas cristãos do meio evangélico brasileiro usam esta onda político-institucional contra os valores da igreja — que certamente existe — como uma espécie de cabo eleitoral para suas pretensões pessoais, que nada tem a ver com a defesa das liberdades civis fundamentais. O projeto é pessoal e não pelo bem do evangelicalismo brasileiro ou mesmo da sociedade como um todo. Façam uma rápida pesquisa nas próximas eleições e verão vocês que muitos dos que estão aí gritando e vociferando “em defesa da igreja”, agindo pouco sabiamente, na verdade, estão a preparar seus palanques eleitorais. A máxima é: quanto mais barulho e exposição midiática melhor. Tudo isso sob o fulcro de certa teologia ou sociologia do medo, que faz com que muitos cristãos inocentes úteis vejam “chifres em cabeça de cavalo”, para usar um ditado popular do nordeste, e assim acabam por apoiar e votar nesses pretensos defensores da igreja.
Muitos, inclusive, que chegaram agora nos movimentos pró-vida, pró-família e em defesa da igreja, que não têm história e o devido preparo espiritual e intelectual, já se sentem como os verdadeiros guardiões do cristianismo, numa espécie de cruzada dos tempos pós-modernos, unicamente contra o movimento gay (ressalte-se), já que contra a corrupção e a favor da ética, por exemplo, poucos se prestam a trabalhar (isso não dá votos). Oxalá realmente fossem os nossos guardiões! Mas, na verdade, suas ações em geral têm promovido infelizmente hate speech contra pessoas, contra adversários políticos e às vezes até mesmo contra irmãos seus na fé que não concordam com tais posturas. Fazem, neste sentido, um desserviço aos que, nos bastidores, como muitos juristas da ANAJURE e outros movimentos sérios, lutam realmente pela igreja brasileira, sem alarde, histerismos e estrelismos.
Eu creio que o verdadeiro ativista cristão é aquele que se esconde atrás da cruz de Cristo, que sabe que ele mesmo não é imprescindível para a defesa da fé cristã, que tudo é por mercê e graça de Deus, e que a sua luta não é contra pessoas, ainda que seus inimigos. Mais ainda: o verdadeiro ativista cristão é aquele que luta não para que o Brasil seja um País obrigatoriamente cristão, mas para que seja um País em que haja liberdade para se crer ou não no Evangelho de Cristo.
Por fim, o verdadeiro ativista cristão não é certamente aquele que pratica o chamado slacktivism (ativismo de sofá), que fica atrás de um computador, dando opiniões a respeito de realidades que ele não tem a humildade de reconhecer que não conhece a fundo, porque nunca a experienciou. Esses não têm responsabilidade para com seus líderes — porque não estão sob a autoridade de ninguém — nem para com as consequências do que dizem, de modo que acabam sendo promotores do mesmo ativismo antidemocrático e anticristão que combatem.
4) Que análise o senhor faz da liberdade religiosa, tomando em consideração o modelo de Estado e de sociedade que existem hoje?
Nós vivemos hoje na teologicamente chamada sociedade pós-cristã ou pós-moral, como preferem filósofos como o francês Gilles Lipovetsky (A era do vazio, 1983). Na Europa isso está muito bem claro e definido. Há uma espécie de individualização ou internalização da fé, que outrora era expressa normalmente nas esferas institucional e comum da sociedade. Ou seja: antes a religião cristã estava marcantemente presente no espaço público-estatal, inclusive transmitindo (infelizmente, muitas vezes impondo) seu sistema de cultura e valores, como o foi no Medievo. Depois, com o advento da Reforma protestante, o cristianismo passou para o seu correto lugar, que é o da convivência harmoniosa com os contrários, agora no chamado espaço comum, não mais no espaço público, porque, graças ao protestantismo histórico, ocorreu a laicização do Estado.
Mas como na humanidade nada acontece com perfeição por ação humana, a modernidade trouxe em si uma apelativa descrença em qualquer tipo de religiosidade. Isso se acentuou a tal ponto de chegarmos a um momento de privatização da fé, onde não mais se admite nem mesmo os próprios valores da herança cultural cristã. Daí essas tentativas atuais de se excluir os elementos da fé cristã, frutos da nossa historicidade enquanto nação, dos espaços público-institucionais. Agora na pós-modernidade, deu-se um passo ainda mais negativo e autoritário, onde ocorre a individualização ou internalização da fé de modo que não se possa mais exercê-la sequer nos espaços comuns da sociedade. Isso está muito claro e presente na cultura europeia.
Na minha análise, pelo que tenho visto nos discursos acadêmicos e na atuação de instituições como o STF, mais um pouco, e assim o será também no Brasil. Por enquanto, no nosso país, estamos na fase de privatização da fé. Um simples exemplo para ilustrar esse percurso histórico que descrevo é a impossibilidade que um jogador de futebol tem hoje de, ao marcar um gol, comemorar mostrando uma camisa com frases em louvor a Deus. A FIFA o proíbe e pune, porque é politicamente incorreto.
5) Como base no que o senhor disse acima, em especial, tomando em consideração os valores desta sociedade pós-moderna e pós-moral em que vivemos, como é possível compatibilizar e exercer a fé cristã no Brasil? Como deve ser, por exemplo, a relação das Igrejas com o Estado no que diz respeito à proclamação do Evangelho em locais públicos?
No nosso país, temos orientado a liderança evangélica no sentido de, nas suas ações que envolvam os espaços públicos e comum, sempre buscarem parcerias e autorizações do Poder Público. Um culto em praça pública, marchas, etc., tudo isso exige planejamento municipal, por isso mesmo se deve entender que não se trata, nesses casos, de cerceamento de liberdade religiosa. Em países como Argentina, França, etc., todas as igrejas por lei são obrigadas a isso e há muito tempo. Ainda mais: nesses países, há registro oficial de igrejas e necessidade de alvará de autorização de funcionamento e tudo isso sem haver cerceamento de liberdade religiosa. Faz parte da organização do sistema administrativo e jurídico de um Estado Democrático de Direito. Aqui no Brasil, ainda hoje, é possível a qualquer um abrir na esquina de sua casa uma igreja, sem se pedir autorização para isso.
Agora, o que acontece é que aquele vácuo institucional e legal que havia na frágil democracia brasileira da década de 80, por exemplo, onde cultos de evangelismo na praça principal da cidade eram comuns, não há mais. O país cresceu, as demandas por direitos de todos são outras, e o Poder Público responde a isso com administração e legislação regulatória. E isso não é de todo ruim, ao contrário. É razoável uma igreja fazer um culto em praça, com um som estridente de trio elétrico, ao lado de um hospital de idosos? Creio que não e por isso há, em geral, nos municípios, um código de posturas democraticamente aceitáveis e toleráveis.
Agora, evidente que há também esta tendência cultural pós-moral que acentuei antes, inclusive refletida no conjunto de propostas legislativas que tramitam no Congresso Nacional brasileiro e que, realmente, tendem a um cerceamento ou mitigação da nossa liberdade religiosa, de culto e de expressão. O que precisamos, então, é discernir quando estamos diante de uma exigência democrática ou de uma imposição cultural e institucional anticristãs. Porque assim poderemos definir qual deve ser a nossa resposta enquanto igreja. Este é um dos objetivos da ANAJURE, por exemplo.