Nota pública sobre matéria jornalística referente à revista utilizada em escola bíblica de igrejas evangélicas de Santa Catarina

A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota Pública sobre matéria jornalística referente à revista utilizada em escola bíblica de igrejas evangélicas de Santa Catarina.

1. Síntese fática

Em 20 de setembro de 2022, o Intercept Brasil publicou matéria sobre o uso de “uma cartilha anti-esquerda para doutrinação de fiéis” por uma Igreja Assembleia de Deus de Santa Catarina. O Intercept trata do tema com tons de denúncia, pois parte do pressuposto de que, sendo a escola bíblica dominical um momento relevante para os fiéis, seria uma oportunidade para que as lideranças da igreja doutrinassem os membros em uma determinada perspectiva ideológica, ao descrever, segundo a matéria, “um cenário de medo e horror para o cristão moderno e sua família”. A presente análise considerará alguns temas principais que se destacam no texto publicado pelo Intercept Brasil, conforme organizado abaixo.

1.1 Vinculação do material a possíveis reflexos eleitorais indevidos

A matéria do Intercept associa o uso da revista ao cenário eleitoral brasileiro, como se os temas abordados fossem determinantes para a formação crítica dos fiéis que frequentam as igrejas onde o material foi empregado. Em um dos trechos, a existência de menção ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, constituiria uma forma de afetar o pleito de 2022 ao prejudicá-lo. A citação feita, contudo, apenas informa que, durante o mandato presidencial do petista, as diretrizes do Programa Nacional de Desenvolvimento Humano – PNDH3 contaram com menções diversas a assuntos como orientação sexual, identidade de gênero, união civil entre pessoas do mesmo sexo etc.

Vale, então, avaliar se um pequeno trecho como esse se enquadraria nas hipóteses de ilegalidades eleitorais associadas às atividades das igrejas. A Lei n. 9.504/1997 proíbe a doação de valores por entidades religiosas a candidatos ou partidos (art. 24, inciso VIII). Ainda veda o uso de templos religiosos, por serem classificados como bens de uso comum, para veiculação de propaganda política (art. 37, caput e §4º). A Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar n. 64/1990) trata dos casos de abuso de poder econômico, de poder político e de utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social (art. 22, caput).

A primeira hipótese listada não se amolda ao caso, visto que não houve destinação de quaisquer valores a nenhum candidato ou partido. A segunda também não guarda correspondência, visto que o material didático não possui contornos de propaganda política. Ainda que o seu teor possa se amoldar mais a uma perspectiva ideológica, não é possível identificar nos trechos selecionados pelo Intercept Brasil o intuito de exaltar especificamente algum candidato. A menção feita ao ex-Presidente Lula não se aproxima de um tom político-partidário, apenas registra uma posição adotada durante o seu mandato e que tem conexão com o tema (questões afetas a gênero) tratado naquele trecho da revista.

Quanto ao terceiro caso – as hipóteses de abuso de poder político, econômico e de utilização indevida dos meios de comunicação -, não é possível verificar que uma menção a um candidato ou a pautas que tenham algum alinhamento com determinado segmento político seja suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições – elementos necessários para a configuração de quaisquer das hipóteses de abuso (conforme art. 14, §9º, CRFB), sobretudo se a revista era utilizada apenas em algumas igrejas de um estado brasileiro.

Ressalte-se que as restrições acima citadas não impedem que a organização religiosa oriente seus membros em conformidade com seus princípios, mesmo quando possa gerar considerações que tangenciam temas políticos. Isso, todavia, é diferente de se referir nominalmente a um candidato e exaltar suas posições em detrimento dos demais, o que sujeitaria a igreja a sanções eleitorais, como a mencionada anteriormente acerca da veiculação de propaganda política em bens de uso comum.

Superado o elemento eleitoral, passa-se ao tópico a seguir.

1.2 Classificação da revista como “cartilha de ódio”

A matéria também busca classificar os textos selecionados da revista como material discriminatório, promotor do ódio e da intolerância. Neste ponto, vale mencionar o entendimento esboçado pela 1ª Turma do STF no RHC 134.682. Na ocasião, a Turma afirmou que o discurso proselitista é elemento essencial da liberdade de crença e intrínseco ao comportamento religioso, não revelando ilicitude, por si só, “a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas”[1].

Diferente disso, o discurso discriminatório se materializaria quando superadas a etapa de caráter cognitivo, que atesta-se a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; a etapa de viés valorativo, em que assenta-se suposta relação de superioridade entre grupos e/ou indivíduos; e a etapa discriminatória cujo o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior[2].

Considerando o exposto, não se identifica, nos textos destacados pelo Intercept, a prática de discriminação, visto que inexistente qualquer estímulo a práticas de dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos de qualquer grupo social. A revista apenas indica as divergências existentes entre o pensamento sustentado pela organização religiosa e outros setores da sociedade. Tais divergências não são – e não devem ser – apontadas como justificadoras de qualquer agressão contra pessoas LGBTQIA+, feministas ou politicamente progressistas.

1.3 Exercício da liberdade religiosa e da liberdade de expressão

Conforme o art. 5º, VI da Constituição Federal de 1988 estabelece, as organizações religiosas dispõem de liberdade para fixar sua organização interna. Isso abrange elementos estruturais como os locais e horários de culto, a escolha de líderes, dentre outros aspectos. Mais do que isso, garante-se a tais organizações a liberdade de crer nos seus textos sagrados e analisar a realidade social em conformidade com eles. Nos termos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), os religiosos podem, individual ou coletivamente, viver de acordo com suas convicções e ensiná-las (art. 18, item 1).

Uma instituição religiosa tem a liberdade de instruir os seus membros em consonância com os seus princípios e valores, mesmo quando houver, em meio à sociedade, divergência acerca dos ensinos transmitidos. Essa é uma garantia que decorre, também, da liberdade de expressão, direito que abrange até mesmo os discursos que possam desagradar outros setores da sociedade, uma vez que permitir a fala num cenário de diferenças compõe a essência do direito em comento.

Aplicando o exposto, até o momento, tem-se o seguinte cenário: por força da liberdade religiosa e da liberdade de expressão, as organizações religiosas podem instruir os seus membros em conformidade com os seus preceitos de fé, ainda que haja divergência a respeito.

Por outro lado, o exercício dessas liberdades não pode extrapolar alguns limites, dentre eles, as liberdades das demais pessoas. Diante disso, recomenda-se que as igrejas evitem o uso de afirmações generalistas em seus materiais e busquem, sempre que possível, apresentar fontes confiáveis e técnicas para as informações apresentadas, como forma de melhor salvaguardar a instituição em debates sensíveis.

Conclusão

Pelo exposto, a ANAJURE emite a presente nota para manifestar o entendimento a seguir:

  1. Os trechos da revista selecionados pelo Intercept Brasil são protegidos pelos direitos à liberdade religiosa e à liberdade de expressão, constituindo bases para a defesa do discurso da organização religiosa;
  2. As organizações religiosas devem apresentar fontes confiáveis e técnicas para as informações relativas a determinadas ideologias ou grupos sociais, e evitar generalizações como forma de melhor salvaguardar a instituição em debates sensíveis.

Brasília, 26 de setembro de 2022.

Assessoria Jurídica da ANAJURE 

Edna V. Zilli
Presidente da ANAJURE

[1]STF – RHC: 134.682 BA 4000980-28.2016.1.00.0000, Relator: Min. Edson Fachin, Data de Julgamento: 29/11/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-191 29-08-2017).

[2] Ibid.