O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre episódios recentes de restrições à liberdade de expressão em decisões judiciais.
1. Síntese fática
Nos últimos dias, dentro do contexto do pleito eleitoral de 2022, notícias sucessivas de decisões judiciais restringindo a publicação de conteúdos têm vindo a público. Os fundamentos para esses pronunciamentos variam, havendo, em alguns casos, a alegação de que o conteúdo cuja remoção foi determinada caracteriza “fake news” ou “desordem informacional”.
De modo especialmente relevante, recente decisão do Supremo Tribunal Federal em 6 de novembro de 2022 determinou a suspensão da página do Twitter do economista Marcos Cintra, em face de alegada disseminação de “notícias fraudulentas acerca do funcionamento das urnas eletrônicas e do processo eleitoral” e ataques às “instituições democráticas, notadamente o Tribunal Superior Eleitoral, bem como o próprio Estado democrático”.
Esse contexto fático dá ensejo à presente Nota Pública, onde realizar-se-ão considerações acerca da compatibilidade de referida decisão com a proteção ao direito fundamental à liberdade de expressão, uma das liberdades civis objeto da atuação da ANAJURE.
2. O direito fundamental à liberdade de expressão
O direito à livre expressão constitui-se como um dos principais alicerces do Estado Democrático de Direito. Sendo uma das mais antigas reivindicações humanas, a liberdade de expressão é radicada tanto na experiência histórica dos povos como na própria estrutura do ser humano.
Conforme apresentam Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco[1], a partir da obra de Pablo Salvador Coderch[2], a necessidade da garantia da liberdade de expressão pode ser justificada através de múltiplas perspectivas. Em consonância com sua gênese histórica nas revoluções liberais, a garantia surge como direito defensivo, viabilizando a crítica aos governantes, sendo uma ferramenta para o controle político do Estado. Adentrando reflexões mais profundas acerca do caráter relacional do ser humano, a garantia da liberdade de expressão surge como ferramenta necessária à efetivação da dignidade humana, onde, no encontro com o próximo, possibilita-se o florescimento do indivíduo e da sociedade através da realização da fundamental socialidade do homem.
Essa dimensão social e dialógica, por sua vez, atinge sua concretude política no regime democrático, conquista recente de nossa nação, onde a livre manifestação do pensamento é condição sine qua non para seu funcionamento e preservação através da proteção ao pluralismo de opiniões. Como manifestou o Min. Luís Roberto Barroso, em sede da Rcl. 22.328/RJ: “A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades”.
A liberdade de expressão é amplamente protegida no âmbito internacional e nacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe em seu art. 19 que: “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. De modo semelhante, dispõem o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – PIDCP (art. 19) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 13). A Constituição Federal de 1988 fixa que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5º, inciso IV).
A exemplo dos outros direitos fundamentais, no entanto, a liberdade de expressão não é absoluta, podendo ser limitada pela lei quando necessário ao respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas, à proteção da segurança nacional, da ordem, da saúde e da moral pública (art. 19, item 3, do PIDCP e art. 13, item 2, CADH).
No âmbito da literatura jurídica, José Afonso da Silva[3] explica que a liberdade de pensamento envolve o contato do indivíduo com os seus semelhantes, de forma que, nesse diálogo, exteriorize as suas concepções intelectuais. Sarlet[4] desenvolve a ideia de que protegê-la significa defender, também, a dignidade da pessoa humana, sobretudo no que se refere à autonomia do indivíduo, bem como a própria democracia, visto que a liberdade de expressão é uma condição imprescindível para a existência do pluralismo político.
Um dos desdobramentos da proteção a esse direito é que “não se pode impor a ninguém uma conduta ou obrigação que conflite com sua crença religiosa ou com sua convicção filosófica ou política”[5]. Outra decorrência da liberdade de expressão é a tutela da comunicação. Segundo Silva[6], as formas de comunicação possuem os seguintes princípios como norte:
(a) observado o disposto na Constituição, não sofrerão qualquer restrição que seja o processo ou veículo por que se exprimam; (b) nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística; (c) é vedada toda e qualquer forma de censura de natureza política, ideológica e artística; (d) a publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade; (…)
Nesse sentido, é possível falar também de uma “liberdade de informação jornalística”, que “alcança qualquer forma de difusão de notícias, comentários e opiniões por qualquer veículo de comunicação”. Especificamente a esse respeito, a Constituição Federal dispõe:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Cumpre destacar que o rol das disposições constitucionais elencadas no Art. 220, §1 que podem mitigar o exercício da liberdade de imprensa são a vedação do anonimato (inciso IV); direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV).
Na esteira desses fundamentos, o Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento da ADPF 130 sobre a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal de 1988 por manifesta incompatibilidade material, tratou profundamente sobre a liberdade de expressão e de imprensa reforçando que:
“o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas.”
Tais considerações se tornam especialmente relevantes em face da recente decisão do Min. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que determinou o bloqueio dos canais virtuais do economista Marcos Cintra em face do conteúdo político de uma de suas publicações, colocando em questão a garantia constitucional à livre manifestação do pensamento.
3. Acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal que determinou o bloqueio dos perfis do economista Marcos Cintra
Em 5 de novembro de 2022, através de publicação em suas redes sociais[7], o Dr. Marcos Cintra, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas e ex-candidato à vice-presidência da República, teceu comentários acerca dos recentes questionamentos ao funcionamento e fiscalização das urnas eleitorais.
Nessa ocasião, o economista apontou alegada incongruência em resultados em sessões eleitorais, destacando a existência de urnas cuja totalidade dos votos teria se destinado a somente um dos candidatos do pleito. Com base nas informações alegadas, Marcos Cintra cogita a adoção do voto impresso como possível solução para a desconfiança contra as urnas eletrônicas e conclama a apuração dos fatos pelo TSE, sob risco de acusação de cumplicidade com eventuais falhas caso se omita à averiguação:
“E as urnas, TSE? Tenho razões para não concordar com Bolsonaro… falta de preparo e de cultura, baixa capacidade de liderança, e comportamento inadequado para presidir um país como o Brasil. Mas as dúvidas que ele levanta sobre as urnas merecem respostas. Verifiquei os dados do TSE e não vejo explicação para o JB ter zero votos em centenas de urnas. Ex. Roraima, e em São Paulo, como em Franca, Osasco e Guarulhos.
Quilombolas e indígenas não explicam esses resultados, sob pena de admitir que comunidades foram manipuladas. Há outras centenas, senão milhares de urnas com votações igualmente improváveis. Curiosamente não há uma única urna em todo o país onde o Bolsonaro tenha tido 100% dos votos. E se há suspeita em uma única urna, elas recaem sobre todo o sistema.
Acredito na legitimidade das instituições. Não admito que o TSE seja cúmplice, no caso de descobrirem algum bug no sistema. Mas sim, se tornará cúmplice se não se debruçar sobre esses fatos e esclarecer tudo. Independentemente de qualquer outra consideração ou preferência política, a preservação das instituições democráticas exige respostas convincentes. Caso contrário estarei sendo forçado a reconhecer a validade dos pleitos por voto em papel.
Tivéssemos registros em papel, sem prejuízo das vantagens da digitalização dos votos, estes casos aparentemente inexplicáveis poderiam ser rapidamente descartados, evitando as dúvidas sobre a integridade do sistema que estão se avolumando. São dúvidas legítimas.
Qualquer cidadão, como eu, tem o dever de exigir esclarecimentos das autoridades competentes para preservar a democracia e a legitimidade de nossas instituições. Quero ardentemente acreditar que haja explicação convincente.”
No âmbito do Inquérito 4.874, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, foi apreciada a publicação feita pelo Sr. Marcos Cintra. No entendimento do Relator, a fala do economista representou um ataque ao STF e ao TSE, além de constituir a propagação de notícias fraudulentas sobre o funcionamento das urnas eletrônicas e do processo eleitoral.
Como consequência, foi determinado o bloqueio da página de Marcos Cintra no Twitter. Na fundamentação, o Ministro indicou que Cintra, em sua fala, utilizaria “as redes sociais para atacar as instituições democráticas, notadamente o Tribunal Superior Eleitoral, bem como o próprio Estado democrático de Direito, o que pode configurar, em análise preliminar, crimes eleitorais”, o que permitiria a adoção de medidas que restrinjam a divulgação de conteúdo falso. Contudo, observa-se que não foram indicados os tipos penais e as respectivas condutas nas quais incorreria o economista.
De forma bastante sintética, a decisão proferida decide pela remoção do conteúdo. No entanto, ao fazê-lo, deixa de observar alguns elementos necessários em casos de restrição aos direitos fundamentais, no caso, a liberdade de expressão.
Primeiramente, vale expor que a limitação de direitos fundamentais deve ser excepcional. Também deve ser específica, de modo que não se viole a proporcionalidade ao restringir um direito a partir de medida mais gravosa do que o necessário. É importante, ainda, que a limitação imposta tenha um lapso temporal determinado, a fim de que não se perpetue indefinidamente.
A decisão proferida, contudo, deixa de observar tais requisitos. Em termos extremamente breves, ela falha em fornecer fundamentos suficientes para justificar a restrição à liberdade de expressão, medida que deveria ser marcada pela excepcionalidade. Ademais, determina o bloqueio sem sequer considerar outras opções de menor gravidade, o que gera problemas em termos de proporcionalidade, contrariando os precedentes estabelecidos sobre o tema, como o decidido na Rcl. nº 22.328/RJ. Ainda, deixa de estabelecer período durante o qual o perfil estaria suspenso, o que pode gerar uma restrição contínua da liberdade de expressão.
Nota-se, portanto, que a decisão carece de contornos bem definidos, trazendo a preocupação de que restrições aos direitos fundamentais sejam instituídas de modo arbitrário, com grande similitude à prática de censura prévia, vedada pela ordem jurídica democrática vigente no país. Como ensina o próprio Min. Alexandre de Moraes[8]:
“A liberdade de expressão e de manifestação de pensamento não pode sofrer nenhum tipo de limitação prévia, no tocante a censura de natureza política, ideológica e artística. (…) A censura prévia significa o controle, o exame, a necessidade de permissão a que se submete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer texto ou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráter preventivo e vinculante é o traço marcante da censura prévia, sendo a restrição à livre manifestação de pensamento sua finalidade antidemocrática, pois, como salientado pelo Ministro Celso de Mello, ‘a liberdade de expressão é condição inerente e indispensável à caracterização e preservação das sociedades livres e organizadas sob a égide dos princípios estruturadores do regime democrático’”.
Decerto é necessária a atuação do poder público na contenção de abusos ocasionados pela disseminação de fake news, sendo possível questionar informações inverídicas existentes na manifestação de Cintra em suas redes sociais. Contudo, tal ação jurisdicional não deve ser ocasião para restrições arbitrárias a seu exercício, ou mesmo o tolhimento de espaços públicos de diálogo e manifestação sem prévia averiguação ou contraditório. Assim, em cumprimento aos seus objetivos institucionais, manifesta-se a ANAJURE contra tais violações aos direitos e garantias fundamentais.
4. Conclusões
Pelo exposto, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE:
- Manifesta-se em defesa da liberdade de expressão, ressaltando a necessidade de que os tribunais brasileiros evitem a adoção de decisões que se confundam com censura;
- Repudia a recente decisão que determinou o bloqueio dos perfis em mídias sociais do economista Marcos Cintra, visto que referida medida ultrapassa os meios restritivos constitucionalmente estabelecidos, caracterizando a censura prévia.
- Informa que seguirá acompanhando os desdobramentos das decisões judiciais durante o presente pleito eleitoral, e tomará as ações cabíveis para preservação das liberdades civis fundamentais .
Brasília-DF, 7 de novembro de 2022.
Assessoria Jurídica da ANAJURE
Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE
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[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 234-235.
[2] CODERCH, Pablo Salvador. El derecho de la libertad, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais em espécie. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[5] SILVA, op. cit.
[6] SILVA, op. cit.
[7] https://www.poder360.com.br/justica/moraes-manda-pf-ouvir-cintra-e-proibe-publicacoes-contra-urna/
[8] DE MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2017, p. 56-57.