O que aconteceu: Guarnição policial orientou interrupção de culto realizado por 05 pessoas da mesma família, dentro de residência em Forquilhinha/SC, para evitar aglomeração e proliferação da COVID-19.
Onde: Forquilhinha/SC
Quando: 02.04.2020
Provas: Boletim de ocorrência (AQUI) Vídeo da Visita do Comandante (AQUI)
PARECER DA ANAJURE: O Boletim de Ocorrência lavrado indica que, no dia 02 de abril de 2020, uma guarnição policial efetuava fiscalização em estabelecimentos comerciais quando foi acionada para verificar uma ocorrência em bairro residencial de Forquilhinha/SC. Lá, os policiais conversaram com a moradora de uma casa onde os familiares, 05 pessoas, estavam reunidos, dentro de casa, em oração.
A recomendação da polícia foi de que o culto fosse interrompido e de que não houvesse aglomeração de pessoas, para evitar a proliferação da COVID-19.
Diante do relato extraído do Boletim de Ocorrência, algumas considerações jurídicas preliminares precisam ser feitas. Inicialmente, vale destacar a proteção conferida pela Constituição Federal de 1988 ao lar: trata-se de asilo inviolável (art. 5º, XI, CF/88). Assim, como regra, não cabe ao Poder Público ditar o que ocorre dentro das casas. As hipóteses de interferência são limitadas: flagrante delito; desastre; prestação de socorro ou determinação judicial.
No contexto da COVID-19, temos visto a implementação de uma série de medidas restritivas, sendo necessário, no entanto, manter o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Desse modo, é desproporcional interromper um tempo de oração entre um grupo de 05 pessoas de uma mesma família. De fato, não seria razoável que se utilizasse o espaço residencial para gerar aglomeração de pessoas, o que poderia, inclusive, ter repercussão penal. Todavia, não é essa circunstância que temos no presente caso. Eram apenas 05 pessoas reunidas e de uma mesma família. Caso haja vedação de momentos de oração como este, as famílias sequer poderão, também, se reunir para fazer suas refeições ou ver televisão, por exemplo, se a mesma lógica for adotada indistintamente.
Ademais, frise-se que a orientação para interrupção de uma oração entre familiares no âmbito doméstico representa uma violação ao direito fundamental à liberdade religiosa (art. 5º, VI, CF/88). Conforme temos orientado exaustivamente, não é recomendável que as igrejas realizem cultos públicos, pois, de fato, poderiam funcionar como local de proliferação do vírus. A proibição de momentos de oração entre pessoas da mesma família, no entanto, é desproporcional.
A ação da Polícia Militar teve como fundamento o Decreto n. 515/2020, do Estado de Santa Catarina, segundo o qual:
Art. 3º Ficam suspensos, em todo território catarinense, pelo período de 30 (trinta) dias, eventos e reuniões de qualquer natureza, de caráter público ou privado, incluídas excursões, cursos presenciais, missas e cultos religiosos.
A suspensão de grandes ajuntamentos está em consonância com as orientações da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. No entanto, é necessário que os decretos sejam mais precisos, indicando que a suspensão não se refere ao ato de culto em si, mas às aglomerações, sob pena de inconstitucionalidade. Quando se menciona, genericamente, a suspensão de cultos – e não de atividades que geram grandes ajuntamentos – surge margem para ações desproporcionais, como a interrupção de culto doméstico entre pessoas da mesma família.
Por fim, merece menção a postura do Comandante-Geral da Polícia Militar de Santa Catarina, o Coronel Carlos Alberto de Araújo Gomes Júnior, que, na manhã de hoje (04.04.2020), foi à residência onde houve a interrupção da oração e explicou à proprietária que não há restrição à liberdade religiosa, conforme vídeo disponibilizado nesta página. A atitude conciliatória e de diálogo com a população é imprescindível para o momento que vivemos. Ainda assim, continua sendo necessário esclarecer que os religiosos podem ter seus momentos de oração, entre familiares e sem aglomeração. Intervenções estatais que imponham restrições aos cultos domésticos são inconstitucionais e configuram abuso de autoridade.
Pelo exposto, a ANAJURE (i) entende que a orientação para interrupção de pequenos cultos domésticos entre pessoas da mesma família é desproporcional e ofende a inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, CF/88), bem como a liberdade religiosa (art.º, VI, CF/88); (ii) alerta para a imprecisão do Decreto n. 515/2020, de Santa Catarina, que resulta em inconstitucionalidade, visto que mitiga desproporcionalmente o exercício da liberdade religiosa; (iii) informa que a equipe deste Observatório está efetuando contatos para obter mais informações, esclarecer o ocorrido e tomar as devidas medidas cabíveis, seja no plano administrativo, seja no plano judicial.
OBSERVATÓRIO: você possui mais informações sobre este caso e deseja nos informar? Envie um e-mail para o nosso endereço: [email protected].
DECRETO: Decreto 515/2020, Santa Catarina (AQUI)
ATUALIZAÇÃO EM 06/04: A ANAJURE contatou a Ouvidoria do Estado de Santa Catarina, bem como oficiou o Comandante-Geral da Polícia Militar de SC para obter esclarecimentos (ver ofício aqui).
ATUALIZAÇÃO EM 20/04: RESPOSTA: Contatamos a Ouvidoria do Estado de Santa Catarina para obter esclarecimentos sobre o caso.
Recebemos a reposta com as seguintes informações: (1) a polícia foi acionada por uma denúncia que relatou a ocorrência de culto com várias pessoas numa residência da cidade; (2) ao se dirigir à moradora, os policiais informaram que o Decreto n. 515 suspendia reuniões de pessoas por 30 dias.; (3) apenas as pessoas residentes na casa podem se reunir para orar, pois “é lícito aos integrantes de uma família que moram todos juntos fazer suas orações, o que não é lícito é chamar pessoas estrangeiras aquela localidade para ali participarem”; (4) não houve lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência.
Ressaltamos que não havia aglomeração no local, de modo que mantemos a nossa conclusão de que o Decreto é inconstitucional, assim como as ações dele decorrentes.