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O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Manifestação Pública sobre o anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro.
1) Introdução: A relevância do Código Civil Brasileiro para a vida social
O Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002) desempenha um papel central estrutura jurídica pátria, visto que regula as diversas relações na multifacetada dinâmica social moderna. Abrangendo desde o nascimento do indivíduo, seus vínculos familiares, obrigações, responsabilidade, contratos, propriedade, até sua morte e sucessão patrimonial, o Código atinge diretamente os cidadãos em suas vivências cotidianas, refletindo e moldando a ética e os costumes, tanto nas microrrelações como no tecido social como um todo.
Sua importância reside na capacidade de, partindo dos valores reconhecidos em sociedade, fornecer o arcabouço legal para o estabelecimento de padrões de conduta para a vida social. Assim, fixado o regime jurídico da vida cidadã, com os direitos e deveres individuais e coletivos, o Código busca concretizar as aspirações humanas de segurança jurídica, justiça e estabilidade social, requisitos necessários para a construção de uma comunidade política democrática em busca da realização dos direitos fundamentais e do florescimento humano de seus cidadãos.
2) Da proposta de reforma do Código Civil
O Direito, ferramenta para cultivo da vida social, não pode ser estático em uma sociedade em transformação, mas demanda as devidas revisões necessárias. Assim, compreendendo a necessidade de atualização do texto legal, o Senado Federal nomeou, em 24 de agosto de 2023, uma comissão de juristas para promover a reforma do texto do Código Civil.
Todavia, deve ser dito que o relatório, apresentado no final de fevereiro pela comissão de juristas, apresenta gravíssimas propostas, debatidas em apenas três audiências públicas no curto intervalo de tempo de seis meses. Esse isolamento do debate público se manifesta também no texto da proposta, que se distancia por completo dos padrões de moralidade vigentes na sociedade brasileira. O anteprojeto proposto, ao propor novos significados a institutos jurídicos basilares, termina por promover não uma reforma, mas uma completa reformulação do Código Civil brasileiro, alterando seus fundamentos para alinhá-lo a perspectivas ideológicas minoritárias acerca de realidades da vida e identidade humanas.
No tocante à vida humana, o texto proposto propõe a inclusão do art. 1.511-A, § 1º, que disporia: “A potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina é expressão de dignidade humana e de paternidade e de maternidade responsáveis; […]”. Ao referir-se ao nascituro como mera “potencialidade de vida humana”, o anteprojeto rebaixa o valor da vida humana em seu estágio inicial de desenvolvimento, negando a realidade de sua existência atual enquanto ser biológico da espécie humana. A positivação de tal entendimento impactará, em uma interpretação sistemática, o reconhecimento dos direitos ao bebê ainda não nascido, contribuindo para o fortalecimento de discursos jurídico-políticos em prol da negação do direito ao nascituro.
Os ataques à proteção ao nascituro se manifestam de forma sistemática no anteprojeto. O texto apresentado propõe a alteração do art. 2º do Código Civil para inclusão dos trechos destacados:
“Art. 2º A personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida e termina com a morte encefálica; a lei põe a salvo, desde a concepção, para os fins deste Código, os direitos do nascituro.”
A inclusão da expressão “para os fins deste Código” no tocante aos direitos do nascituro restringe a garantia estabelecida pelo dispositivo apenas à matéria do Direito Civil, em detrimento da redação anterior, que, ampla, possibilitava a interpretação extensiva para abarcar a proteção à vida e aos direitos fundamentais do nascituro em relação ao ordenamento jurídico como um todo.
Mais adiante, em sua proposta de alteração do art. 1.638, inciso I, a comissão se afasta do comedimento da redação anterior. Enquanto o texto vigente prevê a perda do poder familiar do pai ou mãe que “castigar imoderadamente o filho”, reconhecendo um âmbito de legitimidade no exercício da correção parental, o anteprojeto propõe como sua redação:
“Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I – submeter o filho a qualquer tipo de violência, de modo a comprometer sua integridade física, moral ou psíquica; […]”.
O texto proposto pelo anteprojeto exclui o reconhecimento de um âmbito legítimo de “castigo moderado”, em seu lugar adotando redação demasiado ampla e indefinida, possibilitando que interpretações judiciais venham a invadir a esfera familiar de modo a restringir indevidamente a autoridade parental para o exercício da disciplina dos filhos.
No que se refere ao casamento, duas proposições chamam a atenção. Através da inclusão do art. 1.582-A, propõe a comissão a criação do divórcio unilateral extrajudicial, possibilitando que o cônjuge efetue a averbação do divórcio junto ao cartório sem prévia comunicação. Referido dispositivo, incluído a título de desburocratização e adaptação à fluidez das relações da modernidade tardia, contribui para instabilidade das relações sociais e familiares, bem como gera problemas decorrentes do procedimento estabelecido, que impossibilita o prévio pleito de questões surgidas pelo desfazimento do vínculo conjugal.
A seguir, a redação proposta para o art. 1.702 acrescenta, ao lado de “sociedade conjugal” e “união estável”, o termo “sociedade convivencial”, não como sinônimo para o último, mas como um terceiro instituto ou nomenclatura mais abrangente: “Em caso de dissolução do casamento, da sociedade conjugal ou convivencial ou da união estável, sendo um dos cônjuges desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar […]”. Tal expressão indefinida, acrescida ao texto como categoria distinta de união, pode vir a servir de arcabouço para o reconhecimento, no próprio Código, de vínculos alternativos, tal como as chamadas “uniões poliafetivas”.
Por fim, o anteprojeto promove profunda alteração dos conceitos de identidade e autonomia individual, trazendo consigo forte carga ideológica de um individualismo expressivo pós-moderno. Como proposta de alteração do art. 16, a identidade do sujeito passaria a ser juridicamente compreendida como a confluência de “seu estado individual, familiar e político, não se admitindo que seja vítima de qualquer discriminação, quanto a gênero, a orientação sexual ou a características sexuais”. Por sua vez, o prenome e sobrenome deixariam de ser uma realidade social e direito individual para se tornar “expressão de individualidade e externa a maneira peculiar de alguém estar em sociedade”.
A gravidade do conjunto de disposições acima exposto se torna mais evidente ao tocar a figura vulnerável da criança e do adolescente. O anteprojeto propõe nova redação para o art. 4º do Código Civil, que passaria a dispor:
“Art. 4º É reconhecida a autonomia progressiva da criança e do adolescente, devendo ser considerada a sua vontade em todos os assuntos a eles relacionados, de acordo com sua idade e maturidade”.
Esse reconhecimento de uma fluida e gradual autonomia da criança, assomada à mitigação do poder parental proposta para o art. 1.638, I, e aos novos conceitos de identidade social a serem inscritos no art. 16, poderiam vir a justificar a realização de procedimento de redesignação de sexo em menores de idade a despeito da oposição dos pais, sob argumento de garantia da autonomia e afirmação da identidade da criança e adolescente contra indevida violência psicológica e social dos responsáveis.
Desse modo, visto que os temas expostos são da mais alta relevância para os cidadãos e para a comunidade política como um todo, faz-se necessário que o relatório e a reforma propostos detenham a participação da sociedade e da comunidade de juristas nacionais de modo efetivo, que não se perfaz através da realização de três audiências públicas em um curto intervalo de tempo. Somente através do amplo debate público poderá o texto proposto promover a devida atualização do Código Civil Brasileiro, sem, contudo, reduzir direitos e ferir nobres valores sociais profundamente arraigados na população, como o apreço pela instituição familiar e a sacralidade da vida.
3) Conclusão
Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), em seu compromisso em defesa dos direitos fundamentais, manifesta sua profunda preocupação com o teor do anteprojeto da reforma do Código Civil Brasileiro apresentado pela comissão de juristas convocada pelo Senado Federal, ressaltando a necessidade de mobilização da sociedade civil e do Congresso Nacional para o aprofundamento das temáticas abordadas através de amplo e paciente debate público, de modo a evitar graves prejuízos à ordem jurídica e social.
A ANAJURE continuará a acompanhar a tramitação da proposta de reforma do Código Civil e apresentará parecer técnico após a propositura do projeto de lei
Brasília, 8 de março de 2024.
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE