ANAJURE emite Nota pública sobre a decisão no processo referente à nomeação do coordenador-geral de índios isolados e de recente contato da FUNAI

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A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE vem, através do presente expediente, manifestar-se sobre decisão proferida nos autos do processo n. 1007395.45-2020.4.01.3400.

I – DA SÍNTESE FÁTICA

O Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública com a finalidade de suspender a nomeação do Sr. Ricardo Lopes Dias para o cargo de Coordenador-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Diretoria de Proteção Territorial da FUNAI, sob os argumentos de que tal ato estaria imbuído de conflitos de interesses, incompatibilidade técnica e risco de retrocesso na política de não contato adotada pelo Brasil, apontando ameaça de genocídio e etnocídio contra os povos indígenas.

Desde o início, A ANAJURE vem acompanhando o caso, publicando nota[1] sobre a discussão e requerendo o ingresso na lide na condição de amicus curiae.

Ontem (18/02), a Dra. Ivani Silva da Luz, juíza federal responsável pelo processo, indeferiu o pedido de tutela de urgência, por meio do qual o MPF pretendia obter a suspensão imediata da nomeação do Sr. Ricardo Lopes.

Em exame de cognição sumária, o entendimento da magistrada se firmou no sentido de inexistência da probabilidade do direito, requisito de concessão da tutela de urgência. Assim ficou assentado porque (I) não se identificou descumprimento dos requisitos exigidos pelo Decreto n. 9.727/2019 para o preenchimento do cargo; (II) entendeu-se que o atendimento da pretensão autoral violaria o princípio da separação dos poderes, havendo interferência indevida no mérito administrativo; (III) não há fundamento legal para que o coordenador da CGIIRC altere monocraticamente a política pública para os povos isolados e de recente contato.

A juíza asseverou que na hipótese de prática, pelo agente, de atos que violem ou tentem desrespeitar as políticas públicas existentes na CF/88 poderá haver questionamento na esfera administrativa e judicial. Também trouxe que não é possível afirmar, de antemão e em tese, que a mera nomeação represente conflito de interesses ou desvio de finalidade.

O pedido feito pela ANAJURE, para ingresso como amicus curiae, também foi indeferido, o que comentaremos a seguir, na presente nota.

II – DO INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE INGRESSO COMO AMICUS CURIAE

Inicialmente, importa realçar o bom entendimento da magistrada no tocante ao indeferimento da tutela de urgência requerida pelo MPF. Em nossa manifestação pública, por meio da nota já mencionada, e na petição juntada ao processo, defendemos a manutenção da nomeação, uma vez que, não comprovado qualquer dano, suspendê-la unicamente em virtude da religião professada pelo coordenador representaria grave ofensa à liberdade religiosa. A decisão prolatada, portanto, apresenta-se, neste ponto, em harmonia com os direitos e garantias fundamentais.

No entanto, é preciso pontuar que, especificamente quanto ao indeferimento do ingresso da ANAJURE como amicus curiae, não prevaleceu a melhor compreensão. Segundo a magistrada do caso, a negativa fundamentou-se no fato de que “os interesses do poder público quanto à legitimidade dos atos impugnados nesta demanda estão amplamente tutelados pela União e pela FUNAI, cujas assessorias técnica e jurídica são estruturadas, conforme se verifica, exemplificativamente, das manifestações apresentadas por elas nos presentes autos” (Num. 177252378 – Pág. 5).

O CPC regula, no art. 138, a figura do amicus curiae, firmando que o juiz poderá admitir, por decisão irrecorrível, a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada. Segundo Fredie Didier Jr., “o amicus curiae é o terceiro que, espontaneamente, a pedido da parte ou por provocação do órgão jurisdicional, intervém no processo para fornecer subsídios que possam aprimorar a qualidade da decisão[2]. A participação desse terceiro tem como um de seus aspectos basilares a pluralização do debate. Nesse sentido, são elucidativas as considerações de Dirley da Cunha Jr.:

A intervenção do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade pluraliza o debate dos principais temas de direito constitucional e propicia uma maior abertura no seu procedimento e na interpretação constitucional, nos moldes sugeridos por Peter Häberle em sua sociedade aberta dos intérpretes da constituição[3]. (Grifo nosso).

Nessa linha, o STF possui interessante julgado concernente à relevância jurídica da participação do amicus curiae, conforme disposto no Informativo n. 406, especificamente na ADI 2548/PR. Vejamos:

Evidente, assim, que essa fórmula procedimental constitui um excelente instrumento de informação para a Corte Suprema. Não há dúvida, outrossim, de que a participação de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma função de integração extremamente relevante no Estado de Direito.

Em consonância com esse modelo ora proposto, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às “intervenções de eventuais interessados”, assegurando-se novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (cf. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e “Procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 47-48).

Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos “amigos da Corte”. Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição.

(…)

Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito[4].

A participação do amicus curiae está alinhada a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil: o pluralismo político (art. 1º, V, CF/88). Funciona, também, conforme exposto, como mecanismo de auxílio à informação dos juízes, além de conferir legitimidade mais robusta aos julgados prolatados. Ademais, é importante instrumento para o reconhecimento de direitos e para a realização de garantias constitucionais.

Assim, o instituto jurídico em comento não se origina da ausência de representação adequada de uma das partes, mas da busca do legislador por maior pluralidade e legitimidade no âmbito das decisões judiciais. Desse modo, é indiferente, para fins de admissão como amicus curiae, a existência de assessoria jurídica que tutele as pretensões do autor ou do réu.

O deferimento ou a negativa de ingresso deve ter como base os requisitos exigidos pela lei, quais sejam, a relevância da matéria e a representatividade do terceiro (art. 138, CPC). No caso em questão, há o cumprimento das duas condições legais.

Primeiramente, destaque-se que é nítida a relevância da matéria e a repercussão social do feito, uma vez que toca em direito essencial para milhares de brasileiros, a liberdade religiosa. Eventual suspensão da nomeação resultaria na supressão do referido direito, representando, simultaneamente, grave ameaça a outros indivíduos que poderiam enfrentar a mesma privação de direitos em razão, unicamente, da fé professada. Isso porque o argumento central do pedido de suspensão da nomeação se assentou no fato do indicado ter servido como missionário e ser evangélico.

Ademais, não houve apresentação deficitária no que diz respeito à representatividade. A ANAJURE é uma entidade nacional e internacionalmente reconhecida pelo seu trabalho na defesa das liberdades civis e fundamentais, especialmente a liberdade religiosa, conforme demonstrado na petição apresentada perante a 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. Atualmente, a ANAJURE é detentora de registro como Organização da Sociedade Civil na Organização dos Estados Americanos (OEA); tem parceria institucional e representa, perante o Poder Público, as denominações evangélicas chamadas de “Igrejas Históricas”, em matérias relativas à liberdade de consciência e de crença; organiza eventos conectados à temática[5]; produz material acadêmico sobre liberdades civis fundamentais[6]; contribui como amicus curiae em diversos feitos que tramitam no STF[7]; dentre outras ações.

O compromisso da ANAJURE com a proteção da liberdade religiosa constitui, inclusive, elemento da sua missão institucional, pela qual se firma como norte para a associação a defesa das liberdades civis fundamentais – em especial a liberdade religiosa e de expressão – e a promoção dos deveres e direitos humanos fundamentais – em especial o princípio da dignidade da pessoa humana, tudo isso sob a égide e as bases principiológicas do Cristianismo e do seu consectário histórico, o Estado Democrático de Direito. Este é o fundamento da pretensão da ANAJURE para intervir no processo em comento, e não a defesa de interesses do poder público, como mencionado na decisão proferida.

Desse modo, entendemos que a apreciação do pedido feito para ingresso como amicus curiae mereceria análise segundo os requisitos legais, dos quais não se depreende a necessidade de ausência de representação dos interesses do autor ou do réu para que se permita essa modalidade de intervenção.

III – CONCLUSÃO

Pelo exposto, a ANAJURE (I) congratula a Dra. Ivani Silva da Luz pelo indeferimento da tutela de urgência requerida pelo MPF, culminando na manutenção da nomeação feita; (II) manifesta-se contrariamente ao entendimento esposado na decisão quanto ao requerimento de ingresso como amicus curiae, em razão da negativa ter adotado fundamentos estranhos ao texto legal.

Brasília, 19 de fevereiro de 2020.

Assessoria Jurídica da ANAJURE

______
[1] https://anajure.org.br/anajure-e-fpmlrrah-se-pronunciam-sobre-acao-do-mpf-para-suspensao-da-nomeacao-do-antropologo-e-missionario-ricardo-lopes-dias-na-funai/

[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Vol. 1. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.  P. 522.

[3] Citado por DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Vol. 1. Salvador: Editora Jus Podivm, 2015.  P. 522.

[4] Informativo n. 406. ADI 2548/PR. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo406.htm#transcricao1>. Acesso em: 19 fev. 2020.

[5] Como o Congresso Internacional sobre Liberdades Civis Fundamentais, no Superior Tribunal de Justiça.

[6] A exemplo dos livros “O Direito de Liberdade Religiosa no Brasil e no Mundo” e “Em Defesa da Liberdade de Religião ou Crença”.

[7] Como a ADI 5256, ADI 5537, ADPF 460, ADPF 467, ADPF 522, RE 611.874.

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