O que aconteceu: O Município de Cortês/PE requereu, através de requisição administrativa, seis horas da programação diária da Rádio Nova Cortês para trazer informativos sobre a COVID-19. O caso chegou ao Judiciário.
Onde: Cortês, Pernambuco.
Quando: 24/03/2020 (Portaria) // 25/05/2020 (decisão judicial)
Documentos:
Decreto n. 11/2020, Portaria n. 067/2020, da Secretaria de Saúde do Município de Cortês
Primeira decisão judicial e Segunda decisão judicial (retificação)
Parecer ANAJURE: A Lei n. 13.979/2020 dispôs, em âmbito nacional, sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus. Dentre as medidas listadas como possíveis de adoção pelas autoridades há a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, garantida indenização posterior justa (art. 3º, VII, Lei n. 13.979/2020).
A requisição administrativa é figura prevista no texto constitucional, conforme podemos extrair do art. 5º, XXV, da CF/88: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
No Município de Cortês, o Decreto n. 11/2020 replicou a disposição da Lei n. 13.979/2020 sobre a requisição administrativa, tornando possível a adoção da medida na cidade. Em seguida, a Portaria n. 067, de 24 de março de 2020, da Secretaria de Saúde do Município de Cortês, fez a seguinte exigência à Rádio Nova Cortês:
Art. 1º. Fica determinada a requisição administrativa dos seguintes horários do serviço de radiodifusão prestados pela Rádio Nova Cortês:
I – das 08 (oito) horas as 10 (dez) horas;
II – das 12 (doze) horas as 14 (quatorze) horas;
III – das 18 (dezoito) horas as 20 (vinte) horas.
Parágrafo único. A presente requisição terá o mesmo tempo de duração da situação de calamidade pública.
Art. 2º Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Alegando que a providência não foi tomada pela Rádio, o Município ajuizou Ação de Obrigação de Fazer, cumulada com pedido de tutela de urgência, com a finalidade de compelir a demandada a disponibilizar seus serviços durante os horários requeridos.
O Magistrado responsável pela Vara Única da Comarca de Cortês apreciou o caso e, inicialmente, deferiu o pedido de tutela de urgência, nos termos solicitados pelo Município. No dia 25 de maio de 2020, o Juiz retificou a decisão, quanto aos horários anteriormente estabelecidos, tornando nulo o dispositivo do pronunciamento. Após a correção, a ordem judicial passou a ter este conteúdo:
(…) disponibilizar ao Município de Cortês sessenta minutos diários durante a programação da Rádio Nova Cortês, com o fim único e exclusivo de prestar informações à comunidade sobre medidas adotadas e que se fizerem necessárias ao combate da COVID 19. O referido horário deverá ser distribuído em tempos iguais com informes pela manhã, à tarde e à noite, devendo, os horários de inserção serem feitos de comum acordo entre a Edilidade e a Direção da Emissora. Ademais, fica expressamente vedada qualquer divulgação nesse horário que tenha cunho político eleitoreiro, sob pena de suspensão do horário autorizado. Esta concessão durará enquanto for necessária e ainda subsistir a pandemia do Corona Vírus. (Grifos nossos).
Conforme exposto, a requisição administrativa é instituto previsto no ordenamento jurídico brasileiro e que pode ser adotado em contextos emergenciais. Todavia, é preciso ressaltar que riscos iminentes não suplantam as regras e os princípios que norteiam a Administração Pública. Assim, mesmo no contexto da pandemia, as autoridades permanecem sujeitas a preceitos como a razoabilidade e a proporcionalidade.
Sobre a razoabilidade, José dos Santos Carvalho Filho diz que o princípio deve ser observado pela Administração “à medida que sua conduta se apresente dentro dos padrões normais de aceitabilidade”[1]. Celso Antônio Bandeira de Mello[2] explica que “(…) uma providência administrativa desarrazoada, incapaz de passar com sucesso pelo crivo da razoabilidade, não pode estar conforme à finalidade da lei. Donde, se padecer deste defeito, será, necessariamente, violadora do princípio da finalidade. Isto equivale a dizer que será ilegítima, conforme visto, pois a finalidade integra a própria lei. Em consequência, será anulável pelo Poder Judiciário, a instâncias do interessado”.
Quanto à proporcionalidade, Bandeira de Mello elucida que “(…) as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade correspondentes ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”.
Percebemos, portanto, que a Administração Pública deve adotar medidas compatíveis com a finalidade almejada. No caso em apreço, embora fosse possível se utilizar de horário da programação da Rádio Nova Cortês para informar a população, houve afronta à razoabilidade e à proporcionalidade ao se requisitar seis horas diárias para tal fim. A instrução da população sobre o coronavírus pode ser devidamente realizada utilizando-se tempo significativamente menor do que o proposto pelas autoridades municipais, gerando, consequentemente, menor ônus aos trabalhos da Rádio. A isso, some-se que os horários exigidos coincidiam com os momentos utilizados por algumas igrejas, que estão com as atividades suspensas em virtude da pandemia, para divulgar mensagens aos seus fiéis, algo que acaba por impactar, também, a liberdade religiosa.
Pelo exposto, a ANAJURE (1) entende que a requisição feita pelo Município de Cortês – de seis horas diárias da programação da Rádio Nova Cortês – é desproporcional e desarrazoada, merecendo alteração, como veio a ocorrer via decisão judicial; (2) comunica que oficiará o Município de Cortês sobre o ocorrido.
________
[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2017.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.