Nota sobre proposta legislativa relativa à “interrupção médica da gravidez” na França

A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE, no uso das suas atribuições, emite à sociedade brasileira a presente Nota, referente à regulamentação francesa aplicável ao aborto.

Nos últimos dias, veiculou-se em alguns canais de imprensa brasileiros, bem como nas redes sociais, a informação de que a França aprovou o aborto até o nono mês de gestação. No entanto, tais notícias foram divulgadas com algumas imprecisões, sobre as quais discorreremos a seguir.

Desde a década de 90, diferentes discussões relativas à bioética vêm sendo travadas na sociedade e no Legislativo franceses. Em 2011, a Lei n. 2011-814, relativa à bioética, trouxe mudanças à legislação vigente e já dispôs que seus termos seriam revisados em, no máximo, 07 anos após sua entrada em vigor (art. 47, I)[1]. Desse modo, atualmente, há novos debates em curso acerca da matéria, no bojo do Projeto de Lei n. 3181[2], com destaque à proposta trazida pela Emenda n. 524. Antes de apresentar o seu teor, é importante mencionar que a legislação francesa, através do Código de Saúde Pública (CSP), prevê duas hipóteses de interrupção da gravidez: a voluntária (art. L2212-1 a L2212-11, do CSP) e a ocasionada por motivos médicos (art. L2213-1 a L2213-3, do CSP)[3].

A interrupção voluntária da gravidez (IVG) pode ser realizada até a 12ª semana da gravidez. No caso de interrupção médica da gravidez (IMG), permite-se a realização do aborto, a qualquer tempo, nas hipóteses em que haja perigo à saúde da mulher ou exista uma grande probabilidade de que o nascituro apresente uma condição particularmente grave e incurável. O procedimento envolve a emissão de parecer consultivo por uma equipe profissional e o pronunciamento de dois médicos membros da referida equipe.

Feitos tais esclarecimentos, podemos retornar à Emenda n. 524[4], proposta pelo grupo parlamentar Groupe Socialistes & apparentés. A proposta nela contida altera o Código de Saúde Pública, no art. L. 2213-1, para constar expressamente que as hipóteses de perigo grave à saúde da mulher contemplam circunstâncias de sofrimento psicossocial. Os autores da Emenda defendem que, atualmente, já é possível realizar a IMG com fundamento em sofrimento psicossocial, visto que tais aspectos estão englobados no conceito de saúde. No entanto, a ausência de menção expressa dificultaria a realização de abortos em circunstâncias assim, de modo que, segundo os autores da proposição, os termos da Emenda confeririam maior segurança às mulheres.

As mudanças na legislação sobre bioética já foram analisadas na Assembleia Nacional e no Senado. A Emenda n. 524 foi inserida quando a matéria retornou à Assembleia Nacional após alterações, sendo seus termos acatados pela Assembleia[5]. Nessa ocasião, 60 parlamentares votaram favoravelmente ao projeto apresentado, 37 foram contrários e 4 se abstiveram[6], não obstante a Assembleia Nacional seja composta por 577 parlamentares. O próximo passo será a segunda leitura da proposta no âmbito do Senado, seguindo, em caso de aprovação, para promulgação pelo Presidente.

Assim, diferentemente do que se veiculou em alguns sites brasileiros, a mudança referente à interrupção da gravidez ainda não foi consolidada na legislação francesa, demandando análise pelo Senado e promulgação pelo Presidente. As notícias também foram tecnicamente imprecisas ao divulgarem uma liberação irrestrita do aborto até o nono mês de gestação, vez que a modificação diz respeito à hipótese de interrupção médica da gravidez, distinta da interrupção voluntária, ainda que os efeitos práticos da medida possam tornar nebulosa a diferenciação entre uma e outra.

Quanto ao mérito, importa salientar a inexistência de detalhes sobre o que seria “sofrimento psicossocial”. Sem uma delimitação nítida do seu alcance, o resultado pode ser a realização irrestrita de abortos, em qualquer momento da gestação. A interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana já configura, em nossa compreensão, uma ofensa ao direito à vida e à proteção do nascituro, conforme nos posicionamos em outras ocasiões[7]. Permitir a interrupção a qualquer momento da gravidez, sob alegações de sofrimento psicossocial, aprofundará o grau de violação ao direito à vida.

Ex positis, a ANAJURE (1) sustenta que a Emenda n. 524, se aprovada nos atuais termos, agravará a situação da proteção do nascituro na legislação francesa; (2) manifesta a expectativa de que o Senado francês possa reavaliar o texto proposto, excluindo a menção ao “sofrimento psicossocial” como causa para a interrupção médica da gravidez; (3) e informa que oficiará a presente Nota à Embaixada da França no Brasil, buscando o diálogo e colaboração com o país, vez que a medida legislativa traz implicações na proteção dos direitos humanos consagrados internacionalmente.

Brasília-DF, 14 de agosto de 2020.

 Assessoria Jurídica da ANAJURE

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[1] Disponível em: <http://www.justice.gouv.fr/le-ministere-de-la-justice-10017/projet-de-loi-relative-a-la-bioethique-33425.html>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[2] Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/dyn/15/dossiers/bioethique_2>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[3] Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=0989E98174969FBBC2ADC06199468CB5.tplgfr38s_2?idSectionTA=LEGISCTA000006171543&cidTexte=LEGITEXT000006072665&dateTexte=20140501>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[4] Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/dyn/15/amendements/3181/AN/524>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[5] Disponível em: <http://www.justice.gouv.fr/le-ministere-de-la-justice-10017/projet-de-loi-relative-a-la-bioethique-33425.html>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[6] Disponível em: <http://www2.assemblee-nationale.fr/scrutins/detail/(legislature)/15/(num)/2856>. Acesso em: 13 ago. 2020.

[7] Disponível em: <https://anajure.org.br/anajure-participa-da-audiencia-publica-sobre-a-descriminalizacao-do-aborto/>. Acesso em: 13 ago. 2020.
Disponível em: <https://anajure.org.br/nota-publica-e-parecer-tecnico-juridico-da-anajure-sobre-decisao-do-stf-favoravel-ao-aborto-ate-tres-meses-de-gestacao/>. Acesso em: 13 ago. 2020.

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