Nota Pública sobre a Portaria n. 230/2023 do Ministério da Saúde, referente a questões de gênero

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE –, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre a Portaria n. 230/2023, de autoria do Ministério da Saúde.

I – Dos fatos

Em 08 de março de 2023, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n. 230/2023, que institui o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde – SUS.

Por meio do referido programa, o Ministério tem como objetivos, além da promoção de equidade, enfrentar violências ao trabalho na saúde, acolher trabalhadoras da saúde no processo de maternagem, promover ações voltadas ao cuidado em saúde mental, dentre outros. As atividades do programa serão voltadas para trabalhadores, gestores e estudantes da área da saúde.

A Portaria é constituída de duas partes. Na primeira, estão agrupados seus artigos que detalham os objetivos, as linhas de ação e informações sobre a execução do programa. Na segunda, no formato de anexo, são elencados princípios, conceitos e diretrizes. Nessa porção, a Portaria se debruça sobre pontos importantes, como laicidade do Estado e definições relativas a gênero.

Entendendo que a delimitação de tais conceitos demanda análise, a ANAJURE divulga a presente Nota Pública.

II – Regulamentação da saúde brasileira pelo Poder Público

Inicialmente, vale mencionar os dispositivos constitucionais que regulamentam a saúde no território brasileiro. O art. 24 traz uma definição acerca da competência legislativa sobre a matéria:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(…)
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; (grifo nosso).

Ao tratar da Ordem Social, a Constituição se dedica à saúde nos artigos 196 a 200. Um dos pontos fixados é que a regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços de saúde serão realizados nos termos da lei:

Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. (Grifo nosso).

Em conformidade com o art. 198, “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único”. Trata-se do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja regulamentação se dá por meio da Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Nos termos da referida lei:

Art. 1º Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado.

A Lei n. 8.080/1990 traça objetivos, princípios, diretrizes e orienta a organização do SUS. Como consequência, estão inseridas no campo de atuação do SUS tarefas como a execução de ações, a formulação e execução de iniciativas relacionadas ao saneamento básico, a ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde, a colaboração na proteção do meio ambiente, dentre outros (art. 6º, Lei n. 8.080/1990).

A referida norma ainda fixa algumas competências para os entes federativos, concedendo-lhes a responsabilidade de gerir recursos, produzir normas técnicas a respeito da assistência à saúde, monitorar o nível de saúde da população, participar da formulação e execução de política de formação de recursos humanos para a saúde, etc. (art. 15, Lei n. 8.080/1990).

No âmbito da União, o direcionamento das atividades do SUS ficam sob a alçada do Ministério da Saúde, que possui competência para orientar a execução de leis, decretos e regulamentos, nos termos da Constituição:

Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.
Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:
(…)
II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;

Feito esse breve resumo acerca do funcionamento do SUS, é possível seguir para a análise de alguns pontos da Portaria n. 230/2023 que demandam atenção.

II – Do teor da Portaria n. 230/2023

A Portaria n. 230/2023 traz disposições importantes para promover a equidade entre profissionais da área da saúde, especialmente no que diz respeito às mulheres. Dentre as suas diretrizes, define ações como a promoção de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres; iniciativas voltadas ao acolhimento de mulheres lactantes e em fase de retorno da licença-maternidade; e cuidados relacionados à saúde mental dos trabalhadores da área da saúde. Tais previsões estão associadas a dispositivos constitucionais que resguardam a igualdade (art. 5º, caput, CRFB) e direitos sociais como a saúde e a proteção à maternidade (art. 6º, caput, CRFB). No entanto, alguns pontos da Portaria contêm problemas.

II.I – Equívocos na compreensão da laicidade estatal.

O primeiro a ser citado consta no item 1, inciso II, do Anexo. Nele, dispõe-se:

1. Dos Princípios
(…)
II – Laicidade do Estado – as políticas públicas de Estado devem ser formuladas, implementadas, monitoradas e avaliadas de maneira independente de princípios religiosos, de forma a assegurar efetivamente os direitos consagrados na Constituição Federal e nos diversos instrumentos nacionais e internacionais assinados pelo Estado brasileiro, como medida de proteção aos direitos humanos no que tange a promoção de equidade de gênero e raça;

Aqui, a Portaria falha em compreender adequadamente a laicidade estatal, preferindo uma aproximação ao que se entende por “laicismo”. A laicidade consagrada no Brasil veda subvenções e embaraços públicos às organizações religiosas, mas vê margem para a interação com o fenômeno religioso – algo reconhecido pela própria Constituição ao viabilizar a colaboração de interesse público entre entes federativos e organizações religiosas (art. 19, I, CRFB). O laicismo, por sua vez, pretende extirpar manifestações de religiosidade da esfera pública. Isso é prejudicial não apenas do ponto de vista do religioso, que é afastado dos debates, mas também em relação à própria sociedade, que perde contribuições valiosas. Nesse sentido, as palavras de Aloisio Cristovam do Santos Junior são elucidativas:

Um outro aspecto que deve ser posto em relevo é o de o Estado laico não é aquele absolutamente imune a influências religiosas. Os exemplos de Estados laicos que adotaram políticas públicas que direta ou indiretamente resultaram de movimentos capitaneados por líderes religiosos são inúmeros. Por vezes, a motivação religiosa constitui fator determinante para a luta encetada por certos segmentos sociais visando à adoção de políticas governamentais que melhoram a vida de toda a sociedade. No particular, o caso de Martin Luther King Junior é emblemático. Ninguém em sã consciência pode negar que muitas das políticas governamentais americanas foram fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos Civis liderado pelo pastor batista com motivações fortemente religiosas.

II.II – Institucionalização de perspectiva teórica por meio de ato infralegal.

Mais adiante, a Portaria elenca alguns conceitos e apresenta a seguinte definição de gênero e identidade de gênero:

VI – Gênero – o gênero é um dos princípios de organização social: organiza identidades e autoconceitos (ex: autopercepção de saúde); estrutura interações sociais (ex: discriminação, práticas de cuidado); organiza estruturas sociais e embasa a distribuição de poder e recursos (ex: controle sobre o trabalho) (Wharton, 2009). Refere-se a comportamentos, performatividades e papéis que uma dada sociedade, em um dado momento, considera coerente para homens e mulheres. Esses papéis são socialmente construídos, e, hegemonicamente sustentados por uma perspectiva biológica. Pode-se dizer que gênero é o modo “como os sexos [mulher ou homem] são pensados e como as qualidades sexuais vêm a ser aplicadas a outras formulações” (Strathern, 2014);

VII – Identidade de Gênero – identidade de gênero se refere ao posicionamento de uma pessoa frente a questões socioculturais e políticas referentes à gênero. A identificação de uma pessoa parte, exclusivamente, de sua declaração frente ao gênero, existindo uma gama de identidades conhecidas. Elas podem ser declaradas de diferentes formas. Entende-se que uma pessoa cisgênero é aquela que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, enquanto a pessoa transgênero é aquela que se identifica com o gênero oposto ao atribuído no nascimento. Esse é o caso, por exemplo, de uma mulher transgênero, a quem foi atribuída a identidade masculina, porém, que se identifica como mulher;

Com tais conceitos, a Portaria faz com que cada uma de suas diretrizes acerca de equidade de gênero se aplique sob o norte da definição firmada. Isso envolve, por exemplo, os dispositivos acerca de assédio moral, que incluem situações humilhantes e constrangedoras (Portaria 230/2023, Anexo, item 2, II), bem como a adoção de “linguagem que promova a equidade” (Portaria 230/2023, Anexo, item 3, I, ‘c’).

Desse cenário, decorrem alguns problemas.

Primeiramente, destaque-se que a concepção sustentada na Portaria acerca de “gênero” não encontra previsão em normas aprovadas pelo Poder Legislativo. A Lei n. 8.080/1990, ao tratar do SUS, estabelece diretrizes e princípios, mas não faz referência à distinção entre homens e mulheres como resultado de uma construção social, nem parte dessa concepção para instituir programas de combate ao assédio moral[1].

O que se tem, portanto, é a utilização de uma Portaria para institucionalizar as chamadas teorias críticas de gênero. No entanto, esse tipo de ato administrativo não é dotado da prerrogativa de inovar no ordenamento jurídico, destinando-se, apenas, a concretizar a execução da lei, a ser elaborada, debatida e aprovada pelo Legislativo. Trata-se de uma decorrência do princípio da legalidade, explicado nos seguintes termos por Celso Antônio Bandeira de Mello[2]:

O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. (…) Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já se contém abstratamente nas leis. (Grifo nosso).

Essa vedação se aplica aos diferentes níveis da Administração Pública, inclusive no que diz respeito à expedição de Portarias por Ministros de Estado. Mais uma vez, as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello[3] são elucidativas:

Assim, toda a dependência e subordinação do regulamento à lei, bem como os limites em que se há de conter, manifestam-se revigoradamente no caso de instruções, portarias, resoluções, regimentos ou normas quejandas. Desatendê-los implica inconstitucionalidade. A regra geral contida no art. 68 da Carta Magna, da qual é procedente inferir vedação à delegação ostensiva ou disfarçada de poderes legislativos ao Executivo, incide e com maior evidência quando a delegação se faz em prol de entidades ou órgãos administrativos sediados em posição jurídica inferior à do Presidente e que se vão manifestar, portanto, mediante atos de qualificação menor. (Grifo nosso).

Desse modo, constata-se a supressão da instância Legislativa por meio da publicação de ato infralegal que busca dispor sobre matéria não constante em lei. Esse elemento formal, por si só, já representa uma disfunção da Portaria exarada. No entanto, há que se ressaltar, também, alguns elementos de ordem material.

II.III – Riscos decorrentes da Portaria ao legítimo exercício da liberdade religiosa

A liberdade religiosa é direito fundamental amplamente resguardado por diferentes textos normativos. Essa vasta proteção está relacionada à relação íntima entre espiritualidade e dignidade da pessoa humana, considerando o papel exercido pela religião ao conferir norte, significado e identidade aos seus adeptos. Compreendendo isso, o art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos/1948, da ONU, dispõe que:

Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.

De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 (PIDCP) estabelece, em seu art. 18, item 1:

Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.

Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica/1969 preceitua nos seguintes termos:

Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado (grifo nosso).

A Constituição Federal de 1988, por sua vez, traz a seguinte disposição:

Art. 5º. (…) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Cabe pontuar que a liberdade religiosa tem um aspecto interno (forum internum) e um aspecto externo (forum externum). Aquele diz respeito à liberdade que o indivíduo tem de aderir ou mudar de religião. Esse processo de formação de convicções está ligado ao forum internum do indivíduo, ou seja, sua esfera íntima de existência. Igualmente importante o aspecto externo desse direito, que diz respeito à manifestação da religião. De fato, qualquer convicção profundamente assentada levará inevitavelmente a manifestações práticas de várias maneiras, que foram resumidas pela DUDH na forma de “ensino, prática, culto e observância”.

A partir do momento em que a Portaria consagra as teorias de gênero como parâmetro norteador das relações no âmbito dos estabelecimentos de saúde, acaba por restringir a conduta de trabalhadores da área, inclusive, daqueles que não são adeptos de tais teorias. Disso podem decorrer limitações à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, ambas protegidas pelo texto constitucional (art. 5º, IV e VI, CRFB).

No texto da Portaria, menciona-se, por exemplo, a possibilidade de se configurar assédio moral como decorrência de constrangimentos relacionados a questões de gênero. É certo que a adoção de uma identidade de gênero distinta daquela decorrente de elementos biológicos não deve resultar em inaceitáveis agressões físicas ou verbais a uma pessoa. No entanto, imagine-se a situação hipotética a seguir: em meio a conversas sobre questões de gênero, um trabalhador da área da saúde manifesta diante de outros o seu entendimento de que as teorias de gênero que embasam o movimento LGBT são pecaminosas. Ele será punido por assédio moral, caso se alegue que a sua concepção gerou constrangimento? A Portaria, nos termos atuais, leva a crer que essa é uma possibilidade.

No entanto, dentro do que se entende por liberdade religiosa, não é possível consentir com tal perspectiva. Menos ainda quando se considera o entendimento firmado pelo STF na ADO 26[4], quando se discutiu a criminalização da homotransfobia:

A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professa, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero

Nota-se, portanto, que o atual entendimento vigente no STF acerca do combate à homotransfobia não abrange a manifestação de convicções religiosas, ditas de modo respeitoso, acerca de questões de gênero.

III – Conclusão

Assim, pelo exposto, a ANAJURE comunica que enviará a presente Nota ao Ministério da Saúde, solicitando a reconsideração do uso de referências à laicidade estatal e às teorias de gênero na Portaria n. 230/2023, consideradas as violações ao disposto pela Constituição Federal no que tange à laicidade e a incompatibilidade de tais previsões com o princípio da legalidade e a proteção à liberdade religiosa.

Brasília-DF, 14 de março de 2023

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] Nas suas diretrizes, a Portaria prevê: “Fomentar programas de prevenção e combate ao assédio moral e sexual no trabalho compreendendo a dimensão de gênero e raça” (item 3, II, ‘b’).

[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2013. p. 108.

[3]  MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2013. p. 374.

[4] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240