Junio Barreto dos REIS [1]
Ilton Garcia da COSTA [2]
RESUMO
A liberdade de organização religiosa é decorrência do Estado laico, o qual este não poderá interferir em assuntos internos das igrejas. Todavia as organizações religiosas, ao se constituírem, não poderão estabelecer doutrinas e práticas litúrgicas que afrontem o direito à vida e aos valores da dignidade humana, ou, quando afrontarem normas de segurança do local, de praxe, em que se cultua, caso assim façam, sofrerão interferência do poder público. De outro lado, quando há colisão de direitos fundamentais de membro que se insurge contra a doutrina eclesiástica e suas sanções e a liberdade de auto-organização, certamente, esta última deve prevalecer, pois a Constituição Federal assim garantiu que doutrina e suas liturgias são matérias intern corporis, cabendo à Igreja resolver conflitos entre seus membros.
PALAVRAS-CHAVE: Interferência; Organizações Religiosas; Poder Público.
ABSTRACT
Freedom of religious organization is a result of the secular state, which can not interfere in the internal affairs of churches. However the religious organizations when being constituted, can't establish doctrines and liturgical practices that confront the right to life and the values of human dignity, or when they affront the standards of site safety usual in which people worship, if they do, they will suffer interference from public power. On the other hand, when there is collision of fundamental rights of a member who protested against church doctrine, its sanctions, and the freedom of self-organization, certainly this latest must prevail because the Federal Constitution thus ensured that doctrine and its liturgies are corporis intern materials, being incumbent upon the Church to resolve conflicts between its members.
KEYWORDS: Interference; Religious Organizations; Government power.
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[1] Mestrando do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP. Pós-Graduado em Direito do Estado pelo PROJURIS/FIO. Bolsista da CAPES. Professor na Faculdade de Direito de Santa Cruz do Rio Pardo/SP-OAPEC. Advogado.
[2] Professor do Mestrado e da Graduação da Universidade Estadual do Norte do Paraná –UENP. Coordenador do Curso de Direito das Faculdades Anchieta – SBC – Grupo Anhanguera Educacional. Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP. Membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP. Membro do IBDC – Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Membro do Instituto Jaques Maritain – Brasil. Advogado.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, ao garantir o direito à liberdade religiosa, o fez de maneira ampla, pois abarcou a proteção à consciência, à crença, ao culto e às suas liturgias, incluindo, principalmente a autonomia das organizações religiosas, além de impedir a interferência do Estado nas questões religiosas.
O presente estudo trabalhará com apenas uma das ramificações do direito à liberdade religiosa, que é a liberdade de organização religiosa ou liberdade religiosa coletiva, que, com o Código Civil de 2002, ganhou nova atenção dos estudiosos do assunto, haja vista que deixou livre a sua criação, organização, estruturação interna e funcionamento.
Frente a essa ampla liberdade conferida às organizações religiosas, certamente, que alguns limites devem ser postos na forma delas se organizarem ou atuarem, mas, de outro lado, esses limites também são colocadas ao poder público, para que este não venha a interferir demasiadamente naquelas, já que, no Brasil, há separação entre Estado e Igreja.
Enfim, através de decisões judiciais e, principalmente, da doutrina de direito constitucional, buscar-se-á realizar o estudo para se encontrar esses limites, para os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não venham interferir em questões religiosas que cabem apenas a essas instituições a maneira como devem decidir e proceder.
1. LIBERDADE DE ORGANIZAÇÃO RELIGIOSA
A proteção à liberdade religiosa está estampada no artigo 5º, inc. VI Constituição Federal, que dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
José Afonso da Silva (1995, p. 241), ao estudar o assunto, divide a liberdade religiosa em três categorias: (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) a liberdade de organização religiosa.
O presente estudo apenas tratará sobre a liberdade de organização religiosa [3]. A liberdade de organização religiosa visa a assegurar que grupos de pessoas possam se reunir para prestar seu culto, expressar sua fé, praticar suas liturgias, sem que haja interferência do Estado (art. 19, inc. I, CF). Categoricamente, a liberdade de organização religiosa é decorrente da liberdade de culto, pois logo que o indivíduo tem a sua crença e pretende externá-la através do culto, certamente haverá proselitismo para a conversão de fiéis à fé propagada e, a partir de então, esse grupo de pessoas, ligadas num mesmo propósito religioso, irá se organizar para um bem comum.
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[3] Para evitar equívocos, é bom lembrar que a expressão organização religiosa pode ser tomada, também, como expressão sinônima de entidade religiosa, agremiação religiosa ou instituição religiosa. Usamos essa acepção quando dizemos que as igrejas são organizações religiosas. No entanto, quando tratamos de liberdade de organização religiosa, o sentido que atribuímos à expressão é outro. Organização religiosa designa, então, o modo de constituição e funcionamento das entidades religiosas (SANTOS JUNIOR, 2007, p. 77).
Na visão de Jónatas Machado(1996, p. 244):
… qualquer formação social de natureza religiosa pode contar com a proteção jurídico-estadual desde o seu surgimento, independentemente da sua antiguidade, ou da sua maior ou menor consistência numérica. Nesse sentido preciso, utilizando uma linguagem que os cristãos conhecem bem, deve-se entender que onde dois ou três estiverem reunidos em nome da religião, aí estará à proteção da liberdade religiosa coletiva.
Nessa vertente, a liberdade religiosa coletiva se apresenta como um direito fundamental do grupo de indivíduos que buscam um só objetivo, independentemente da quantidade de membros, do tempo de existência e de constituição de personalidade jurídica, sejam elas minoritárias, impopulares ou pouco convencionais. Intensifica-se seu reconhecimento através do vínculo associativo e institucional. (MACHADO, 2013, p.145)
Com a Constituição Federal de 1988, bem como com o Código Civil de 2002, alterado pela Lei 10.825, de 22.12.2003, que se acirraram as discussões sobre os limites de interferência do Estado nas instituições religiosas, já que o legislador conferiu ampla liberdade interna a elas, tendo deixado livre a sua criação, organização, estruturação interna e funcionamento.
O § 1o do art. 44, do Código Civil, assim dispõe:
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento.
Em relação à livre criação da organização religiosa, ela vem atender ao pluralismo religioso existente no país, visando, principalmente, a proteger os grupos de confissões minoritárias que podem encontrar certa resistência do Estado e até mesmo da sociedade em instituir e propagar suas liturgias devido à contrariedade do defendido pela ampla maioria. Porém essa livre criação não se mostra absoluta, já que aquela religião que instituir rituais que afrontem o direito à vida e à universalidade dos valores da dignidade humana, certamente a sua criação não poderá ser tolerada pelo Estado.
A livre criação, não necessariamente, precisa ser concluída com a sua constituição jurídica, pois, mesmo sem personalidade, a Constituição Federal, devido amplitude conferida a esse direito, já garante determinados direitos fundamentais coletivos, tais como os direitos de reunião e culto aos grupos religiosos de fato, todavia eles não poderão postular direitos que apenas são reconhecidos àquelas que se constituem juridicamente, exemplo disso é a garantia da imunidade tributária aos templos religiosos (Art. 150, inc. VI, “b”, CF).
Segundo Alves e Brega Filho (2009, p. 82):
Alguns tribunais têm operado verdadeira redução do direito à liberdade religiosa, restringindo a proteção constitucional apenas ao culto objetivo, ou aos lugares de culto, que devem organizar-se de acordo com as normas legais aplicáveis à espécie, sem se darem conta que existem práticas de culto que transcendem materialmente os templos, principalmente as normas de conduta e a moral fundamental, que são ínsitas a todas as organizações religiosas.
A auto-organização, expressada pela Carta Magna e pelo §1º, do Art. 44, do Código Civil, garante às instituições religiosas a autonomia de regulamentação e ordenação de seus atos, isto é, liberdade para estabelecer o estatuto jurídico sem estar vinculado a procedimentos ordenados pelo Código Civil para as demais pessoas jurídicas (associação, fundação, sociedades etc). A entidade religiosa terá ampla liberdade de estabelecer regras para admissão e exclusão dos membros, bem como a forma de distribuição de poder interno e a criação de vários órgãos internos. (SANTOS JUNIOR, 2008. p. 04)
Jónatas Machado (1996, p. 242) apresenta que a auto-organização visa a assegurar a realização da finalidade da entidade religiosa, garantindo o direito à abstenção de interferência por parte do poder público e à proteção estadual perante terceiros.
A auto-organização se inicia com as discussões entre os membros participantes da entidade religiosa, ou seja, de maneira informal que, seguidamente, poderão conferir personalidade jurídica com o registro de seus atos constitutivos e estatutos, que não pode ser negado pelo Cartório de Registros de Pessoas Jurídicas em razão da forma como ela está sendo constituída. Não obstante, ela não se mostra totalmente ilimitada, devendo ser observadas, principalmente no trato com os seus membros, as garantias fundamentais, p. ex. na exclusão de um membro deve ser concedida a ampla defesa e o contraditório.
Apesar das organizações religiosas manterem sua estrutura geral de associação, elas não precisam cumprir obrigações específicas destas, já que a Constituição Federal tratou pontualmente da liberdade religiosa coletiva e é, em razão desses privilégios constitucionais, que é passível de se estruturarem internamente de forma livre. A estruturação interna garante a autonomia de elaboração de seu regimento interno, notadamente a implantação da doutrina institucional e como elas serão propagadas.
Para Santos Junior (2012, p.05):
A livre estruturação interna refere-se ao direito que as organizações religiosas possuem de distribuir, agrupar e coordenar as tarefas necessárias ao cumprimento da sua missão institucional. Sob tal perspectiva, podem elas estabelecer divisões internas, criando os órgãos necessários ao cumprimento de suas finalidades institucionais, sem que o Estado possa intervir nesse processo. Por outras palavras, é em virtude da atribuição às organizações religiosas da liberdade de estruturação interna que o Estado não pode impor às organizações religiosas que contem necessariamente com algum específico órgão, como por exemplo, uma assembléia geral ou um conselho fiscal.
O livre funcionamento das organizações religiosas é o desfecho final das garantias concedidas a elas, que, com a criação, organização e estruturação interna, finalmente poderão desempenhar suas atividades institucionais sem interferência do poder público, desde que não haja afronta à ordem pública, ao direito à vida e dignidade humana. (SANTOS JUNIOR, p. 5, 2008).
Nessa vertente do § 1º, do art. 44 do Código Civil, Jónatas Machado (1996, p. 246), apresenta às confissões religiosas o direito de autodeterminação, concedendo-se a elas uma autonomia material na condução e formação de seus fins, reconhecendo-se, assim, uma gama de direitos de natureza negativa, garantindo-se a autocomposição, autodefinição, auto- organização, auto-administração, autojurisdição e auto dissolução.
A ampla autonomia conferida deve ser exercida com observância aos princípios fundamentais de ordem constitucional, mas as matérias de cunho doutrinário e teológico embarcam uma “reserva absoluta de confissão religiosa” (MACHADO, 1996, p. 247).
A Constituição Federal concedeu a livre autonomia às confissões religiosas, todavia, essa garantia conferida certamente encontra limitações, já que pessoas com o propósito de se beneficiarem dos direitos concedidos às entidades religiosas, podem desenvolver atividades ilícitas (desvio de dinheiro) fora do propósito constitucional, que é a propagação do culto religioso.
De outro norte, no âmbito das confissões religiosas, podem surgir atividades que não se caracterizam como religiosa, apesar de estar próxima a ela, por isso da importância de distinguir dentro dos domínios próprios das confissões religiosas, aquelas atividades não especificamente religiosas daquelas atividades institucionais. (WEINGARTNER NETO, 2006, p. 333)
Jónatas Machado (1996) apresenta vários conflitos que podem existir para a deferência estadual à autocompreensão das confissões religiosas. A primeira delas está relacionada com as preocupações sociais tanto do Estado e das confissões religiosa, ao incremento de uma cooperação em múltiplas áreas entre eles. Para ele, o importante é definir quais sejam as funções próprias da organização religiosas, e “de modo compatível com um razoável controle estatal da sua plausibilidade”, valorizar a sua autocompreensão.
Assim apresenta uma solução:
Um modelo geométrico da solução que geralmente se dá a esse delicado problema apresentaria diferentes áreas definidas por um conjunto de círculos concêntricos de diferente raio, representando as diversas atividades das confissões religiosas, em que a maior proximidade do centro traduz uma maior densidade religiosa dessas atividades. (MACHADO, 1996, p. 249).
Desta feita, as ‘práticas cultuais, de divulgação e propagação de conteúdos religiosos, bem como a realização de acções de beneficência social gratuita’, estão abarcadas pela autonomia, o que impede ao Estado de interferir no modo em que ela se estabelece e se desenvolve.
Apresenta-se ainda a problemática daquelas atividades das organizações religiosas que mesmo sem intuitos lucrativos, acabam por figurar na seara econômica, com participação do ‘tráfico jurídico’, tais como atividades alienação de bens ou serviços, prática comercial, relações laborais, etc. Segundo Jónatas Machado (1996, p. 250), nessas situações não se admite a invocação da autonomia religiosa, uma vez que a finalidade não está sendo o culto, mas, sim, o desenvolvimento de atividade de natureza comercial/econômico e, por isso, está condicionada a obedecer as normas do direito comum, de natureza civil, comercial, trabalhista, fiscal etc.
2. RELAÇÃO ENTRE RELIGIÃO E ESTADO
Segundo José Afonso da Silva, na relação entre Estado-Igreja, existem três sistemas que devem ser analisados, para definir, então, a atual conjectura do Brasil: a confusão, a união e a separação.
Na confusão, o Estado e Igreja se confundem, pois o líder religioso é quem define o rumo político da nação, o que, por conseguinte, acaba por comprometer a vida religiosa do povo, p. ex. como ocorre com o Vaticano e os países islâmicos. Na união, tanto o Estado, quanto a Igreja tratam de assuntos voltados à organização e funcionamento de ambos, o que, de certa maneira, suprime as minorias religiosas, p. ex. o que ocorria no Brasil Império – União entre Estado e Igreja católica. Na separação, há o total apartamento de relações jurídicas entre o Estado e Igreja, impedindo-se que a Igreja interfira no sistema político e o Estado interfira na organização das confissões religiosas. (SILVA, 1997, p. 253) Em razão da separação entre Estado e Igreja, o Estado não pode obstruir a abertura e funcionamento de determina religião ou de outro lado conceder privilégios desmesurados a determinado credo religioso.
No Brasil, em 1889, foi estabelecida uma nova ordem com proclamação da república, qual seja, a separação entre Estado e Igreja. O principal documento que determinou essa ruptura deu-se através do Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890, redigido por Ruy Barbosa, o qual estabelecia o Brasil como um país laico, deixando de dar preferência à Igreja Católica como anteriormente na época colonial e imperial. O referido decreto tinha natureza constitucional e excepcional, tendo em vista que fora editado durante um regime excepcional do Governo Provisório inicial da República, que tinha plenos poderes legislativos, porém seu conteúdo perdura até à Constituição contemporânea. (ALVES, 2008, p. 50).
Assim previa a ementa Decreto nº 119-A de 07 de janeiro de 1890:
Proíbe a intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providências.
Referido Decreto trouxe grande avanço na consagração do direito fundamental à liberdade religiosa, tendo em vista que, aproximadamente 400 anos do descobrimento do Brasil, Estado e a religião sempre estiveram unidos no intuito de fortalecer a Igreja Católica em detrimento das demais religiões.
Na Constituição Federal de 1988, a separação entre Estado e Igreja ficou consignada no art. 19, inc. I, in verbis:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Para Jónatas Machado (1994, p. 60-61):
…o princípio da separação [das igrejas do Estado] não deve ser lido de uma forma laicista, anti-religiosa. Pelo contrário, ele pretende acomodar o fenómeno religioso, em toda a sua diversidade, numa sociedade moderna e pluralista. Trata-se, pois, de afirmar uma separação não-hostil, uma neutralidade benevolente. […] Este princípio deve ser lido igualmente como garantia institucional do princípio da igualdade. Ele visa estabelecer uma ordem institucional que permita assegurar, por parte do Estado, a manutenção de uma posição de neutralidade religiosa e mundividencial de não identificação nem interferência no dissenso interconfessional. […] Separação das confissões religiosas do Estado significa, ainda, a defesa do processo político-legislativo perante as tentativas de instrumentalização totalizante por parte das confissões religiosas no sentido de criar uma homogeneidade estadualmente induzida (government-induced homogeneity), desencorajando ou suprimindo a expressão de diferenças em matérias religiosas.
Um elemento essencial da separação entre Estado e Igreja é chamado de laico. [4]
Segundo De Plácido e Silva (2008, p. 45): “LAICO. Do latim laicus, é o mesmo que leigo, equivalendo ao sentido de secular, em oposição ao de bispo, ou religioso”.
A laicidade estatal vem denominada como a desvinculação do Estado de uma religião oficial e com a garantia da liberdade religiosa, seja ela individual ou coletiva. O Estado laico tem a sua fundamentação na democracia, pois ele não é instituído por dogmas religiosos, mas pela vontade popular. Então, laico não deriva da religião, mas sim da imposição de como o Estado quer se constituir para conduzir a sociedade, e escolhendo ser laico, cabe a ele salvaguardar as diversas confissões religiosos contra os abusos que estas venham a sofrer, sejam do poder público ou do particular.
Daniel Sarmento (2007, p. 04) afirma que a laicidade também protege o Estado contra as ingerências de assuntos religiosos na sua administração. Evita-se todo tipo de confusão entre o poder secular e democrático.
Vale aqui transcrever os artigos 4º, 5º e 6º da Declaração Universal Da Laicidade No Século XXI, que foi apresentada por Jean Baubérot (França), Micheline Milot (Canadá) e Roberto Blancarte (México) no Senado Francês, em 9 de dezembro de 2005, por ocasião das comemorações do centenário da separação Estado-Igrejas na França.
Nela expressa-se a conceituação de laicidade e sua instituição como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito:
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[4] De acordo com Joana Zylbersztajn… o significado de Estado laico está além da definição básica de separação entre Estado e Igreja e os desdobramentos do conceito devem ser explorados dentro do âmbito das prát icas de cada país. …a laicidade pressupõe que o Estado esteja legitimado na soberania popular em detrimento dos dogmas religiosos, bem como a garantia da igualdade e da liberdade entre os cidadãos que professam diferentes crenças. A separação institucional entre Estado e Igreja é um dos elementos que possibilitam a observância dos elementos constituidores da laicidade. (2012, p. 47)
Artigo 4º: Definimos a laicidade como a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva; autonomia da política e da sociedade civil com relação às normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma discriminação direta ou indireta contra os seres humanos.
Artigo 5º: Um processo laicizador emerge quando o Estado não está mais legitimado por uma religião ou por uma corrente de pensamento especifica, e quando o conjunto de cidadãos puder deliberar pacificamente, com igualdade de direitos e dignidade, para exercer sua soberania no exercício do poder político. Respeitando os princípios indicados, este processo se dá através de uma relação íntima com a formação de todo o Estado moderno, que pretende garantir os direitos fundamentais de cada cidadão. (…)
Artigo 6º: A laicidade, assim concebida, constitui um elemento chave da vida democrática. Impregna, inevitavelmente, o político e o jurídico, acompanhando assim os avanços da democracia, o reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo.
Apesar de a Declaração citada ser um documento informal, ela é de grande valia para a conceituação de laicidade no cenário internacional, uma vez que várias nações ainda não garantem total liberdade aos seus cidadãos para expressarem a sua fé em determinada religião. Dela, pode-se extrair a garantia da liberdade religiosa, a independência do Estado quanto à vinculação de normas religiosas e de sua interferência nos assuntos religiosos e a proibição de discriminação contra o cidadão que professe sua fé e institui seu culto.
Nesse contexto, entende-se que a laicidade é elemento chave da vida democrática e, consequentemente, um reconhecimento dos direitos fundamentais e a aceitação social e política do pluralismo.
Não se pode esquecer que a laicidade está relacionada também com a igualdade. O Estado, que é laico, deve tratar de forma igual todos aqueles que professam ou deixam de professar alguma fé.
Frente a esses conceitos, segundo Zylbersztajn (2012, p. 43), a democracia, a liberdade e a igualdade formam a tríade para a existência do Estado laico.
Pinheiro (2008) aponta mais dois requisitos indispensáveis para a existência do regime separação entre Estado-Igreja, quais sejam: neutralidade axiológica e da não- ingerência institucional e dogmática em relação às igrejas.
O ponto principal da neutralidade axiológica está embasado no voluntarismo, no qual o Estado fica terminantemente proibido de incentivar, impor ou influenciar cidadãos a seguirem determinado credo religioso. Cada cidadão deve estar livre de pressão para a escolha de sua religião.
Para Pinheiro (2008, p. 350):
O requisito da neutralidade axiológica, portanto, apóia-se na absoluta necessidade de se preservar o voluntarismo em matéria de fé, pela imposição, ao ente estatal, de uma postura neutra, incapaz de exercer indevidas influências no livre mercado de ideias religiosas, no dissenso interconfessional e nas escolhas individuais.
Quando há interferência do Estado no ‘mercado de ideias religiosas’ acaba por influenciar cidadãos a seguir a postura adotada por ele, além da possibilidade de haver supressão às minorias religiosas e, consequentemente serem, excluídas do seio da sociedade; por isso, a sua postura de neutralidade se mostra imprescindível.
O requisito da não-ingerência institucional e dogmática em relação às igrejas, como iremos estudar no próximo item, está relacionado com a autonomia conferida pela Constituição Federal às entidades religiosas, proibindo ao Estado de imiscuir em sua organização interna.
3. INTERVENÇÃO DO ESTADO NAS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS
A ingerência do Estado nas organizações religiosas, se ocorrer, dar-se-á através do conflito entre cidadão x igreja ou Estado x Igreja. No primeiro conflito, normalmente, pode ocorrer ingerência do Estado através do Poder Judiciário, pois haverá supressão de algum direito fundamental do cidadão, em razão da doutrina dogmática estabelecida na organização religiosa, que ele não está de acordo. No segundo conflito, poderá haver intervenção do Estado através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, seja no momento da criação, estruturação, organização e funcionamento da organização religiosa.
Todavia a ingerência do Estado nas Organizações Religiosas deve ser analisada com muita cautela, tendo em vista que a Constituição Federal conferiu a elas uma modalidade de pessoa jurídica sui generis, garantindo-lhes ampla autonomia de atuação e dispensando os requisitos para sua constituição das demais pessoas jurídicas (associações, sociedades, fundações), o que foi seguido pelo Código Civil de 2002.
Assim, a não-ingerência nas organizações religiosas garante o direito fundamental da auto-organização religiosa, bem como a autenticidade das doutrinas de fé. Tais matérias são intern corporis, ou seja, são reservadas ao âmbito da Igreja. Ao Estado fica vedada a sua interferência, emissão de juízos de valor, censura ou chancela de prática litúrgica. “Não é o Estado um fiscalizador da correta aplicação de leis divinas. Não é ele um intérprete ou um instrumento de positivação de mandamentos sagrados. Não pode o Estado se interpor entre os indivíduos e a sua fé.” (PINHEIRO, 2008, p. 352).
Na relação entre Estado x Igreja, em algumas situações torna-se lícita a sua intervenção para coibir abusos, desde que não interfira nas doutrinas de fé. Por exemplo, a intervenção do Poder Público para coibir poluição sonora, apenas se mostrará lícita se houver uma perturbação do sossego constante e com o barulho acima do permitido em lei, ou seja, critérios técnicos, caso contrário, estará havendo abuso de poder. Nessas situações, o que constantemente ocorre, é o incômodo de vizinhos da igreja, que não compactuam com aquela fé, procuram o poder público e, de forma velada, tentam extinguir a atuação do culto sob o argumento de perturbação ao sossego.
Sobre os cultos religiosos e a poluição sonora, Gilberto Passos de Freitas (2002, p. 22-23) nos ensina que:
A liberdade de culto, direito fundamental, é assegurada pela Constituição Federal (Art. 5º,VI). Todavia, esta liberdade, não é ilimitada, devendo obedecer às medidas de ordem pública. Deve o exercício do culto respeitar a lei e a moral.
Conforme anotamos na nossa obra Abuso de Autoridade, ¨os cultos aqui protegidos são os compatíveis com a lei, a moral e a ordem pública.¨ O Estado, portanto, através do Poder de Polícia, ao mesmo tempo que deve assegurar o livre exercício do culto de uma religião, tem o poder de impedir o culto que ofenda a moral, aos bons costumes e a ordem pública, onde pode ser incluído o sossego público.
Se a autoridade, sem que ocorra uma das circunstâncias acima citadas, atentar contra a liberdade de culto, estará ela incorrendo nas sanções do art.
3º, letra ¨e¨, da Lei nº 4.898, de 09.12.65, ou seja, praticando o crime de abuso de autoridade. Entretanto, se tal não ocorrer, se o culto estiver perturbando o sossego público, o repouso e o bem-estar da coletividade, perfeitamente legal a intervenção do Poder Público.
Cabe, também, às organizações religiosas o dever de observar as questões de segurança do templo de culto, já que ali receberão fiéis para a prática religiosa. Torna-se lícito ao Poder Executivo a exigência de alvará e demais itens de segurança para o funcionamento do templo de culto.
De outro lado fica vedado, quando do registro de ata de constituição da organização religiosa, ao Cartório de Registro de Pessoas Jurídicas questionar a composição ou duração da diretoria constituída ou exigir adaptações às normas estabelecidas pelo Código Civil, uma vez que a própria Constituição garantiu a auto-organização, possuindo assim autonomia para os membros decidirem o funcionamento, quando da constituição, além da mesma possuir características próprias.
Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
APELAÇÃO CÍVEL – MANDADO DE SEGURANÇA – NEGADO PEDIDO DE REGISTRO DA ATA DE ESTABELECIMENTO DE PESSOA JURÍDICA DE FINS NÃO LUCRATIVOS POR ESTAR A ATA EM DESACORDO COM O ARTIGO 14.2.10 DO CÓDIGO DE NORMAS – INOCORRÊNCIA – REQUISITO NÃO EXIGIDO PELO CÓDIGO CIVIL QUE AFASTA AS ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS E OS PARTIDOS POLÍTICOS DAS NOVAS REGRAS. RECURSO PROVIDO. Em princípio, sendo lícita a associação religiosa, não cabe ao Estado interferir no seu funcionamento, inclusive na questão referente à vitaliciedade do cargo de pastor presidente da igreja, autorizado pela assembléia geral quando de sua constituição. (TJ-PR, Relator: Costa Barros, Data de Julgamento: 06/05/2009, 12ª Câmara Cível – AC 4686779 PR)
O Congresso Nacional, através de dois Projetos de Lei nºs 6.418/2005 e 122/06, o primeiro de autoria do Senador Paulo Paim, o segundo da Deputada Iara Bernardi, pode, caso sejam aprovados, efetivamente interferir na doutrina pregada por algumas religiões, que são contra determinadas orientações sexuais, como o homossexualismo, lesbianismo e transexualismo etc. Referidos projetos preveem criminalizar condutas como homofóbicas todos aquelas que se insurgirem contra a orientação sexual, incluindo às proferidas no seio religioso.
Ao analisar os referidos Projetos de Lei, Teraoka (2010, p. 194) ensina que,
…seja qual for a tipificação da conduta, a legislação não poderá impedir a divulgação ou propagação de idéias religiosas. Os líderes religiosos, suas homilias e livros poderão continuar a desestimular a prática homossexual. Porém, já não podem e não poderão humilhar ou estimular atos violentos ou repulsa aos homossexuais.
Reforça Teraoka (2010, p. 195) que a liberdade religiosa tem seus limites, pois “a humilhação de um homossexual em particular e/ou mesmo o estímulo à intolerância e à violência não podem ser admitidos em nosso ordenamento jurídico.”
Na legislação brasileira, já existem normas que criminalizam condutas consideradas violentas e humilhantes, não necessitando que mais leis venham a ser aprovadas apenas com intuito de atingir diretamente as religiões que, com garantia constitucional podem não concordar e pregar contra determinada orientação sexual. Se os legisladores querem endurecer a tipificação penal contra os agressores de grupos minoritários, que assim o façam, mas não com intuito de atingir a liberdade religiosa.
Caso contrário, a Bíblia Sagrada não poderia ser mais lida e ensinada, pois lá explicitamente determina as únicas orientações sexuais determinadas por Deus – homem e mulher -, afrontando, efetivamente, a ampla liberdade religiosa concedida pelo constituinte.
O que mais tem causado embate nesta seara de intervenção do Estado nos entes religiosos está ligado ao conflito entre a igreja e seu membro, notadamente quando este último busca proteção do Estado para ver garantidos os seus direitos fundamentais em detrimento da doutrina e liturgia de determinada religião.
Jonatas Machado (1996, p. 272) esclarece que todo direito sofre uma limitação e, nessa situação, não é diferente, pois há uma colisão de direitos, já que às confissões religiosas são lhe garantidos o direito de autodeterminação e do outro os direitos dos indivíduos. E para que seja dada uma solução ao caso concreto, ao intérprete, faz-se necessário uma ponderação de bens que, ‘restringindo dentro do estritamente um ou os dois direitos em causa, não deixe desprotegido qualquer deles’.
Vale salientar que as regras e doutrinas de uma determinada religião apenas podem ser exigidas a sua obediência aos que dela são membro, pois, caso não seja assim, estar-se-á extrapolando a sua jurisdição moral e espiritual, passível de intervenção do Estado, o que, certamente, violaria a liberdade individual do cidadão apenado. Apenas aqueles que são aderente à determinada religião é que estarão sob sua jurisdição, devendo cumprir as suas normas, que tem caráter indisponível, já que são impostas a partir de uma autoridade sobrenatural e, se não for cumprida, poderão plenamente sofrer sanções disciplinares. Caso o indivíduo não esteja de acordo as normas estabelecidas pela confissão religiosa, terá toda a liberdade de abandoná-la.
Jónatas Machado (1996, p. 273) destaca que
…imediatamente se verifica uma colisão envolvendo o direito individual e a liberdade colectiva de auto-compreensão e autodeterminação doutrinária e institucional. Esses direitos, na medida em que manifestem a especificidade ontológica e estrutural da confissão religiosa, constituem verdadeiramente o seu fórum internum, um domínio reservado e livre de interferências estaduais.
Dessa forma, se determinado cidadão se coloca em contradição com a doutrina e com a prática que aquela ensina e prescreve, ele não pode esperar uma tutela do Estado para protegê-lo contra as sanções, estritamente, confessionais aplicadas pela igreja.
Locke (1980, p. 35), no Livro Cartas sobre a tolerância enfrenta o assunto aqui estudado:
Mas, perguntar-se-á, que espécie de sanção assegurará obediência às leis eclesiásticas, já que elas não devem ter poder coercivo? Julgo que a sanção adequada à confissão e às manifestações exteriores, quando não resultarem da profunda convicção do espírito humano, sendo portanto destituídas de qualquer valor. Por isso, as armas, mediante as quais os membros de certa sociedade podem ser confinados aos seus deveres, são exortações, admoestações e conselhos. Se tais medidas, porém, não reformarem os transgressores, levando os transviados a retornar ao caminho reto, nada mais resta a fazer, exceto impor aos obstinados e teimosos, que oferecem obstáculos para sua própria reforma, a separação e a exclusão da sociedade. Consiste nisso a força máxima e última da autoridade eclesiástica.
Todavia Locke (1980), ao concordar com a aplicação da pena de exclusão do membro da igreja, mesmo depois de admoestado ou aconselhado, ressalta que “deve-se tomar cuidado para que a sentença de excomunhão não esteja redigida com termos insultuosos ou com tratamento grosseiro, que tragam qualquer dano à pessoa expulsa no físico ou nos bens”.
Nessa senda, percebe-se que Locke é adepto à total autonomia da Igreja na seara doutrinária e litúrgica, não cabendo ao Estado sua intervenção nessas questões. A sua única preocupação é que a Igreja não cause dano ao membro quando de sua exclusão.
Todavia, alguns juízes, acatando argumentos de membros que não querem seguir a doutrina confessional de determinada religião e também dela não se desvinculam, interveem na doutrina confessional, sob argumento de que há, ali, uma violação de um direito fundamental. Vejamos um episódio ocorrido no Estado de Goiás.
Conforme noticiado pela imprensa, no ano de 2005, em Goiânia, um casal propôs uma ação cautelar inominada, que tramitou na 4ª Vara de Família e Sucessões, contra a 1ª Igreja Batista para que o Pastor fosse obrigado a realizar o casamento no templo. Na ação, o casal alegou que o pastor da igreja se negara a realizar o casamento, em razão da noiva estar grávida, mesmo ela pertencendo ao rol de membros. Segundo o argumento do pastor, a Igreja não poderia realizar o matrimonio pois houve infringência às suas doutrinas, que proíbe que casais mantenham relações sexuais antes do casamento.
O juiz Jaime Rosa Borges negou o pedido sob o argumento que não existe na lei civil disposição que obrigue a autoridade ou ministro religioso a celebrar o casamento, de forma "que o ato fica na dependência da relação de conveniência entre os contraentes e a autoridade eclesiástica". Frisou, ainda, que a 1ª Igreja Batista de Goiânia tem motivo para não celebrar o casamento, e considerando que tal motivo decorre de regras comportamentais moralmente ditadas pela religião às quais está submetida, o Poder Judiciário não pode determinar a realização do ato, sob pena de interferência ilegal nas relações privadas dos particulares. (JUSBRASIL, 2006)
Todavia, dias após, o casal novamente buscou tutela junto ao Judiciário. A ação tramitou na 12ª Vara Cível de Goiânia, sendo deferida a liminar, determinando que a igreja realizasse o casamento dos noivos, mesmo tendo o casal infringido uma norma doutrinária e teológica.
O novo argumento apresentado pelo casal foi que agora estavam habilitados ao casamento perante o Cartório de Registro Civil e de Pessoas Naturais e Tabelionato de Notas da 4ª Circunscrição, e caso a cerimônia não fosse realizada pela igreja, os mesmos passariam por enorme sofrimento e prejuízos de ordem material.
Ao deferir a liminar, o magistrado argumentou que a atitude da 1ª Igreja Batista, ao se negar a realizar o casamento religioso, fere a Constituição e o Código Civil, que estão acima dos dogmas religiosos. No dia da cerimônia, foi determinado o arrombamento das portas do templo religioso para a realização do matrimônio.
A maneira como agiu o Estado, através do Poder Judiciário, efetivamente extrapolou em suas funções, já que interviu em matéria que não é de sua competência, mas, sim, da entidade religiosa, a única legitima em decidir conflitos doutrinários que surgem em seu seio, notadamente a realização de casamento. Veja, se a pessoa faz parte do rol de membros de uma igreja e chega até se batizar, claramente ela aceitou as regras da entidade religiosa. Se essa pessoa descumpre as regras, passível de sofrer as sanções previstas no regulamento da entidade.
Da mesma maneira torna-se ilegítima a intervenção do Estado em querer obrigar determinada religião a realizar matrimonio de um casal homoafetivo, se a doutrina eclesiástica daquela igreja condena a união de pessoas do mesmo sexo.
Essas intervenções do Estado afrontam a liberdade de organização religiosa e, de outro lado, fere o sentimento religioso dos demais membros que aceitaram a seguir as regras impostas pela entidade religiosa, o que acaba por representar uma discriminação, às avessas, praticada pela autoridade judicial.
Se uma organização religiosa tem regras para a celebração de matrimônio de seus fiéis e recusa-se a celebrar um casamento pelo desatendimento de tais regras, não há aí tratamento discriminatório. Quem age discriminatoriamente é a autoridade judicial que ordena a celebração de um casamento em desacordo com as regras da comunidade religiosa, pois está conferindo a quem buscou a tutela judicial um tratamento desigual em relação aos demais membros da organização. Se o ordenamento jurídico da instituição religiosa não socorre aos nubentes, nem por isso eles estarão impedidos de ter seu casamento civil celebrado pela autoridade judicial, direito que o ordenamento estatal lhes garante. (SANTOS JUNIOR, 2008, p. 54)
A autoridade eclesiástica não está obrigada por lei a realizar casamento religioso de pessoas que descumprem ou não querem obedecer às regras impostas pela sua igreja, essa obrigação decorre somente ao Estado em realizar o casamento civil a todos aqueles que não estejam impedidos pela lei civil de se casarem. Caso seja diferente, a organização religiosa perde sua auto-organização e autodeterminação concedida pela Constituição Federal.
Certamente que a entidade religiosa, ao menos, tem o dever de observar as suas próprias regras, que outrora foram pactuadas, pois, caso não as observe, poderá o Estado intervir para restabelecer a ordem entre os membros, mas é bom deixar claro que essa intervenção se refere apenas ao cumprimento de ordem objetivo do estatuto jurídico e nunca em questões eclesiásticas ou adentrar no mérito de alguma punição disciplinar.
Outra questão que tem levado o Poder Judiciário a se manifestar diz respeito à contribuição de dízimo à igreja. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (05/12/2013), manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal para que a Igreja Universal do Reino de Deus devolvesse a uma ex-fiel o valor de R$ 74 mil. Segundo o Ministro Sidnei Beneti, seguindo o entendimento TJDF, argumentou que é nula a doação de todos os bens que impede a subsistência do doador (STJ, AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 445.576 – DF).
De outro lado, a Igreja Universal do Reino de Deus se defendeu argumentando que os atos de doação – oferta – como estão apoiados na liturgia bíblica, quando doada, não poderia ser desvinculada do contexto religioso. A igreja declarou a impossibilidade de interferência estatal na liberdade de crença, sustentando que o Estado não poderia criar embaraços ao culto religioso.
Ocorre que, dias antes (19/11/2013), o Superior Tribunal de Justiça, pelo Ministro Sidnei Beneti [5], ao analisar caso semelhante, confirmou decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que negou provimento ao recurso de um ex-fiel da Igreja Adventista do Sétimo Dia, sob o argumento que a contribuição do dízimo é um dever de consciência religiosa que não tem natureza de doação.
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[5] RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO COM RESTITUIÇÃO DE VALORES. DÍZIMOS E OUTRAS CONTRIBUIÇÕES. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1.- A contribuição do dízimo como ato de voluntariedade, dever de consciência religiosa e demonstração de gratidão e fé não se enquadra na definição do contrato típico de doação, na forma em que caracterizado no art. 538 do Código Civil, não sendo, portanto, suscetível de revogação. 2.- Ademais, a doação lato sensu a instituições religiosas ocorre em favor da pessoa jurídica da associação e não da pessoa física do pastor, padre ou religioso que a representa. Desse modo, a rigor, a doação não pode ser revogada por ingratidão, tendo em vista que o ato de um membro – pessoa física – não tem o condão de macular o pagamento do dízimo realizado em benefício da entidade, pessoa jurídica. 3.- Recurso Especial improvido. RECURSO ESPECIAL Nº 1.371.842 – SP (2012/0218194-1) RELATOR: MINISTRO SIDNEI BENETI
Segundo o Ministro Sidnei Beneti:
Nesse norte histórico, extrai-se que a contribuição realizada pelos membros das igrejas, como regra, decorre de um dever de consciência religiosa, representado por ato que caracteriza como manifestação da própria fé, bem como da gratidão pelas dádivas recebidas, sendo de se salientar que nenhuma instituição religiosa teria condições de manter as suas atividades sem as contribuições financeiras dos fiéis.
Ora, os dois casos analisados recentemente pelo STJ, com as mesmas características, apresentaram decisões conflitantes: uma o Ministro condena a devolução de dízimos, caracterizando-a como doação, no outro, decide que o dízimo não tem natureza de doação, por isso, impossível a aplicabilidade dos diplomas que tratam sobre a matéria no Código Civil. Certamente que a decisão, que descaracteriza o dízimo de natureza de doação foi a acertada, já que ela configura uma liturgia do culto religioso, que a Constituição Federal protege amplamente. Nessa senda, essas situações de oferta oferecida à instituição religiosa é um ato de fé e aceitação aos mandamentos bíblicos. Sendo ato de fé e de mera liberalidade de consciência religiosa torna-se indevida a interferência do Estado para obrigar a devolução de valores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que a Constituição Federal concedeu um tratamento diferenciado às organizações religiosas, garantindo-lhes a autodeterminação, que inclui a livre forma de se constituírem e organizarem internamente, seja na elaboração de suas normas estatutárias, doutrinas ou práticas litúrgicas. Vale ressaltar que essa liberdade apenas abarcaria as atividades que buscam o fim da instituição, que são as práticas cultuais, de divulgação e propagação de conteúdos religiosos, bem como a realização de ações de beneficência social gratuita.
Em razão dessa ampla liberdade concedida às organizações religiosas, surgem conflitos entre elas o Estado e/ou cidadão. A par desses conflitos se mostra importante definir em quais matérias o poder público pode interferir.
Na constituição da organização religiosa, esta deve observar que as doutrinas e suas liturgias não podem afrontar o direito à vida e aos valores universais da dignidade da pessoa humana.
Primeiramente, torna-se lícita a intervenção do Poder Público – Poder Executivo – quando as instituições religiosas não observarem as normas de segurança do lugar em que é praticado o culto ou quando há perturbação ao sossego. A jurisprudência é pacífica que neste último caso, que a intervenção, em razão do barulho, deve estar baseada em normas técnicas, sob pena, de, caso seja diferente, incorrer o funcionário público em crime de abuso de autoridade.
Outra situação que está causando polêmica entre os religiosos é a interferência do Congresso Nacional, através de dois Projetos de Lei nºs 6.418/2005 e 122/06, na doutrina pregada por algumas religiões, que são contra determinadas orientações sexuais, como o homossexualismo, lesbianismo e transexualismo etc. Referidos projetos preveem criminalizar condutas como homofóbicas todos aquelas que se insurgirem contra a orientação sexual, incluindo as proferidas no seio religioso. Caso sejam aprovados, serão eivados de inconstitucionalidade, já que afrontam o direito à liberdade religiosa.
O conflito entre Igreja e cidadão é que tem apresentado mais debates. Nessas situações entram em colisões os direitos fundamentais do cidadão e a liberdade religiosa coletiva. Ponderou-se, no trabalho que todo cidadão possui liberdade de escolher a religião que queira seguir, mas a partir de que se estabelece em alguma, certamente terá que estar submisso às normas doutrinárias e litúrgicas daquela. Caso descumpra, poderá sofrer as sanções eclesiásticas.
Todavia alguns membros do Poder Judiciário, imiscuem na doutrina da igreja, invalidam normas eclesiásticas estabelecidas pelos próprios membros, apenas para abrigar o interesse de membro que não cumpriu normas pré-estabelecidas. Torna-se descabida essa intervenção, viola totalmente a liberdade de organização religiosa. Do mesmo modo, a oferenda de dízimo à organização religiosa, torna-se perfeita e acabada com o ato de doação, já que se trata de mera liberalidade de consciência religiosa, tornando-se abusivas as decisões judiciais que decretam a sua devolução ao ex-fiel da igreja que a reclama.
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FONTE: http://www.publicadireito.com.br/