Nota Pública sobre diretrizes emitidas por órgãos do Ministério Público com atuação na Paraíba acerca do uso de banheiros em instituições educacionais

A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira nota pública sobre a Nota Técnica Conjunta n. 001/2022[1], que traz “orientações quanto ao tratamento de pessoas de acordo com sua identidade de gênero nas escolas do ensino fundamental, médio, inclusive nos cursos de educação profissional técnica, e superior”, elaborada pelos Ministérios Públicos Estadual, Federal e do Trabalho com atuação no Estado da Paraíba.

1. Síntese fática

A Nota Técnica apresenta, em síntese, o que denomina “diretriz de uma política não-discriminatória” (fl. 7), com o intuito de “esclarecer dúvidas” (fl. 7). A despeito disso, expõe a posição dos órgãos ministeriais de que “o impedimento de utilização de banheiro público pelo(a) aluno(a), pelo(a) trabalhador(ora) em educação e ainda por outras pessoas que frequentam e se insiram no ambiente escolar em todos os níveis de ensino, conforme sua identidade de gênero, poder ser fundamento para indenização por danos morais” (fl. 6).

Integram a sugestão para a política não-discriminatória medidas como o desenvolvimento de trabalhos educativos de combate ao bullying por identidade de gênero e orientação sexual; o uso de nome social no âmbito escolar, e o acesso e uso de banheiros conforme a identidade de gênero aos alunos, profissionais e usuários das unidades de ensino.

Firmadas tais diretrizes, o objetivo da Nota Técnica seria orientar a atividade dos promotores de justiça “que atuam na defesa da educação, com modelo de recomendação a ser expedida às secretarias de Educação e às unidades de ensino sobre o assunto[2].

Diante dos elementos expostos, surge a necessidade de algumas considerações de cunho jurídico, conforme se apresenta a seguir. 

2. Análise Jurídica

Inicialmente, deve-se destacar que a Nota Técnica Conjunta n. 001/2022 tem caráter de opinião jurídica e de posicionamento dos membros dos órgãos dos Ministérios Públicos que a assinaram, não ostentando caráter coercitivo ou vinculante. Dessa forma, as diretrizes a serem observadas pelas instituições de ensino no que tange a políticas não-discriminatórias são aquelas previstas em diplomas como a Constituição, o Estatuto da Criança e Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

É mister destacar que a Constituição Federal prevê que a educação é um dever do Estado e da família, em colaboração com a sociedade (art. 205, CF), tendo como princípios, dentre outros, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF); o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF) e a gestão democrática do ensino público (art. 206, IV, CF). Tais princípios são reproduzidos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional (art. 3º).

Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aponta como dever da família, da comunidade e da sociedade em geral assegurar a efetivação dos direitos referentes à educação, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 4º, ECA).

Destaca-se, mais, que compete aos diferentes entes federados a elaboração de políticas públicas em matéria de educação (art. 22, XXIV; art. 24, IX, CF), cabendo à União a coordenação da política nacional de educação (art. 8º, § 1º, LDB) e a elaboração do Plano Nacional de Educação (art. 9º, I, LDB). Aos Estados (art. 10, III, LDB) e Municípios (art. 11, I, LDB), cabe elaborar e executar políticas e planos educacionais específicos, de acordo com o plano nacional.

Ocorre, porém, que o Plano Nacional de Educação (PNE – Lei n. 13.005/2014) não prevê o acesso e uso de banheiros na forma proposta pela referida Nota Conjunta. O documento ainda relaciona outros atos normativos que, mesmo dispondo sobre direitos humanos e promoção da não discriminação, silenciam sobre o uso de banheiros e uso de nome social de acordo com a identidade de gênero: Constituição Federal (fl. 2), Lei n. 9.434/96 (fl. 2), Lei de combate ao bullying (fl. 2), Declaração Universal dos Direitos Humanos (fl. 3), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (fls. 3 e 4), Convenção Americana de Direitos Humanos (fl. 4), Resolução n. 01/2018 do CNE (fl. 5) e Estatuto da Juventude (fl. 5).

Para fundamentar a política não discriminatória proposta, o Ministério Público também citou, na Nota Técnica, alguns documentos, como a Nota Técnica do CNMP nº 8/2016, que orienta sobre o direito ao reconhecimento da identidade de gênero, e a Resolução 12/2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. No primeiro, não há menção à exigência de uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero. A Resolução n. 12/2015, por sua vez, trata desse aspecto, mas carece de legalidade e legitimidade, seja por não ter competência para elaborar diretrizes para instituições de ensino ou por ter sido o colegiado extinto pelo Decreto nº 9.883/2019.

Para além disso, considerando as disposições constitucionais e legais citadas, vê-se que a elaboração de políticas públicas, em todos os níveis educacionais, deve atender também ao princípio democrático, competindo aos Poderes Executivo e Legislativos dos respectivos entes (União, Estados, Municípios e Distrito Federal), com efetiva participação da família e da sociedade, a concepção dessas políticas. Não compete ao Ministério Público, portanto, a instituição de diretrizes na temática educacional, visto que é atribuição própria de outros entes. Na verdade, uma das funções institucionais do Ministério Público, segundo a Constituição Federal (art. 129, II, CF), é zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos”. 

Ademais, embora a diretriz elaborada pelo Ministério Público se funde em uma política não-discriminatória, acaba por ignorar problemáticas advindas da sua aplicação no âmbito de instituições de ensino confessionais. Isso acontece porque o uso de banheiros em conformidade com a identidade de gênero, além do caráter eminentemente moral e ideológico que subjaz a argumentação, colide frontalmente com as crenças adotadas por determinadas entidades confessionais brasileiras, representando um risco para a liberdade religiosa dessas organizações e também dos indivíduos que optam por elas por desejarem ter acesso a um local onde as diretrizes vigentes estão conectadas às suas crenças. 

Tal proteção às liberdades constitucionais de pensamento, expressão, posicionamento filosófico e ideológico e religiosa decorrem do entendimento contido na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 26, em que “a livre expressão de ideias, pensamentos e convicções – inclusive em questões religiosas ou confessionais – não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público ou por grupos antagônicos nem pode ser submetida à ilícitas interferências do Estado, de qualquer cidadão ou, ainda, de instituições da sociedade civil” – ADO 26, STF, DJe 06/10/2020, p. 107.

Por fim, acerca da diretriz relativa ao apoio do combate ao bullying, a ANAJURE aproveita para reiterar a sua posição já manifestada anteriormente no sentido de que alunos e professores devem, certamente, respeitar todo estudante, mas não podem ser obrigados a adotar os preceitos das teorias de gênero em atividades, provas ou dinâmicas escolares. Nesse contexto, não se pode perder de vista, também, o trabalho desenvolvido pelas instituições de ensino confessionais, as quais geralmente possuem uma perspectiva ideológica específica e não podem ser obrigadas à adoção de preceitos morais que conflitem com seus princípios, o que não significa, todavia, eximi-las de tomar providências em casos de identificação de posturas intimidatórias e agressivas envolvendo alunos e professores.

3. Conclusão

Ex positis, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE se posiciona manifestando discordância quanto à interpretação jurídica sustentada na Nota Técnica Conjunta n. 001/2022, ressaltando que:

a) Tem caráter de opinião jurídica e posicionamento dos membros dos órgãos dos Ministérios Públicos, não podendo servir de consultoria jurídica para entidades de ensino, em razão de vedação constitucional (art. 129, IX, CF), que devem se pautar pela posição de seus respectivos departamentos jurídicos ou procuradoria especializada sobre o tema;

b) A proposta de diretriz não se compatibiliza com a Constituição e legislação específica, que prevê a elaboração de políticas públicas pelos Poderes Executivo e Legislativo, com participação da família e sociedade, não sendo competência do Ministério Público a elaboração de tais políticas; 

c) A instituição de diretrizes educacionais deve considerar elementos como a liberdade religiosa de estudantes, professores e entidades de ensino confessional, sob pena de violação do pluralismo, dentre outros aspectos; 

d) Informa o encaminhamento da presente Nota Pública aos órgãos responsáveis pela Nota Técnica Conjunta n. 001/2022. 

 

Brasília-DF, 5 de outubro de 2022.

Assessoria Jurídica da ANAJURE

Dra. Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

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[1] Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pb/sala-de-imprensa/docs/Nota_Tecnica_Conjunta_Transgeneros.pdf. Acesso em: 05 out. 2022

[2]MINISTÉRIO PÚBLICO DA PARAÍBA. Órgãos do MPPB, MPT e MPF elaboram nota técnica sobre tratamento de pessoas trans em escolas e universidades. Disponível em: https://www.mppb.mp.br/index.php/94-noticias/nucleo-do-genero/24519-orgaos-do-mppb-mpt-e-mpf-elaboram-nota-tecnica-sobre-tratamento-de-pessoas-trans-em-escolas-e-universidades. Acesso em 1 out 2022.