Nota Pública sobre o julgamento da ADO 26, referente à criminalização da homofobia e transfobia

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NOTA.FEV

O Conselho Diretivo Nacional da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE – no uso das suas atribuições estatutárias e regimentais, vem, através do presente expediente, expor aos órgãos e entidades públicas e à sociedade brasileira sua posição quanto ao julgamento da ADO 26, que ocorrerá no dia 13 de fevereiro de 2019 e tem como objeto a criminalização da homofobia e transfobia.

 

I – SÍNTESE DO OBJETO DA AÇÃO

 

O Partido Popular Socialista – PPS ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão alegando inércia do Congresso Nacional em legislar sobre a criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia.

O Autor pretende obter o reconhecimento da homofobia e da transfobia como crime de racismo (art. 5º, XLII, CF/88) ou, subsidiariamente, como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI, CF/88).

Busca, ainda, ter declarada a mora inconstitucional do Congresso Nacional na criminalização de tais condutas, com a consequente aprovação de legislação criminal que puna a violência física, os discursos de ódio, os homicídios, a conduta de praticar, induzir e/ou incitar o preconceito e/ou a discriminação por conta da orientação sexual ou da identidade de gênero, real ou suposta da pessoa.

Ademais, pediu a fixação de prazo razoável para a criminalização e, havendo mora, que o STF tipifique a homofobia e transfobia como crimes específicos, por atividade legislativa atípica, através da aplicação dos termos da Lei de Racismo (Lei n. 7.716/89) ou de outra que venha a substitui-la. Demanda, ainda, a responsabilização civil do Estado brasileiro, pela inércia, para indenizar vítimas de homofobia e transfobia.

Após a apresentação da petição inicial, diversas entidades se pronunciaram a respeito da matéria. A Presidência do Senado manifestou-se pela improcedência da ação, resguardando-se a legalidade penal, a separação de poderes e a independência do Poder Legislativo. Em informações complementares prestadas, destacou o trâmite do Projeto de Lei do Senado nº 515/2017, cujo fim é punir a discriminação ou preconceito de origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, de modo a negar, assim, qualquer mora. A Câmara dos Deputados rememorou a aprovação do Projeto de Lei n. 5.003/2001, que determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual.

A Advocacia Geral da União, por sua vez, entendeu pela improcedência dos pedidos do requerente, defendendo a impossibilidade de fixação, por parte do Judiciário, de prazo para a atividade legislativa; o descabimento de conduta judiciária tendente a suprir omissão legislativa por ato próprio; a inexistência de mora legislativa; a inviabilidade do reconhecimento de comando constitucional expresso que exija tipificação criminal para a homofobia e transfobia.

A Procuradora-Geral da República defendeu a inadmissibilidade da condenação do Estado em indenizar as vítimas de homofobia e transfobia, por inércia; a interpretação conforme a Constituição do conceito de raça fixado na Lei 7.716/1989, de modo a se reconhecer como crimes tipificados nessa lei as condutas discriminatórias que atingem a população LGBT; havendo interpretação diversa, pugnou pelo reconhecimento da mora do legislativo; e, por fim, entendeu pela impossibilidade de afastar a mora em virtude da existência de projetos de lei em curso no Congresso Nacional.

Diversas instituições ingressaram na lide na condição de amicus curiae, como a ANAJURE. No fim de 2018, o processo foi incluído no calendário de julgamento e será apreciado pela Corte no dia 13 de fevereiro de 2019.

II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE

 

II.I – Da ofensa aos princípios da legalidade e da reserva legal

Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nenhum grupo social – ainda que minoritário – pode sofrer preconceito ou discriminação dentro de um Estado Democrático de Direito.

Qualquer grupo pode lutar pela criminalização de atos que considerem atentatórios aos direitos fundamentais, e essa luta é legítima e constitucional, desde que travada no foro adequado para a satisfação de sua pretensão.

No caso da luta pela criminalização da homofobia e transfobia, assim como para a criação de qualquer outro tipo penal, o cenário para a inovação legislativa não pode ser o Poder Judiciário. Reitere-se que não seria inconstitucional eventual lei (contemplando as exigências da Constituição para a legislação Penal) tratando do assunto, porém não se pode ultrapassar ou até mesmo usurpar os limites institucionais na relação de Poderes da República.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXIX, estabelece claramente que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, fincando no ordenamento jurídico pátrio os princípios da legalidade, e da reserva legal.

Verificamos que a edição de normas penais está sujeita ao princípio da reserva legal, e lei, em sentido estrito, é somente a norma produzida pelo Poder Legislativo competente – no caso, o Congresso Nacional, pois é competência privativa da União legislar sobre Direito Penal (art. 22, inciso I, da Constituição Federal)[1].

Nesse sentido, elucidativa a lição de Guilherme de Souza Nucci[2]:

Ao cuidarmos da legalidade, podemos visualizar os seus três significados. No prisma político, é a garantia individual contra eventuais abusos do Estado. Na ótica jurídica, destacam-se os sentidos lato e estrito. […] Neste último enfoque, é também conhecido como princípio da reserva legal, ou seja, os tipos penais incriminadores somente podem ser criados por lei em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, de acordo com o processo previsto na Constituição Federal.

Desde as suas origens históricas, na Carta Magna de 1215 (“Nenhum homem pode ser preso ou privado de sua propriedade a não ser pelo julgamento de seus pares ou pela lei da terra” – modificada posteriormente para “devido processo legal”), o princípio da legalidade tem por finalidade evitar que alguém seja preso ou privado de seus bens pela vontade singular do soberano, obrigando que os magistrados apliquem efetivamente as leis consagradas pela comunidade, através de seus representantes. “O princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei”[3]. A criação de um tipo penal pelo Poder Judiciário, além de afrontar a separação dos Poderes da República, mostra-se uma anomalia capaz de subverter a ordem constitucional das garantias humanas fundamentais no campo penal.

Além de garantia individual, o princípio da legalidade tem como um dos seus propósitos alcançar segurança jurídica, pois as leis, de modo geral, acabam por sustentar, de forma relativamente duradoura, as bases jurídicas em que se assentam as relações sociais.  Assim, pode ser considerado uma garantia institucional de estabilidade das relações jurídicas[4]. Desrespeitar esse princípio, com a implementação da absurda “função legislativa do judiciário” ou “Judicialização do Poder Constituinte Originário” resultará em profunda instabilidade das relações sociais e jurídicas, culminando na extrema insegurança jurídica de ver no magistrado alguém capaz de criar ou extinguir direitos e garantias através da elaboração de normas, criminalizar ou permitir condutas, sem observância da ordem constitucional pátria de separação dos Poderes.

A importância que o princípio da legalidade estrita (reserva legal) goza no Direito Brasileiro foi demonstrada com a Emenda Constitucional n. 32, que arrolou as matérias que não poderiam ser objeto de medida provisória, pela precariedade dessa espécie normativa, que pode ser rejeitada pelo Congresso Nacional, perdendo seus efeitos desde sua edição (§ 3º do art. 62 da Constituição). Figura nesse rol a matéria relacionada a direito penal e processual penal. Assim, resta positivada a impossibilidade de se veicular matéria relativa à definição de tipos penais e à cominação de penas através de medidas provisórias. O fundamento dessa alteração constitucional reside no fato de que se tratando de matéria penal, apenas o Poder Legislativo, cujos membros são os legítimos representantes do povo brasileiro, cumprido o devido processo legislativo, acompanhado de discussão e debates públicos sobre o tema, pode legislar no sentido de criminalizar condutas.

Desse teor, a magistral preleção de Carvalhido:

O princípio da legalidade estrita em matéria penal (princípio da reserva legal), portanto, impõe que a criminalização de condutas seja realizada, exclusivamente, após debate parlamentar exaustivo sobre a matéria. Se proposições legislativas ainda tramitam no Congresso Nacional, é sinal de que a criminalização da homofobia ainda guarda restrições junto ao povo e seus representantes, e por lá devem ser discutidas e pacificadas. É o preço da democracia, e da adoção constitucional da teoria da separação de Poderes[5]. (Grifo nosso)

Portanto, cabe exclusivamente ao legislador definir se a criminalização da homofobia fará parte ou não do ordenamento jurídico pátrio, não se podendo realizar tal positivação por exegese extensiva da norma em vigor. Assim, em que pese não ser ilegítimo ou inconstitucional o desejo de criminalizar uma conduta, esse desiderato não será viável pela via judicial. Nesse sentido, elucidativa a lição de Lênio Streck, entre outros[6]:

Assim, sem pretender tirar a legitimidade dos movimentos sociais em buscar a criminalização de condutas que, a seu juízo, violam seus direitos fundamentais, entendemos, a partir de um olhar constitucional, que esse desiderato não pode ser alcançado pela via do Poder Judiciário. Nossa divergência, nesse sentido, quer abrir as portas para um profícuo diálogo no sentido de buscar as melhores e mais eficazes formas de combater discursos de ódio e atos discriminatórios praticados contra os mais variados movimentos sociais — em especial o LGTBT — e mantendo, assim, incólume a Constituição, porque de nada adiante, sob pretexto de uma proteção, desproteger outros direitos”. (Grifo nosso)

 

II.II – Da inexistência do mandado constitucional de criminalização da homofobia

Para que uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão tenha lugar, é necessário que haja o descumprimento total ou parcial[7] do dever de legislar sobre aquilo que a própria Constituição exigiu como medidas para torná-la efetiva[8]. Ou seja, sem ordem constitucional quanto à regulação e materialização de determinado direito, não há que se falar em “omissão”, mas sim, de “inovação” no ordenamento jurídico – o que é vetado ao poder judiciário, pois trata-se de função do legislador.

Sob tais termos, destacamos que a Constituição Federal no artigo 5º, XLI estabelece um mandado expresso de punição de “toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Contudo, isso não implica que tal punição tenha de se dar na esfera criminal e a disciplina normativa de tais situações foi deixada ao alvedrio da deliberação legislativa infraconstitucional.

Sobre isto, veja-se o que foi dito pela Câmara dos Deputados e pela Advocacia Geral da União no curso do Mandado de Injunção n.º 4733/DF, que veicula pedido idêntico ao da presente Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 26:

CÂMARA DOS DEPUTADOS – “inexistência de omissão inconstitucional ou óbice incontornável ao exercício dos direitos de liberdade e igualdade dos cidadãos LGBT em razão da ausência de tutela penal para condutas discriminatórias em desfavor desse grupo social”. (Grifos nossos)

ADVOCACIA  GERAL  DA  UNIÃO  –  “pedido  de tipificação,  por  meio  de  legislação  específica,  das  condutas relacionadas à homofobia e à transfobia”, não pretende assegurar o exercício de um direito concretamente consagrado na Constituição Federal, “mas objetiva um regramento específico, uma tipicidade especial para condutas de homofobia e transfobia”. Ressalta que o direito fundamental invocado na impetração impõe ao Estado o dever de combater e punir todas as formas de discriminação e racismo (fim), não se referindo, portanto, “à legislação específica de um tipo especial de conduta (meio)”. Acrescenta que “não há qualquer comando constitucional que exija tipificação específica para a homofobia e transfobia”. E conclui pela “impossibilidade de se suprir judicialmente suposta omissão legislativa na seara do direito penal, tendo em vista o princípio da reserva legal penal (art. 5º, XXXIX, da CF), requer a extinção do feito sem resolução do mérito”; (Grifos nossos).

Dessa forma, não se pode pretender a declaração de omissão legislativa quando a Constituição Federal sequer exige de forma inequívoca a criminalização, pois punição não é equivalente, necessariamente, à criminalização[9].

II.III – Da ausência de dados oficiais que fundamentem o pedido

Nos últimos anos, o tema da violência contra homossexuais e transexuais vem tomando espaço de discussão no Parlamento, na mídia e nos movimentos sociais. Contudo, devemos verificar, inicialmente, se há, no Brasil, altos índices de violência contra estas pessoas que demonstrem a necessidade real de crimininalização de tais práticas, o que, existindo, configuraria a letargia e a “omissão legislativa” ensejadoras de um Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.

Necessário pontuar que, na maioria dos crimes contra a população LGBT+, os agressores são igualmente homossexuais ou transexuais ou as motivações não coincidem com o comportamento dito homotransfóbico[10].  Quanto a isso, vale trazer a lume as explanações aduzidas pelo Prof. Marcelo Domingos em sua Tese:

As informações mesmo esparsas e, às vezes, imprecisas ajudavam a desenhar um cenário mais nítido e distante das notas jornalísticas. Estavam dadas as condições para fazer uma tipologia das motivações de forma mais segura. E, a primeira certeza é que a tipologia empregada para classificar todas as mortes violentas de LGBT como sendo resultante da homofobia não é correta. Entre as vítimas de ódio devido a sua orientação sexual também se fazem presentes casos de rixas, motivação banal e os crimes passionais[11]. (Grifo nosso).

Na pesquisa aludida, o autor busca traçar um perfil dos assassinatos de homossexuais, demonstrando-se que, na maioria dos casos, a vítima e o ofensor são homossexuais. Mais ainda: geralmente o motivo do crime é passional ou está relacionado ao ato libidinoso praticado entre vítima e agressor (o pagamento ou a falta dele pelo ato), ou associado a outros delitos como drogas, sendo que o perfil comum da vítima são homens de classe média, com grau elevado de formação e boa condição econômica; já o perfil do agressor é de jovem pobre, morador de periferia e baixo grau de instrução.

Além disso, importa frisar que inexiste base de dados OFICIAL que possa apontar de forma induvidosa a dimensão dos crimes praticados em razão de homofobia em todos os Estados da Federação. Por sua vez, os dados apresentados sempre são controversos e suscitam dúvidas, principalmente interpretativas, não podendo, desta forma legitimar o pedido apresentado por não refletir uma realidade cristalinamente demonstrada, isto é, tratam-se de dados nebulosos apresentados por quem entende ter um suposto direito.

Vejamos, por exemplo, o caso da famosa pesquisa da organização não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU), rede europeia que apoia os direitos da população transgênero e que, anualmente, lança atualizações de casos de violência contra homossexuais e transsexuais[12]. Os resultados de 2016, por exemplo, mostraram que a quantidade de assassinatos desta população caminha numa crescente e indicaram que o Brasil é o país no qual há maior incidência[13].

Esses dados resultaram em diversas reportagens[14] e, inobstante haja tabelas, mapas e listas de nomes dos casos, não há uma discrição da metodologia aplicada para tais pesquisas, motivo pelo qual se pode cogitar muitas suspeitas sobre os resultados obtidos. Ademais, a pesquisa limita-se a informar o número bruto de “assassinatos de homossexuais e transexuais” sem considerar a motivação do preconceito, nem da discriminação, que são distintivos essenciais para caracterizar a homofobia ou transfobia, supostos tipos penais autônomos.

Tais falhas não se restringem ao trabalha dessa organização, motivo pelo qual somos céticos quanto aos resultados de pesquisas semelhantes, por não haver, frise-se uma base de dados oficial, dos órgãos competentes para e coletas de denúncias e investigação, tais como Secretarias de Segurança Pública, a respeito das taxas de homofobia e transfobia nos estados brasileiros.

Sobre o assunto, os próprios relatórios feitos pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República sobre violência homofóbica afirmam que[15]:

É relevante apontar algumas considerações metodológicas acerca das limitações do uso de dados quantitativos no estudo das violações dos Direitos Humanos. Dentre as limitações usuais no uso de estatísticas em violações de direitos humanos estão a dificuldade de definir conceitos adequados, a obtenção de dados confiáveis de estudos históricos e contemporâneos e a necessidade de interpretação adequada dos dados. É primordial combinar informações estatísticas sólida e confiáveis à informações qualitativas adequadas.

Em relação aos problemas na obtenção de dados confiáveis, pode-se apontar a não obrigatoriedade de reportação de dados referentes a segurança pública para a União, por parte de cada uma das unidades da federação (problema enfrentado por todas as estatísticas no campo da segurança pública no Brasil).

Assim, embora sejam verificados tais problemas metodológicos e estatísticos, podendo o problema ser bem menor do que se alardeia, reconhecemos que ocorrem atos violentos por homo/trans-fobia no Brasil, o que é inadmissível em um contexto plural, de honra à dignidade da pessoa humana e de respeito às liberdades individuais, dentre as quais estão a intimidade e a vida privada, como prevê a Constituição Federal e as demais leis brasileiras. Porém, conforme se exporá nas linhas seguintes, a utilização do Direito Penal não se configura a melhor maneira para combater e prevenir atos de discriminação por orientação sexual, e não se alinha à tradição jusconstitucional brasileira, que solidificou em nosso ordenamento jurídico a teoria do Direito Penal Mínimo.

II.IV – Da inaptidão do Direito Penal

Para a ANAJURE, a dissuasão de potenciais agressores quanto a essas práticas repugnantes não se dá eficazmente através da simples tipificação criminal – ainda mais em um país com altíssimos índices de impunidade e reincidência, apesar da alta quantidade de disposições normativas – mas, sim, através de políticas públicas de conscientização e prevenção na sociedade civil, especialmente por processos educacionais e pedagógicos. Corroborando esse ponto de vista, leciona Canetti que[16]:

A violência […] se encontra em todos os lugares. Da rua ao convívio familiar. Da feiura das favelas às elegantes mansões. Do analfabeto ao universitário. Crimes hediondos ocorrem com tanta frequência e naturalidade que nos indagamos: Estamos de fato voltando à barbárie? Estamos educando corretamente nossas crianças?

Entendemos que o Direito Penal não pode, nem deve ser utilizado como solução para todos os problemas sociais. Acerca do tema, o jurista Lênio Streck pondera sobre as ideias do criminólogo Alessandro Baratta que “em sentido amplo, todos queremos um direito penal mínimo e o máximo de liberdade; todavia, quando atingidos pela situação, ou seja, em sentido estrito (referindo-se às mulheres e minorias), queremos o mais alto de punição. Assim, ao mesmo tempo manifestamos a nossa descrença no direito penal e entoamos uma ode em seu louvor, pugnando pelo máximo de punição. Assim, a chamada ‘hipertrofia do direito penal’ resulta paradoxal. De um lado, os movimentos sociais (minorias, etc.) clamam por liberdades e pelo estabelecimento de limites à atividade de controle do Estado; de outro, exigem que o mesmo Estado criminalize condutas, a ponto de colocar a criminalização como condição para o exercício do ‘desenvolvimento livre da personalidade’”[17].

A mais moderna dogmática penalista há tempos defende a tese do chamado Direito Penal Mínimo, porque está claro que a partir de uma partir de uma “abundante produção de leis, o sistema penal é acometido por gradual e substantiva perda de legitimidade, reestruturando-se a partir da concepção penal funcionalista-eficientista que delega à pena e à criminalização uma forma bizarra de processo pedagógico[18], sem resultados eficientes.

II.V – Da proteção insuficiente

Outro ponto que surge como fundamento da pretensão de criminalização de todas as formas de homofobia e transfobia é o princípio da proibição de proteção insuficiente. A priori, importante destacar que o referido princípio, importado do Direito Alemão, é utilizado na presente ação de forma totalmente descontextualizada do propósito para o qual foi criado. De maneira clara, a doutrina de Lenio Streck[19]:

Se a tese foi utilizada na Alemanha no direito penal, foi-o em outro sentido e contexto.  Lá o Tribunal Constitucional declarou ser inconstitucional a descriminalização do aborto. Havia uma lei e o Tribunal entendeu que o Parlamento não tinha liberdade de conformação para proceder a descriminalização, à míngua de alternativa minimamente eficaz para a proteção da vida do nascituro. Mas a decisão do Bundesverfassungsgericht não criminalizava qualquer conduta. (Grifo nosso)

Neste ponto, é necessário concluir que o princípio da proibição de proteção insuficiente não pode ser usado como fundamento imperativo e eficaz para a criminalização de qualquer conduta, muito menos, como se discute na presente ação, através de provimento jurisdicional.

II.VI – A falta de definição das formas de homofobia ou transfobia e o conflito com a liberdade religiosa

Indica-se na ADO 26 que um dos motivos do seu ajuizamento é a mora do Congresso Nacional em votar o PLC 122/2006, que traria luz ao problema da violência contra a população LGBT+ ao criminalizar a homofobia e a transfobia.

Ocorre que um dos problemas levados à voga em tal projeto de lei foi o próprio termo “homofobia”, o qual foi cunhado, em 1972, pelo psiquiatra norte-americano, George Weinberg, no livro “Society and the Healthy Homosexual” (New York, St, Martin’s Press, 1972) e, nessa sua definição clínica, seria “medo e ódio aos homossexuais”.

O problema consiste no fato de que há várias espécies de rejeição à conduta homossexual, partindo de origens, pressupostos e fundamentos diferentes. O PL 122/2006 não distinguia as diferentes situações existentes, nem considerava de maneira apropriada, para tipificação de conduta, o dolo (vontade) do agente. Num exemplo prático, não havia parâmetros, nos termos do PL, para diferenciar o tratamento a ser conferido a um indivíduo que afirma, fundamento numa fé religiosa, que a prática homossexual é um pecado, e um outro indivíduo cujo dolo é de eliminar a vida de um ser humano que tem um modo de vida diferente do ele que julga padrão ou aceitável. Em outras palavras, em que pese a obviedade do exemplo hiperbólico mencionado, não há critérios para definir em qual dos dois casos se observa uma conduta homofóbica ou transofóbica. O mesmo problema está presente na pretensão manifestada na ADO n. 26, pois pede-se a criminalização específica de “todas as formas de homofobia e transfobia”, sem conceituá-las ou determinar-lhes a abrangência.

Deve-se levar em consideração que a pendência de aprovação, ou a atual discussão do conteúdo do Projeto de Lei nº 122/2006 no Congresso Nacional não deixa impunes os crimes praticados em razão da orientação sexual da vítima, pois há no ordenamento jurídico normas penais que tipificam os delitos de homicídio, lesões corporais e contra a honra, não havendo necessidade ou urgência do Supremo Tribunal Federal regulamentar provisoriamente o tema, enquanto a citada proposta legislativa não é aprovada.

Nesse sentido, não é possível equiparar um skindhead que assassina um homossexual em boate a um clérigo, que em seu ritual religioso, instrui e exorta com base nas normas éticas e morais da sua confissão de fé e condena a prática de atos libidinosos entre dois homens. Ora, o primeiro é um criminoso que pratica condutas já tipificadas em lei, devendo receber punição por tais atos; e o segundo é um religioso que exerce seu direito de praticar a crença religiosa que professa.

O Direito Humano e Fundamental à Liberdade de Religiosa ou Crença é amplamente previsto na legislação nacional e supranacional, ao que citamos como exemplo o art. 5, VI, da Constituição Federal brasileira e o art. 18, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in litteris:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Artigo 18. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.

Este direito abrange não apenas a convicção interna do crédulo, seus atos pessoais e sua manifestação privada, mas também a dimensão pública, proclamatória e oponível contra quaisquer pessoas, sendo-lhe facultada a liberdade de expressão, manifestação, reunião, ensino, etc[20]. Esse conjunto de liberdades, frise-se, não concede direito de denigrir outrem – no caso, um homossexual ou transexual – aplicando-lhe situação humilhante ou vexatória, nem imprimindo qualquer espécie de tentativa de tolher-lhe a dignidade, retirando-lhes direitos.

Por outro lado, desde que o discurso religioso, ainda que em tom firme e crítico – como, no caso da postura cristã ou islâmica tradicional de ser contrária às práticas homossexuais – limite-se a condenar as ideias e as práticas, sem ofender as pessoas ou provocar/incitar atos de violência em seu desfavor, trata-se de uma manifestação lícita[21]. A ANAJURE entende que esta forma de pensar e se posicionar é o que rege a conduta da maior parte dos religiosos brasileiros, de modo que atos considerados “homotransfóbicos”, na verdade, são a mera discordância das práticas, e não uma violência contra às pessoas, o que está em pleno acordo com o respeito ao pluralismo instituído no nosso país (art. 1, V, da CF).

Importante destacar o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 134.682/BA pelo Supremo Tribunal Federal. Após dissertar sobre todo o caso, o Relator, Ministro Edson Fachin, conclui que “no contexto religioso, a tentativa de persuasão pela fé, sem contornos de violência ou que atinjam diretamente a dignidade humana, não destoa das balizas da tolerância”. Ou seja, não há preconceito, nem discriminação, se o clérigo limitar-se a reconhecer a distinção entre os padrões éticos e morais da religião que professa e aqueles expostos por quem mantém práticas homossexuais, explanando, na sua visão, o desvio e a inviabilidade na manutenção dessas condutas.

Ainda que, eventualmente, os dizeres possam sinalizar certa animosidade, se ausente a intenção de humilhar, explorar ou eliminar os homossexuais e transexuais, não há conduta ilícita, pois não há incitação ao racismo, nem discurso de ódio.

Desse modo, não é razoável e não se pode criminalizar, per si, a manifestação de um pensamento religioso – ainda que contrário a determinado comportamento social – por atentar contra a liberdade religiosa protegida pelo sistema constitucional brasileiro[22]. É desproporcional, abusivo e inconstitucional afirmar que qualquer líder religioso que se oponha à prática homossexual e a assente como digna de reprimenda, esteja sendo, pela simples manifestação de seu pensamento, homofóbico. Muito menos ainda seria razoável ou proporcional, a “criminalização” que se tenta obter, podendo mandar à prisão padres, pastores e qualquer líder cristão que se oponha à prática homossexual.

Por outro lado, a Constituição Federal garante, no caput do art. 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, (..) garantindo-se o direito à vida, à liberdade, à igualdade (…)”. Mais que isso, afirma a mesma, no seu art. 1º, inciso III, que constitui fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Por este motivo, a ANAJURE entende que para os casos reais de homotransfobia deve ser aplicado todo o rigor da lei já existente, sendo inadmissível qualquer espécie de preconceito. Neste sentido, efetivamente, o ordenamento jurídico pátrio já protege homossexuais, bissexuais e transgêneros de agressões fundadas pelo preconceito contra suas orientações sexuais.

Entretanto, posicionamo-nos contrários à subsunção das liberdades civis fundamentais – especialmente, a de cunho religioso e confessional – ao direito à liberdade de opção sexual, sem qualquer análise do caso concreto ou aplicação da técnica de ponderação de direitos. Ora, se há um conflito patente e se quer discutir a qualidade ou a suficiência da proteção à população LGBT+, a solução não é tolher a liberdade de manifestação do religioso, mas sim, estimular o debate das ideias e, especialmente, no âmbito competente, qual seja, o Poder Legislativo.

III – CONCLUSÕES

Ex positis, a ANAJURE entende que os pedidos formulados na ADO 26 não merecem prosperar, em virtude (i) da ofensa à legalidade e à separação dos poderes na qual se incorrerá caso o Judiciário se preste a regular o assunto, matéria privativa do Legislativo; (ii) da inexistência de mandado constitucional específico quanto à criminalização da homofobia e da transfobia; (iii) da ausência de dados oficiais que indiquem de modo peremptório a ocorrência de crimes motivados por homofobia ou transfobia; (iv) da inaptidão do direito penal para a pretensão do autor da Ação; e (v) da existência de projetos de lei que debatem a temática no seu local próprio, o Parlamento. Destaca, ainda, o risco que tal regulamentação, se feita sem distinção minuciosa das condutas praticadas, pode causar a direitos fundamentais, como a liberdade religiosa.

Assim, a ANAJURE, por meio desta nota pública, manifesta seu posicionamento contrário à pretensão e argumentos aduzidos na ADO 26, pugnando pela improcedência do pedido, mantendo-se na expectativa de que, no julgamento do dia 13 de fevereiro de 2019, a Suprema Corte possa preservar, em sua decisão, os princípios da separação de poderes e da legalidade, e o gozo da liberdade religiosa.

Brasília, 11 de fevereiro de 2019

Dr. Uziel Santana
Presidente do Conselho Diretivo Nacional
 ANAJURE

 

___________________________________

[1] CARVALHIDO, Thiago Bonato. Elasticidade do crime de racismo afronta a Constituição Federal. 30 de

Agosto de 2014. Revista Eletrônica Consultor Jurídic

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 3. Ed. Revista dos Tribunais. 2007. p. 85.

[3] BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, 1989, v. 2, p. 23.

[4] CARVALHIDO, Thiago Bonato. Elasticidade do crime de racismo afronta a Constituição Federal. 30 de

Agosto de 2014. Revista Eletrônica Consultor Jurídico.

[5] CARVALHIDO, Thiago Bonato. Elasticidade do crime de racismo afronta a Constituição Federal. Conjur, 30 de agosto de 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-30/thiago-carvalhido-elasticidade-crime-racismo-afronta-constituicao.

[6] STRECK, et al, op. cit., p. 4

[7] CLÉVE, Clemersom Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro., Revista dos Tribunais, 1995

[8] JOBIM, Marcelo Barros. Existem Omissões Constitucionais? Viva, 2013. p. 152.

[9] STRECK, Lenio Luiz; CLEVE, Clèmerson Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PANSIERI, Flávio. Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito 21 de agosto de 2014 em Revista Eletrônica Consultor Jurídico.

[10] Oliveira, José Marcelo Domingos de. Tese de Doutorado. Desejo, preconceito e morte: assassinatos de LGBT em Sergipe: 1980 a 2010. Natal: UFRN.

[11] Ibid., p. 137.

[12] https://transrespect.org/es/trans-murder-monitoring/tmm-resources/

[13] https://transrespect.org/es/tmm-trans-day-remembrance-2016/

[14] https://catracalivre.com.br/cidadania/com-600-mortes-nos-ultimos-seis-anos-brasil-e-o-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais/

[15] BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, p. 14/15.

[16] CANETTI, E. Massa e poder. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 18-19

[17] STRECK, Lenio Luiz; CLEVE, Clèmerson Merlin; SARLET, Ingo Wolfgang; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PANSIERI, Flávio. Perigo da criminalização judicial e quebra do Estado Democrático de Direito 21 de agosto de 2014 em Revista Eletrônica Consultor Jurídico.

[18] CARVALHO,  Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de.  Aplicação da pena e garantismo. 4. ed.  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 80.

[19] STRECK, et al, op. cit., p. 3.

[20] MACHADO, Jonatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra, 1996

[21] TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 3, n. 10, abr. 2009. Disponível em: < http://bdjur.stj.jus.br//xmlui/handle/2011/29005>. Acesso em: 1 dez. 2010.

[22] RIVERO, Jean Rivero; MOUTOTH Hugues. Liberdades Públicas. Martins Fontes, 2006, p. 524

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