Veja aqui em PDF
A Assessoria Jurídica da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE vem, através do presente expediente, apresentar parecer sobre ação civil pública que tramita em face do Sr. José Ricardo Marques, ex-Diretor-Geral do Arquivo Nacional, processado por improbidade administrativa.
I – SÍNTESE FÁTICA
O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em face de José Ricardo Marques, ex-Diretor-Geral do Arquivo Nacional, pleiteando a condenação do servidor por improbidade administrativa em virtude da realização de cultos religiosos no auditório do Arquivo Nacional[1].
O Sr. José Ricardo foi nomeado como Diretor-Geral em fevereiro de 2016. Ao chegar ao Arquivo Nacional, tomou conhecimento de que havia um grupo de servidores evangélicos que se reuniam em uma área livre do órgão. Comunicou a eles, no entanto, que a partir de então os cultos passariam a ser realizados no auditório da instituição. Em que pese ter sido informado sobre a possibilidade de utilizar espaço multiuso, onde não haveria despesas com ar-condicionado e energia elétrica, preferiu manter o plano de utilizar o auditório.
Foram, então, realizados alguns cultos no auditório, tendo o Diretor designado servidor para cuidar dos equipamentos de áudio e vídeo durante as cerimônias. A situação chamou a atenção do MPF, que concluiu pelo ajuizamento de ação civil pública.
Na inicial, o MPF aduziu que o réu violou o “dever de imparcialidade na preferência concedida a uma religião específica (…) em detrimento de todas as demais, no que se refere à utilização do espaço mais nobre do Arquivo Nacional para a realização de prosélitos semanais”. O Parquet ainda afirmou que o demandado infringiu a legalidade e a laicidade por utilizar a repartição pública como local de pregação. Também argumentou que a realização de culto religioso não guarda nenhuma relação com a finalidade do Arquivo Nacional e que o servidor faltou com lealdade, pois, ao invés de promover interesses lícitos e relevantes para a instituição, promoveu interesses privados.
Requereu a condenação do réu ao ressarcimento dos valores dispendidos com os eventos religiosos ocorridos no auditório do Arquivo Nacional; a perda da função pública exercida pelo Demandado; a suspensão dos direitos políticos do Demandado por oito anos; pagamento de multa civil em valor equivalente a cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente; a proibição de contratar com o Poder Público Federal ou dele receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios pelo prazo de 5 anos.
Ao apreciar o caso, o Dr. Guilherme Corrêa de Araújo, Juiz da 32ª Vara Federal da Seção Judiciária do RJ, proferiu sentença na qual afirmou que “a pretensão autoral será analisada como mera imputação de condutas de uso de espaço público para fins privados e de violação dos princípios da administração, sem qualquer valoração a propósito do caráter religioso da atividade”. O julgador identificou atos de improbidade nas seguintes condutas:
Utilização de espaço para atividade não relacionada à finalidade da instituição;
a) No fato de o Sr. José Ricardo ter mentido para o MPF, em ofício, ao informar que os encontros promovidos por sua ordem seriam apenas para as boas-vindas de um grupo de servidores, o que não se sustentou mediante as provas produzidas nos autos (fotografias e testemunhos);
b) Na postura do Sr. José Ricardo de tentar instruir depoimento a ser prestado pelo servidor Sr. Maurício Antonio de Camargos perante o MPF, comprovada por meio da juntada aos autos de envelope entregue com instruções sobre o que deveria ser dito.
c) Assim, o magistrado julgou procedente o pedido do MPF para condenar o requerido às penas de (I) ressarcimento do dano, mediante o pagamento de R$ 24.000,00, corrigidos monetariamente, a contar de cada evento realizado; e (II) pagamento de multa civil no montante de uma vez e meia o valor do dano fixado, com os encargos determinados.
II – DA POSIÇÃO INSTITUCIONAL DA ANAJURE
II.I – Liberdade religiosa
O caso em tela estabelece algumas relações com conceitos como a liberdade religiosa e a laicidade, sobre os quais discorreremos. A respeito da liberdade religiosa, cabe salientar, de início, a sua ampla previsão em diversos textos normativos, sendo um exemplo disso a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, segundo a qual:
Art. 18. Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular. (Grifo nosso).
De modo semelhante, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos/1966 estabelece, em seu art. 18, 1:
Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. (Grifo nosso).
Em âmbito regional, o Pacto de San José da Costa Rica/1969 preceituou nos seguintes termos:
Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. (Grifo nosso).
Por fim, mencionamos o texto constitucional brasileiro, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI, CF/88). A Carta Magna também assegura que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (art. 5º, VIII, CF/88).
Ponto comum a todos esses textos é a valorização das expressões práticas do direito à liberdade religiosa. Resta evidenciado que a visão restrita que limitava a fé ao espaço público não foi a opção do legislador nos mais diversos âmbitos, privilegiando-se a perspectiva de que a crença, enquanto aspecto inerente à identidade do indivíduo, não pode ser dele dissociada a depender do ambiente em que se encontra. Assim, esse direito compreende as manifestações litúrgicas e rituais vividas dentro dos templos religiosos, mas vai além, englobando, igualmente, a profissão de fé no espaço público. O raciocínio adotado pela legislação também encontra guarida na seara doutrinária, de onde extraímos as seguintes lições de Jónatas Machado:
(…) o programa normativo do direito à liberdade religiosa deve ser interpretado de forma extensiva, de forma a proteger todas as manifestações, experiências, vivências, atividades e comportamentos religiosamente motivados, individuais e colectivos, públicos e privados, sem prejuízo da necessária salvaguarda dos direitos de todos os indivíduos e dos bens fundamentais da comunidade e do Estado. O direito à liberdade religiosa deve ser objecto de uma interpretação sistemática, no sentido jurídico, que proteja as dimensões pessoais e institucionais da vivência religiosa, como a expressão, a informação, a comunicação social, o ensino, a circulação de nacionais e estrangeiros ligados a uma confissão religiosa, a reunião, a manifestação, a associação, a assistência social, a cultura, etc[2]. (Grifo nosso).
A liberdade religiosa, como visto acima, envolve manifestações, experiências, vivências, atividades e comportamentos. Assim ocorre em virtude da ampla capacidade da crença de nortear a vida de um indivíduo. Um adepto genuíno de uma confissão religiosa conecta todo o seu estilo de vida às doutrinas abraçadas, deixando que isso molde seus relacionamentos interpessoais, suas motivações profissionais e sua interação com a sociedade, por exemplo.
Não é possível, portanto, dissociar o exercício dessa liberdade da proteção da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88). Parte do gozo de uma vida digna diz respeito a poder celebrar o que lhe concede sentido, salvação e razões para prosseguir. E isso não se faz unicamente de forma solitária ou esporádica em templos, mas no cotidiano, com amigos, em comunidade. É por tal razão que muitos indivíduos aproveitam intervalos de suas jornadas de trabalho para reunir-se com outros que comungam da mesma fé. O mero encontro de religiosos em horário distinto daquele em que cumprem suas funções, por si só, não representa desvio de finalidade do órgão. Trata-se, na verdade, de tendência natural do ser humano de se agrupar com os seus semelhantes. Não se trata de fenômeno produzido unicamente pela religião, pois a política e o futebol, por exemplo, também geram efeitos parecidos. Desse modo, entendemos que não há inconstitucionalidade ou inadequação na reunião de pessoas que compartilham da mesma crença, em horários alternativos de sua jornada trabalhista, ainda que no espaço onde desenvolvem suas atividades, desde que não traga embaraços ao normal funcionamento do órgão, visto que se trata de consequência natural de ser humano e que, portanto, merece proteção do princípio da dignidade.
II.II – Laicidade
A secularização (processo de afastamento da sociedade ao controle da igreja) ocorrida principalmente nos países ocidentais, embora verificada em diferentes níveis, solidificou a ideia de laicidade do Estado. Embora ainda se discuta as diferenças entre essas terminologias, resta entender que o Estado laico é aquele em que não há uma religião ou entidade religiosa oficial (aconfessionalidade estatal), e onde se garante às organizações religiosas uma não interferência do Estado em sua criação e funcionamento. Em resumo, a laicidade ocorre quando há separação entre igreja e Estado.
Acerca da separação entre Estado e Religião, o eminente Professor Doutor Jorge Miranda[3], constitucionalista português, leciona no seguinte sentido:
(…) não determina necessariamente desconhecimento da realidade social e cultural religiosa, nem relega as confissões religiosas para a esfera privada.
(…) Laicidade significa não assunção de tarefas religiosas pelo Estado e neutralidade, sem impedir o reconhecimento do papel da religião e dos diversos cultos. Laicismo significa desconfiança ou repúdio da religião como expressão comunitária e, porque imbuído de pressupostos filosóficos ou ideológicos (…), acaba por pôr em causa o próprio princípio da laicidade.
(…) Oposição absoluta à religião constitui fenômeno recente, ligado aos totalitarismos modernos: os marxistas leninistas e o nacional-socialista. Como o Estado pretende ser total e conforma ou visa conformar toda a sociedade, destituída de autonomia, pela sua ideologia, a religião deixa ter espaço e ou se submete ou tem de se reduzir à clandestinidade.
Outra questão relevante acerca da laicidade é que um Estado com tais características não se encontra isolado de qualquer possível influência religiosa. As considerações de Aloisio Cristovam dos Santos Junior[4] sobre o assunto são elucidativas:
Um outro aspecto que deve ser posto em relevo é o de o Estado laico não é aquele absolutamente imune a influências religiosas. Os exemplos de Estados laicos que adotaram políticas públicas que direta ou indiretamente resultaram de movimentos capitaneados por líderes religiosos são inúmeros. Por vezes, a motivação religiosa constitui fator determinante para a luta encetada por certos segmentos sociais visando à adoção de políticas governamentais que melhoram a vida de toda a sociedade. No particular, o caso de Martin Luther King Junior é emblemático. Ninguém em sã consciência pode negar que muitas das políticas governamentais americanas foram fortemente influenciadas pelo Movimento dos Direitos Civis liderado pelo pastor batista com motivações fortemente religiosas.
O princípio da laicidade está expresso em nossa Constituição no artigo 19, in verbis:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
A afirmação de que o Brasil é um Estado laico, contudo, tem sido insistentemente repetida pelas autoridades estatais quando querem impor uma política pública que contrarie interesses religiosos, e é produzida, na maioria das vezes, como mero argumento retórico divorciado de uma compreensão do modelo de laicidade encampado pelo Estado brasileiro.
Em alguns países, a tendência de confinamento da religiosidade ao âmbito da vida privada tem se confundido com a própria laicidade. No Brasil, contudo, a visão constitucional de Estado Laico não se coaduna com esse formato de privatização da fé. Aloisio Cristovam[5], ao analisar a construção da laicidade no Brasil, defende que o nosso ordenamento “adotou uma neutralidade benevolente, tendente a obsequiar o fenômeno religioso e não a expurgá-lo por completo do espaço público”. Assim, em nosso país, consagra-se na Constituição a liberdade de crença; a separação entre Estado e Igreja com a possibilidade de colaboração de interesse público; a hipótese de escusa de consciência por motivos de crença, sendo necessária a aceitação de prestação alternativa; a imunidade dos templos religiosos, dentre outras disposições nessa linha. Ainda sobre o assunto, o autor explica que é possível se debater a justeza do modelo de laicidade adotado no Brasil, não sendo possível, contudo, que o intérprete venha a preterir o disposto em nosso ordenamento para adotar soluções adotadas em outros países por mera preferência pessoal. Nas palavras do autor:
A laicidade do Estado brasileiro, proclamada desde a instauração da República, na forma como é adotada pela atual Constituição Federal, longe de significar uma diminuição do espaço conferido ao fenômeno religioso, presta-se até a ampliá-lo e, sendo assim, a interpretação dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que tratam da questão da liberdade religiosa não pode ignorar esse viés hermenêutico. É verdade que, no plano filosófico, abre-se a possibilidade de discutir a justeza do modelo adotado e se ele representa o que há de mais avançado ou retrógrado na vivência democrática. É mera questão de opinião. O que não se pode conceber é que o intérprete do direito, em nome de posições filosóficas pessoais ou pelo mero desejo de imitar soluções doutrinárias e jurisprudenciais adotadas em países cujo modelo de laicidade seja diferente, despreze o modelo que representa uma opção clara do constituinte brasileiro[6].
Outrossim, ao invocar-se o Estado laico no debate, deve-se ter de forma bem nítida a distinção entre laicidade e laicismo. O laicismo significa “desconfiança ou repúdio da religião como expressão comunitária”[7], e uma de suas características principais é justamente a relegação da expressão religiosa à esfera privada, banindo-a do espaço público e comunitário. Isto, em si, viola o Estado laico, uma vez que o laicismo, “porque imbuído de pressupostos filosóficos ou ideológicos (…), acaba por pôr em causa o próprio princípio da laicidade”[8].
A laicidade, por sua vez, impõe ao Estado não só uma obrigação negativa, mas também positiva. No aspecto negativo, significa que este não pode promover ou subvencionar uma religião em detrimento das outras, adotar determinada confissão como oficial, ou impedir a manifestação de qualquer visão religiosa. No viés positivo, por sua vez, a laicidade impõe ao Estado o dever de garantir que a todas as confissões religiosas seja permitida a expressão, seja esta privada ou pública.
Relacionando o exposto com a realização de encontros religiosos no âmbito de órgãos públicos, temos a compreensão de que não fere a laicidade a ocorrência de cultos de uma determinada confissão, o que apenas aconteceria se as demais religiões tivessem tal possibilidade negada ou se houvesse subvenção em detrimento das outras.
O entendimento de que o espaço público não deve ser restrito a uma única confissão de fé não deve ser deturpado para tornar tais ambientes estéreis a qualquer diálogo religioso. Como visto, a postura brasileira não é laicista, mas laica e se comunica com as crenças dos cidadãos. Nesse sentido, há diversos exemplos de utilização de órgãos públicos para discussões sobre a religiosidade brasileira. Na maioria, não surgem grandes celeumas a respeito, pois determinadas crenças gozam do privilégio de terem todas as suas expressões consideradas como “manifestações culturais” e, por isso, legitimadas. Se é cultura, não fere a laicidade. De fato, a religião se conecta intimamente com aspectos culturais, pois, por meio de suas doutrinas, acaba orientando todos os aspectos da vida, desde os mais cotidianos até situações excepcionais. No entanto, essa perspectiva não se estende a todas as religiões, em especial, à cristã evangélica, a qual geralmente sofre resistência supostamente fundamentada na laicidade. Apresentamos, portanto, alguns exemplos de eventos que dialogam com a religião e que ocorreram Brasil afora em órgãos públicos:
- Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) celebra seus 51 anos de existência com culto aos orixás, no pátio da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC), no campus central[9];
- Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA) recebe o evento “Religião dos Encantados: a configuração das entidades na Umbanda (Araguaína, Tocantins, Brasil)”[10];
- Oficina de capacitação realizada pela Associação de Umbanda e Candomblé de Codó, na UFMA, para capacitar praticantes da Umbanda e do Candomblé a captar recursos federais destinados à execução de projetos de valorização da cultura afro-brasileira[11];
- IV Congresso Espírita do Maranhão ocorre no Centro de Convenções da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)[12];
- Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sedia o I Seminário Transformação Consciente, evento espírita realizado no Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA)[13];
- Universidade Federal do Acre (Ufac) sedia 2ª Conferência Mundial sobre Ayahuasca, iniciada com bênção entoada na língua iauanauá, pelo líder espiritual Tatá Yawanawá[14];
A abertura de espaços públicos para expressões religiosas se coaduna com o princípio do pluralismo, consagrado em nosso ordenamento jurídico (art. 1º, V, CF/88). Para resguardá-lo, no entanto, é preciso enxergar que não é exclusividade apenas de algumas crenças compor o cenário cultural brasileiro.
Destaque-se, ainda, que não cabe, num Estado laico, que seja obrigatória a expressão pública de todas as confissões existentes numa comunidade. Isso porque o dever positivo do Estado decorrente da laicidade não é o de garantir que todas confissões religiosas se expressem – já que a efetiva expressão dependerá da volição e atuação de cada uma – mas sim, de garantir que seja permitida a sua expressão. Com efeito, a posição do Estado brasileiro deve ser de neutralidade no sentido de viabilizar a pública expressão religiosa dos diversos credos.
II.III – O caso do Arquivo Nacional
Diante do exposto, podemos concluir que a utilização de espaço público para manifestações religiosas não representa afronta à laicidade, pois se associa ao exercício da liberdade de crença, a aspectos identitários e culturais, bem como à própria dignidade da pessoa humana.
Disso, contudo, não podemos extrair que a conduta do Sr. José Ricardo Marques foi adequada. Em nenhum momento houve, conforme consta nos autos do processo, privação do direito à liberdade religiosa, uma vez que se conferia aos servidores do órgão, há anos, a possibilidade de se reunir para a realização de cultos no âmbito da instituição. O litígio surgiu quando o servidor processado quis modificar a cultura já instalada no Arquivo Nacional para usufruir da estrutura pública sem que houvesse necessidade, pois, como dito, os cultos já eram realizados em outro local que não exigia gasto de energia, utilização de equipamentos públicos ou de servidores.
Compreendemos, portanto, que o gozo da liberdade religiosa não concede superdireitos a uma determinada confissão religiosa, em particular, ao segmento evangélico. Como as demais religiões, precisamos nos sujeitar aos ditames constitucionais referentes à laicidade, sem demandar qualquer subvenção pública, seja através da utilização de equipamentos públicos que ensejam elevado dispêndio financeiro, seja da requisição de servidores para a celebração de rituais religiosos.
III. DA CONCLUSÃO
Ante o exposto, a ANAJURE reafirma o seu compromisso com a defesa da liberdade religiosa, compreendendo-a como vinculada à identidade e cultura de um povo, podendo ser manifestada, inclusive, no espaço público, nos termos da proteção internacional a esse direito humano, sem, no entanto, qualquer pretensão de que isso confira privilégios ao segmento evangélico, em conformidade ao princípio da laicidade estatal que veda subvenções a qualquer crença.
Brasília, 03 de outubro de 2019.
Assessoria Jurídica da ANAJURE
________________________
[1] Processo nº 0161758-57.2016.4.02.5101, 32ª Vara Federal do RJ.
[2] MACHADO, Jónatas. A liberdade religiosa na perspectiva dos direitos fundamentais. Revista Portuguesa de Ciência das Religiões. p. 150.
[3] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, direitos fundamentais. 3 ed. rev. actual. Coimbra Editora. 2000, p. 409
[4] SANTOS JUNIOR, Aloisio Cristovam dos. A laicidade estatal no direito constitucional brasileiro. Disponível em: < https://sylviomiceli.wordpress.com/2008/05/04/a-laicidade-estatal-no-direito-constitucional-brasileiro/>. Acesso em: 28 ago. 2018
[5] Ibid.
[6] Ibid.
[7] MIRANDA, Jorge. Estado, liberdade religiosa e laicidade. In: O Estado laico e a liberdade religiosa. São Paulo: LTr, 2011, p. 111.
[8] Ibid.
[9] http://portal.uern.br/blog/culto-aos-orixas-celebra-51-anos-da-uern/
[10] http://www.agenda.ufba.br/?tribe_events=religiao-dos-encantados
[11] http://g1.globo.com/ma/maranhao/jmtv-1edicao/videos/v/em-codo-praticantes-da-umbanda-e-candomble-fazem-treinamento-ministrado-pela-ufma/3143718/
[12] https://imirante.com/oestadoma/noticias/2017/10/13/comeca-hoje-o-iv-congresso-espirita-do-ma/
[13] https://www3.ufpe.br/proexc/index.php?option=com_content&view=article&id=559:evento-espirita-prega-transformacao-individual-para-transformar-o-mundo&catid=13&Itemid=122
[14] http://www2.ufac.br/site/news/ufac-sedia-2a-conferencia-mundial-sobre-ayahuasca