O Conselho de Representação Estadual na Paraíba da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite a presente Nota com análise jurídica das declarações feitas pela professora Lourdes Rumanelly acerca de práticas homossexuais, durante live realizada em perfil numa rede social.
I – SÍNTESE FÁTICA
No dia 10 de junho de 2020, Lourdes Rumanelly, professora de biologia em algumas escolas de João Pessoa/PB, iniciou, em sua conta particular, numa rede social, uma série de lives chamada “The Mind”, com o objetivo de “abordar a mente de Deus a respeito de temas biológicos”, combinando, assim, suas duas áreas de formação: Biologia e Teologia. Assim, tratou dos seguintes assuntos: “Origem do universo e origem da vida”; “Criacionismo científico x Evolucionismo”; “Vida x aborto e Determinação Genética do Sexo”.
A última temática foi exposta no dia 01 de julho de 2020 e ganhou considerável repercussão na mídia local pelo fato de diversos grupos terem alegado que a professora teria incorrido no crime de homofobia.
A live foi constituída de três momentos. No primeiro, Rumanelly apresentou a perspectiva biológica do assunto, explicando como os genes atuam na determinação do sexo dos seres humanos e indicando que, geneticamente, o padrão existente é aquele conferido pelo sistema XY.
Em segundo lugar, a professora teceu considerações sobre a visão fornecida pelas teorias de gênero, demonstrando incompatibilidades entre esta e a concepção da Biologia. Os comentários, nessa etapa da live, abordaram alguns trechos do livro “Gênero e Diversidade Sexual: Um glossário”[i], de autoria de Maria Eulina Pessoa de Carvalho (UFPB), Fernando Cézar Bezerra de Andrade (UFPB) e Rogério Diniz Junqueira (INEP). O documento está disponível no site da Universidade Federal da Paraíba, em página do Projeto Biblioteca Digital Escolas Plurais[ii], que mantém documentos relacionados à promoção de uma “educação não-sexista” nas escolas.
Num dos momentos, Rumanelly lê um trecho do referido livro que conceitua a heteronormatividade da seguinte forma: “Conjunto de valores, normas, dispositivos e mecanismos definidores da heterossexualidade como a única forma legítima e natural de expressão identitária e sexual, que faz com que a homossexualidade, a transgeneridade e as práticas sexuais não reprodutivas sejam vistas como desvio, crime, aberração, doença, perversão, imoralidade, pecado” (p. 20). Comentando a definição, a professora rejeitou que a prática homossexual seja tida como crime, não classificou como doença, mas afirmou que, à luz da Bíblia, é aberração, perversão, imoralidade e pecado. Essa é uma das falas que está sendo mais criticada e classificada como crime de homofobia.
Na terceira etapa da transmissão ao vivo, a docente citou algumas passagens bíblicas que indicam a homossexualidade como pecado e apresentou Jesus como a solução para a humanidade. Explicou que o Deus do cristianismo é amoroso, misericordioso e gracioso, tornando o perdão acessível a todos que se arrependem de seus pecados, incluindo os homossexuais.
Depois disso, a live foi encerrada e a repercussão se iniciou. Além de sites que noticiaram a respeito, houve também reação advinda do Núcleo da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos, da Defensoria Pública do Estado da Paraíba, por meio da Recomendação n. 06/2020.
No documento, a DPE-PB classificou a conduta da professora como homofóbica e preconceituosa, recomendando que Rumanelly emita Nota de Retratação em suas redes sociais e em outros meios de comunicação com pedido de desculpas no qual necessariamente constate:
- Que reconhece a legitimidade do movimento LGBTQIA+, a legalidade de suas ações e sua importância no contexto atual, onde se discute a inserção, a inclusão, o combate a LGBTfobia e o respeito à dignidade da pessoa humana, direito norteador de todo o nosso Ordenamento Jurídico;
- Que reconhece que o Supremo Tribunal Federal decidiu que homofobia é crime equiparado ao de racismo, sendo inafiançável e imprescritível;
- Que reconhece e respeita que a orientação sexual é um direito de cada cidadão e de cada cidadã constitucionalmente assegurado e que, feita ou exercido esse direito, o cidadão e cidadão, devem ser respeitados como tal, e que atitudes contrárias à liberdade e ao direito da orientação sexual em qualquer espaço, público ou privado, inclusive dificultar acesso aos referidos espaços é crime;
- Que se dispõe, também, a ministrar palestra nas Escolas Públicas da cidade de João Pessoa ou outro local a ser determinado pelo movimento LGBTQI+, sobre o tema HOMOFOBIA.
São os principais pontos a relatar. Passemos à análise jurídica do caso.
II – ANÁLISE JURÍDICA
Inicialmente, vale pontuar que as garantias constitucionais referentes à proteção da vida e da integridade física, bem como à vedação de tratamentos desumanos e degradantes se aplicam plenamente à população LGBTQI+, não havendo margem para o estímulo de agressões motivadas por questões de orientação sexual.
Em determinadas hipóteses, é possível que a violação de direitos das pessoas LGBTQI+ configure crime de homofobia, nos termos definidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADO n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Nesta Nota, buscaremos verificar se a conduta da professora Lourdes Rumanelly pode ser enquadrada como crime de homofobia, conforme tem se alegado após suas declarações sobre a as práticas homossexuais.
II.I – Elementos definidos pelo STF no julgamento da criminalização da homofobia (ADO n. 26)
Primeiramente, esclareçamos o que restou assentado, pelo STF, no julgamento da ADO n. 26:
- A Corte reconheceu a mora do Congresso Nacional quanto à incriminação de atos atentatórios a direitos fundamentais das pessoas LGBTQI+.
- Na ocasião, a maioria se formou pela aplicação da Lei n. 7.716/1989 (Lei do Racismo) aos casos de homotransfobia até que o Legislativo regule a matéria. A tese se sagrou vencedora ainda que parte dos Ministros tenha se oposto à aplicação da Lei do Racismo, sob o argumento de que a tipificação de condutas penais demanda lei aprovada pelo Legislativo, não sendo uma competência da Suprema Corte.
- A compatibilidade constitucional entre a repressão penal à homotransfobia e a intangibilidade do pleno exercício da liberdade religiosa.
Dedicaremos maior atenção ao último item, uma vez que as declarações proferidas pela professora e que estão sendo questionadas se revestiram de caráter religioso.
A liberdade religiosa é assegurada em diplomas diversos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular” (art. 18). De modo semelhante, dispõem o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 18[iii]) e o Pacto de San Jose da Costa Rica (art. 12[iv]). No Brasil, a Constituição Federal declara que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, inciso VI).
Quando se discute sobre homofobia e exercício da liberdade religiosa, algumas controvérsias surgem pelo fato de que, indiscutivelmente, em qualquer âmbito, confere-se proteção à crença, o que inclui pautar a própria vida por tais convicções e ensiná-las com fins de proselitismo. O conflito emerge, então, pelo fato de diferentes religiões enquadrarem a homossexualidade como pecado, de forma que, de um lado, adeptos de diversas confissões de fé pretendem continuar afirmando a pecaminosidade da prática homossexual enquanto, de outro, militantes LGBTQI+, comumente, atribuem, a qualquer resistência à conduta, o rótulo de homofobia e, logo, de ilicitude penalmente suscetível de sanção.
Esse embate foi objeto de análise pelo STF, durante o julgamento da ADO n. 26. Vejamos alguns pontos consolidados pela Corte. No referido julgado, firmou-se o entendimento, por meio do voto do Ministro Relator, de que a livre expressão de ideias “não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público ou por grupos antagônicos nem pode ser submetida a ilícitas interferências do Estado, de qualquer cidadão ou, ainda, de instituições da sociedade civil”. Nisso, estão inclusas as ideias religiosas. Dessa forma, segundo compreensão do STF, não cabe ao Estado, ao adotar meios para impedir condutas homotransfóbicas, impor qualquer restrição à liberdade religiosa, às celebrações litúrgicas ou à liberdade de palavra: “seja como instrumento de pregação da mensagem religiosa, seja, ainda, como forma de exercer o proselitismo em matéria confessional, quer em espaços públicos, quer em ambientes privados”.
O proselitismo foi mencionado, com rememoração do disposto sobre a matéria na ADI n. 2.566, quando a Corte estabeleceu que “a liberdade religiosa não é exercível apenas em privado, mas também no espaço público, e inclui o direito de tentar convencer os outros, por meio do ensinamento, a mudar de religião. O discurso proselitista é, pois, inerente à liberdade de expressão religiosa”.
Retornando ao voto proferido pelo Ministro Relator na ADO n. 26, realçamos a vedação a qualquer interferência estatal em assuntos teológicos: “ninguém, ainda que investido de autoridade estatal, pode prescrever o que será ortodoxo em religião (…)”. A tutela da livre manifestação de pensamento tem como finalidade a efetiva preservação do pluralismo, consagrado constitucionalmente (art. 1º, inciso V, CRFB/88), de modo a “garantir não apenas o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, proteger o direito dos que sustentam ideias – mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas – que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade”.
Outro trecho do voto proferido que vale mencionar é o que reforçou a tutela sobre a exposição religiosa fundamentada nos livros sagrados e desprovida de qualquer animus voltado à ofensa: “a exposição e a reprodução de narrativas, conselhos, lições ou orientações constantes de qualquer livro sagrado referentes a qualquer religião (…) não se revelam aptos a configurar delitos contra a honra, porque veiculados com o intuito de divulgar o pensamento resultante do magistério teológico e da filosofia espiritual que são próprios de cada uma dessas denominações confessionais, circunstância que descaracteriza, por si só, o “animus injuriandi vel diffamandi”, tornando legítimos, por isso mesmo, o discurso e a pregação enquanto expressões dos postulados de fé de tais religiões”.
Assim, pode se concluir que o combate à homotransfobia e a punição de eventuais delitos não pode resultar na criminalização do discurso religioso, que permanece livre para afirmar o que é pecado conforme sua doutrina. Sobre isso, acrescente-se que há, nos termos da decisão, alguns limites que devem ser observados para que não se incorra em discurso de ódio, entendido como aquelas manifestações “que incitem a discriminação, que estimulem a hostilidade ou que provoquem a violência (física ou moral) contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
Expostos os esclarecimentos acima, passemos à análise da conduta da professora Lourdes Rumanelly.
II.II – Análise do discurso proferido durante a live
Inicialmente, é importante mencionar que não cabe ao Estado definir o que é pecado ou não, de modo que a insurgência perante a fala emitida pela professora pode, sim, gerar debates acerca da fé cristã, inclusive, manifestações contrárias dos que não creem dessa forma. Não é possível, contudo, que o Poder Público estabeleça qualquer restrição ou sanção em virtude de declarações sobre a pecaminosidade da prática homossexual. Como visto, não é competência estatal definir o que é ortodoxo em matéria religiosa.
Além disso, ainda que as afirmações feitas gerem divergências e incômodo em parte da população, esse fato, isoladamente, não pode ensejar a supressão do discurso religioso, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro assegura o pluralismo (art. 1º, inciso V, CRFB/88).
Resta, então, aferir se o discurso da professora ultrapassou as fronteiras da liberdade religiosa e ganhou contornos de manifestação de ódio. Para isso, é importante considerar, também, alguns pontos fixados no RHC 134.682, julgado pela 1ª Turma do STF. Nesse caso, assentou-se que o discurso proselitista é elemento essencial da liberdade de crença e intrínseco ao comportamento religioso, não revelando ilicitude, por si só, “a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas”[v]. Diferente do proselitismo é o discurso discriminatório que, segundo a Turma, apenas se materializa quando ultrapassadas estas três etapas indispensáveis:
- Etapa de caráter cognitivo: atesta-se a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos;
- Etapa de viés valorativo: assenta-se suposta relação de superioridade entre grupos e/ou indivíduos;
- Etapa discriminatória: o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.
O discurso proselitista, embora estabeleça distinções entre as pessoas e identifique práticas pecaminosas, não culmina na dominação ou supressão do outro, mas, na verdade, resulta, empregando os termos utilizados pelo STF, em busca por “suposta prestação de auxílio ao grupo ou indivíduo que, na percepção do agente, encontrar-se-ia em situação desfavorável”[vi]. Possuindo tais parâmetros, a 1ª Turma concluiu, que, na hipótese concreta do RHC 134.682, “o paciente, por meio de publicação em livro, incita a comunidade católica a empreender resgate religioso direcionado à salvação de adeptos do espiritismo, em atitude que, a despeito de considerar inferiores os praticantes de fé distinta, o faz sem sinalização de violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais”.
O caso apreciado pelo STF, no RHC 134.682, guarda semelhanças com a situação aqui em análise, visto que, na exposição feita pela professora Lourdes Rumanelly, é possível identificar a prática de proselitismo religioso, não havendo, em nenhum momento, o intuito de gerar hostilidade perante pessoas LGBTQI+. Ao reconhecer que a conduta homossexual é incompatível com os preceitos de sua fé, a docente não incentivou qualquer ataque ou agressão às pessoas LGBTQI+. O seu discurso se voltou ao evangelismo – para utilizar os termos do RHC 134.682: para o auxílio ao grupo ou indivíduo que se encontraria em situação desfavorável, apresentando a doutrina cristã acerca do pecado, do arrependimento e do perdão oferecido por Deus. Não estamos, portanto, diante de discurso de ódio, e sim de proselitismo, não sendo possível falar de crime de homofobia.
Em vista do exposto, não é possível considerar as recomendações expedidas pela Defensoria Pública do Estado da Paraíba como condizentes com o contexto. A professora Rumanelly não tem de se retratar por ter exercido o seu direito à liberdade religiosa, especialmente por ter levado a efeito prática de proselitismo. Tal conduta é resguardada por nosso ordenamento. A pretensão de que ela ministre palestras sobre homofobia também é descabida, uma vez que ela não extrapolou os limites do discurso religioso, conforme aferido por meio da análise da jurisprudência do STF sobre o tema.
III – CONCLUSÃO
Pelo exposto, o Conselho de Representação Estadual na Paraíba ANAJURE:
- Com base na análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sustenta que não houve cometimento de crime de homofobia por parte da professora Lourdes Rumanelly;
- Informa que encaminhará a presente Nota à Defensoria Pública do Estado da Paraíba com a finalidade de que a entidade reconsidere a Recomendação n. 06/2020, em face da inexistência de prática homofóbica, havendo o reconhecimento de que as concepções religiosas que enxergam as condutas homossexuais como pecado – sem incitação de agressões e violências, mas com fins meramente de proselitismo – são albergadas pelo direito fundamental à liberdade religiosa.
João Pessoa-PB, 30 de julho de 2020.
Fabrício Lourenço
Coordenador da ANAJURE na Paraíba
Dr. Felipe Augusto
Diretor Executivo da ANAJURE
Dra. Raíssa Martins
Coordenadora do Departamento Jurídico da ANAJURE
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[i] Disponível em: <https://www.ufpb.br/escolasplurais/contents/noticias/didaticos/genero-e-diversidade-sexual-um-glossario/glossarioEscolasPlurais1.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2020.
[ii] Disponível em: <https://www.ufpb.br/escolasplurais/contents/noticias/didaticos>. Acesso em: 23 jul. 2020.
[iii] Artigo 18. 1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.
[iv] Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
[v] STF – RHC: 134.682 BA 4000980-28.2016.1.00.0000, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-191 29-08-2017).
[vi] Ibid.